Artigo 16 | Debaixo da Ponte mora um povo

Não importa se 54 milhões de pessoas elegeram Dilma. Se essa elite quer implementar o programa Uma Ponte para o Futuro, aplica um golpe e pronto. Por meio da farsa do século, o golpe é efetivado, troca-se o governo, e o programa derrotado nas urnas se torna o programa do governo golpista

Bruno de Conti* | Publicado no site Brasil Debate

O programa de governo de Michel Temer foi lançado de forma sui generis, já que não respeitou sequer o calendário eleitoral. Mas quem se importa com eleições? Em outubro de 2015, o então vice-presidente tornou explícitos seus desejos golpistas ao publicar o documento “Uma Ponte para o Futuro”, em que apresenta seus diagnósticos e propostas para o país.

Para elaborar esse documento, não teve nenhum trabalho, já que fez uma mera compilação das propostas das candidaturas do PSDB, derrotadas nas urnas nas quatro últimas eleições. A essência é exatamente a mesma! E se esse documento fosse novamente colocado em votação, seria novamente derrotado.

Mas a elite brasileira continua achando que o voto dos pobres não vale (como explicitou FHC na última campanha, ao referir-se ao “voto dos grotões”). Não importa se 54 milhões de pessoas elegeram Dilma. Se essa elite quer implementar o programa supracitado, aplica um golpe e pronto. Por meio da farsa do século, o golpe é efetivado, troca-se o governo, e o programa derrotado nas urnas se torna o programa do governo golpista.

O raciocínio desse governo golpista é horrivelmente coerente, em sua crua incoerência: como o povo não o elegeu, ele se acha no direito de não respeitá-lo; de não respeitar seus anseios e pleitos. Uma agenda inúmeras vezes rechaçada e derrotada pelo povo é violentamente imposta, de cima para baixo.

E o nome do documento é bastante simbólico. A “Ponte para o Futuro” revela de forma muito clara o desejo maior de Temer e de sua trupe: construir uma sociedade lá no alto, alheia a tudo o que se passa aqui embaixo. Lá de cima, eles se acham no direito de fazer o que querem e não precisam sequer olhar para aquilo que consideram como lixo: o povo brasileiro.

E essa ponte, além de alta, tem inúmeras barreiras. Desde logo, ela foi construída com acesso muito restrito às mulheres. Não apenas a presidenta Dilma foi expulsa, como todas as demais mulheres, com a composição de um ministério interventor que é formado exclusivamente por homens. O falso-presidente deixa evidente que as únicas mulheres bem-vindas são as belas, recatadas e do lar, como a falsa-primeira dama.

A ponte também não é acessível aos negros, como revela a mesma foto dos ministros-interventores. Aliás, entre os apoiadores desse governo branco, há alguns que defendem explicitamente que o lugar do negro continua sendo a senzala. Afinal, o que significa a tentativa de flexibilização da legislação relativa à caracterização do trabalho escravo, senão o intuito de mantê-los em suas fazendas?

A ponte também não é para os artistas que, percebendo isso, mantêm ocupações em diversas cidades do país com a pauta irrevogável do “Fora Temer”. As declarações de Feliciano mostram a visão (ou falta dela…) sobre a cultura e o trabalho dos artistas, alegando que com o fechamento do Ministério da Cultura, os artistas finalmente teriam que procurar o Ministério do Emprego.

A ponte não é para os aposentados, já que o documento deixa clara a intenção de desvincular os reajustes das aposentadorias em relação àqueles do salário mínimo. Acostumados a salários altos, não percebem que milhões de famílias brasileiras sobrevivem graças à aposentadoria rural – ou a aposentadorias de um salário mínimo. De fato, as declarações do novo interventor da Fazenda, Henrique Meirelles, mostram o risco de um retrocesso também nos direitos dos idosos já aposentados. Afinal, se isso foi feito na Grécia – com consequências catastróficas! –, por que não poderia ser feito também aqui nos trópicos?

Mas, sobretudo, a ponte não é para os trabalhadores. Sem nenhum pudor, o documento anuncia a piora expressiva das condições de vida da classe trabalhadora. Para começar, propõe a destruição da CLT, que ficaria subordinada às decisões dos acordos coletivos. Como se não bastasse essa flexibilização do mercado de trabalho, propõe que o salário mínimo não tenha mais nenhuma regra de reajuste! A definição sobre seus reajustes ficaria a cargo do Congresso (e que Congresso!).

Defende, ainda, a desvinculação dos gastos obrigatórios com saúde e educação, que resultará em acelerado sucateamento dos já problemáticos serviços públicos nessas áreas. Uma vez que isso se configure, ficará mais fácil acelerar o processo – também previsto no documento – de privatizações e de ampliação da participação do setor privado nesses setores – aprofundando o processo de transformação de direitos em mercadorias.

Essa é a ponte. E esse é o futuro proposto. Lá no alto dessa ponte de homens brancos e ricos, o governo golpista desfila e mostra claramente a que veio. Lá do alto, caem dia a dia as máscaras da pseudo-luta anticorrupção – até mesmo do interventor do novo “Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle”, um nome tão pomposo quanto mentiroso.

Lá do alto, Romero Jucá nos chama de idiotas. Depois de divulgada sua conversa com Machado, em que esclarece de forma nítida – até mesmo didática – as razões por trás do golpe e o procedimento adotado, grita lá de cima que se afasta do governo para evitar “manifestações babacas”. Como um animal acuado, se defende atacando e xingando o conjunto da população brasileira.

Lá do alto, esse governo golpista despeja toda sua raiva e desprezo em relação ao povo brasileiro, gritando impropérios e atacando direitos.

Mas nada é tão assombroso que não possa piorar. Além dos xingamentos que já estamos recebendo, em breve receberemos também balas de borracha e bombas de efeito moral. Afinal, se Alexandre de Moraes permitiu a invasão da PM às escolas de São Paulo para retirar à força jovens secundaristas – e depois os levou a delegacias comuns, antecipando ilegalmente seu próprio pleito de redução da maioridade penal –, imaginem como será o tratamento aos movimentos sociais…

Mas o que esses golpistas não percebem é que não haverá ponte possível. Inspirando-se nos seus grandes gurus, os golpistas militares de outrora, Temer pode tentar construir pontes altas e protegidas. Pode até construir uma ponte que dê acesso direto a Washington-DC, Londres ou Bruxelas – sem passagem pela América Latina e pela África –, como quer Serra.

No entanto, ainda que se julguem imunes ao que vem de baixo, esse governo golpista verá e ouvirá a reação. Verá e ouvirá que debaixo dessa ponte mora muita gente. Gente com vontade, com anseios políticos e com inteligência para perceber o engodo. Ainda que a validade de seu voto lhes seja sumariamente retirada, resta a voz para gritar de volta e acusar o golpismo. Restam as pernas, para invadir as ruas e clamar pelo fim desse governo ilegítimo. Resta a força e a coragem para, coletivamente, derrubar os alicerces dessa ponte que nos é estranha, que não queremos e que não aceitaremos. Mostraremos a Temer e à sua corja que os rumos do nosso país serão decididos aqui embaixo e não lá em cima.

* – Bruno de Conti é É professor do Instituto de Economia da Unicamp e membro da Plataforma