Artigo 44 | O Golpe é contra as LGBT

Julian Rodrigues[1]

Vivemos tempos de ruptura democrática.

O golpe midiático-judiciário-parlamentar em curso é um processo complexo que não começa nem termina com a destituição da presidenta eleita democraticamente. Trata-se de uma ofensiva reacionária, articulada não só em âmbito nacional, mas também latino-americano e internacional.

O programa golpista tem dois eixos fundamentais: a implantação de uma política econômica privatista, neoliberal, que visa aumentar os ganhos dos grandes capitalistas, daqui e do exterior, como também um eixo ultra-conservador, que flerta com o fascismo.

O golpe teve como protagonistas setores de extrema-direita, fundamentalistas religiosos, grandes latifundiários, parlamentares ligados aos aparatos policiais: a chamada bancada BBB (da bala, do boi e da bíblia). A aliança política e a agenda programática golpista é intrisicamente contrária aos direitos humanos. Aos direitos civis, políticos, sociais, trabalhistas. E aos direitos das mulheres, da juventude, dos negros e negras, dos pobres e das lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais e homens trans (LGBT).

Uma das primeiras medidas do governo golpista foi extinguir o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos. A Coordenação LGBT e o Conselho Nacional LGBT estavam vinculados ao Ministério fechado por Temer. O mais grave: toda a estrutura do antigo Ministério dos Direitos Humanos (criado por Lula, em 2003, como Secretaria Especial) foi picotada. Parte das áreas do antigo Ministério foram objeto de barganha fisiológica com parlamentares da base de Temer, parte delas foram esquecidas, ignoradas, enterradas.

O Ministro da Justiça é o chefe das políticas de direitos humanos – estrutura precária, similar à que existia na década de 1990, no governo FHC. Pior que isso: Alexandre Moraes tem perfil conservador e autoritário, que saiu da Secretaria de Segurança do Governo Alckmin – onde se notabilizou em reprimir movimentos sociais e acobertar as chacinas da PM – direto para o núcleo do governo golpista.

Para tentar perfumar o golpe, chamaram a professora Flávia Piovesan, da PUC de São Paulo para ser “secretária” de direitos humanos. Flávia era uma teórica respeitada pelos movimentos sociais. Rasgou sua biografia para assumir um papel secundário, legitimador do governo dos machos, brancos, ricos, conservadores, velhos, pretensamente heterossexuais.

O processo histórico

O movimento LGBT brasileiro se constitui a partir do fim dos anos 1970. Fez parte da grande aliança dos movimentos sociais que ajudaram a inscrever os direitos sociais e as liberdades na Constituição de 1988.De meados da década de 1980 até o fim da década de 1990 as energias do movimento foram dirigidas para o enfrentamento da epidemia do HIV/Aids.A partir de 1996, entretanto, com o sucesso da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que se espraiaram por todo o país, houve uma maior visibilidade da pauta gay na mídia e conquistas no judiciário.

Esse acúmulo permitiu que o movimento LGBT incidisse sobre o governo Lula e ajudasse a construir o primeiro programa nacional voltado para essa população: Brasil Sem Homofobia, em 2004. Depois, vieram ações e projetos em vários Ministérios. Em 2008, Lula abriu a I Conferência Nacional que debateu direitos e demandas das sapas, gays, bi, trans. Foram criadas, então, a Coordenação LGBT, o Conselho LGBT. Foi lançado o Plano Nacional LGBT. Diversas ações executadas em vários Ministérios. Um dirigente do movimento chegou a apelidar Lula de “Papai Noel das gays”. Não era para tanto: não houve nenhum avanço legislativo. Não se aprovou a criminalização da discriminação contra LGBT nem o casamento homossexual, nem direitos para as pessoas trans. O governo não moveu sua base nesse sentido.

Mas, avançamos. Mesmo com os vacilos do governo Dilma – que se elegeu com uma “Carta aos Cristãos” e vetou o programa “Escola sem Homofobia” – as políticas específicas para LGBT não cessaram. Houve sim um “congelamento” da agenda dos direitos humanos LGBT, criticada pelo movimento, mas não se concretizou nenhuma posição governamental contrária às demandas dessa população.

Onda conservadora

Os setores fundamentalistas cristãos ganharam força a partir das eleições de 2010. Serra explorou os temas conservadores e moralistas. Dilma cedeu.

Em 2014, esses setores se fortaleceram ainda mais nas eleições. A Câmara dos Deputados foi tomada por uma hegemonia conservadora-liberal-fundamentalista. Esse bloco conservador – sua vertente fundamentalista religiosa atuou fortemente pela derrubada de Dilma. É um setor que perpassa vários partidos, mas tem em comum o fato de ser contra qualquer política de reconhecimento dos direitos LGBT, contra as mulheres e contra os direitos humanos. Foram eles que conseguiram tirar as menções à igualdade de gênero e à diversidade sexual dos Planos Nacional, dos Planos Estaduais e Municipais de Educação. Inventaram a tal “ideologia de gênero” (uma bizarrice machista) e agora promovem o projeto da “escola sem partido”.

E todos estão com Temer. Antes da votação inicial do golpe, Silas Malafaia abençoou o vice golpista, que o recebeu logo que tomou posse. Malafaia é um dos líderes do pensamento reacionário e anti-LGBT no Brasil. Em julho, o temeroso recebeu mais de 30 pastores fundamentalistas e se comprometeu em combater a “ideologia de gênero” na educação. Afinado com essa agenda retrógada, o ministro da educação já havia recebido em audiência o ator pornô Alexandre Frota, que se destacou no último período como um dos líderes dos golpistas toscos.

Andando para trás

Resumindo: o governo golpista nasce em aliança sólida com os homofóbicos. É um governo de machos brancos ricos reacionários, com a cabeça no século 19. Não há qualquer espaço para qualquer política de diversidade no governo Temer. Até os militantes gays do PPS e do PSDB – que apoiaram o golpe – foram rechaçados. Não há estrutura, recursos, programas ou vontade política.

Aliás, até hoje não se nomeou ninguém para responder por esse tema no governo interino. Desde que a ativista travesti petista Symmy Larrat deixou o governo – logo após a destituição de Dilma pela Câmara – não há definição sobre quem será responsável pela gestão da pauta LGBT. Um governo que conta com o apoio entusiasmado dos Malafaia, Bolsonaro e Felicianos não será uma administração com qualquer sensibilidade para as demandas LGBT.

Tempos de retrocesso. E resistência. A única resposta possível é ocupar as ruas e gritar contra o golpe, o fascismo, o fundamentalismo, a homofobia, a lesbofobia e a transfobia. Porque dias melhores virão. E só a luta muda a vida.

[1] Mestrando em ciências humanas e sociais, membro da coordenação nacional do MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos) e do conselho consultivo da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)