A previdência social brasileira sob os impactos da financeirização e da transição demográfica

Miguel Bruno (ENCE-IBGE e FCE-UERJ)

Introdução

Uma vez instituído, todo sistema de seguridade social torna-se parte integrante das estruturas de produção e de distribuição que definem o regime de crescimento econômico vigente em cada país. Seu fluxo de caixa é diretamente condicionado pela dinâmica da produção, da geração de renda e do nível de ocupação resultante da performance macroeconômica desse regime. Consequentemente, suas condições de financiamento permanecem dependentes das formas de relacionamento entre as finanças públicas e os centros de acumulação de capital em sua permanente busca de revalorização mercantil.

Cada regime de crescimento é constituído por um regime de produtividade – que expressa as tendências de evolução da produção e, portanto, da oferta agregada de bens e serviços; e por um regime de demanda – que é a síntese das tendências do consumo, do investimento e dos gastos públicos, incluindo os relativos à seguridade social. Nesse contexto, um sistema público e universal de previdência, assistência e saúde tem impactos diretos e positivos na formação e estabilidade da demanda agregada. Exerce efeitos contra-cíclicos importantes, além de contribuir para que os regimes de crescimento possam funcionar em trajetórias de alta produtividade com menor risco de crises e instabilidades.

A experiência histórica do período fordista, no pós-segunda guerra, conhecida como a Golden Age do capitalismo nos países da OCDE, demonstra a importância das instituições de welfare state para a estabilidade macrodinâmica dos regimes de crescimento daquele período. Foram cerca de 30 anos de forte e estável crescimento, com pequenas recessões facilmente administradas pela política econômica. O Estado Social se consolida e contribui para elevar substancialmente os níveis de vida, através de uma distribuição mais equitativa da renda, de acordo com o princípio de solidariedade intergeracional.

Uma condição central para o surgimento desse regime foi a configuração das relações capital-trabalho a partir de três principais eixos que se reforçavam mutuamente. O primeiro, no campo das empresas, uma contratualização de longo prazo da força de trabalho, que previa a estabilidade das relações de emprego com a determinação do salário direto indexada aos ganhos de produtividade. O segundo foi a formação do salário indireto, resultado da construção dos sistemas de Seguridade Social, juntamente com os grandes investimentos em saúde e educação públicas. O terceiro, também derivado das ações do Estado, foi a política econômica de administração da demanda agregada derivada da Macroeconomia keynesiana.

A partir da segunda metade dos anos 1970, a crise dos regimes de crescimento que possibilitaram a Golden Age provocará uma onda de questionamentos quanto à viabilidade das estruturas de bem-estar social que lhes estavam associadas, abrindo espaço político para as investidas ideológicas das concepções neoliberais. O fato importante a ser destacado é que as causas dessa crise não residiam nas particularidades das relações Estado-economia naquele período. Portanto, não deveriam ser tratadas como um grande equívoco, nem tão pouco se justificariam apenas no contexto da guerra fria. Como uma das principais bases dos regimes fordistas, o Estado Social passou a ser avaliado sob o pressuposto ideológico e irrealista de que existiria uma configuração canônica ou superior, social e economicamente mais eficiente, a ser seguida por todos os países. E esta seria aquela de um Estado mínimo, com políticas sociais focalizadas e institutos privados de previdência com objetivos prioritários de lucro e acumulação mercantil. Apesar do contexto histórico característico da Golden Age não existir mais, as opções por um projeto civilizatório que promova a defesa e consolidação de valores sociais compatíveis com a construção da cidadania e com o bem-estar da população são independentes de épocas, justamente por se tratarem de direitos humanos fundamentais e, por isso, universais.

Além dos efeitos conjunturais da atual crise política e econômica, a sociedade brasileira permanece sob os impactos de dois macro-fenômenos principais: a transição demográfica, expressa num processo rápido de mudança na estrutura etária da população e as restrições que lhe são impostas pela financeirização da economia. Se, por um lado, a compreensão dos impactos do envelhecimento da população sobre o sistema de seguridade social brasileiro exige considerar os efeitos de interação das dinâmicas macroeconômica e demográfica; por outro, requer também uma compreensão precisa do que a financeirização pela renda de juros representa para as finanças públicas, para as famílias e para as empresas do setor produtivo. No entanto, o debate sobre a reforma da previdência, notadamente, quando desenvolvido por economistas ortodoxos e neoliberais que, em sua maioria, representam os interesses do mercado financeiro, tem permanecido completamente alheio aos efeitos negativos que o atual regime de crescimento sob finanças liberalizadas e acumulação rentista exerce sobre a economia e sociedade brasileiras.

Este texto tenta sintetizar as principais características desse regime macroeconômico em suas possíveis interações com os efeitos da transição demográfica e o que representam para o sistema de seguridade social. Destaca-se o papel-chave da produtividade não somente para a sustentabilidade do fluxo de caixa da previdência, mas para a reafirmação e expansão das estruturas de financiamento do Estado Social. Nesse contexto, a retomada do desenvolvimento industrial é fundamental, pois os ganhos de produtividade necessários a sustentabilidade dos sistemas de seguridade social são proporcionados por uma indústria forte e inovadora e não por uma economia cuja base produtiva regride de volta à primarização.

As visões catastrofistas da questão da previdência social no Brasil agarram-se a um fatalismo demográfico e deliberadamente não focam a questão da produtividade nem a função macroeconômica fundamental do Estado Social. Praticam um retorno apressado e infundado às concepções teóricas pré-keynesianas, fazendo do Estado um agente substituto do mercado e não complementar. As finanças públicas são equivocadamente tratadas sob uma mesma lógica privada, mas cujos gastos surgem antes como desperdícios de recursos e não como investimento social. Se abstraem do fato de que o Estado é o único agente econômico com poder de tributar e cujas despesas engendram receitas fiscais para si mesmo. Enfatizam exagerada e convenientemente o lado das despesas com benefícios, desconsiderando a sonegação das contribuições previdenciárias, das Desvinculações de Receitas da União e a necessidade urgente de uma reforma fiscal que elimine a alta regressividade da tributação no Brasil. Tais medidas são prioritárias para fortalecer o orçamento público como base da construção de uma sociedade democrática e mais justa, não apenas no plano político, mas social e econômico.

Baixe o artigo completo aqui