Nem ajuste, nem justo: réplica rápida às estórias que os economistas contam

José Celso Cardoso Jr.

 

“As pessoas que tentam tornar esse mundo pior não tiram um dia de folga!

Como é que eu vou tirar?”

(Bob Marley)

 

O relatório Por um Ajuste Justo do Banco Mundial é uma vergonha! Concebido por encomenda do ex-ministro Joaquim Levy, ainda em 2015, foi escrito já como parte da “onda do golpe” para legitimar, desde fora para dentro do país, a pseudociência econômica que pretende petrificar falácias e convencer os oprimidos a acreditar que são eles próprios os responsáveis pela crise.

 

Repetindo mantras típicos da pós-verdade, o relatório busca transformar ideologias em verdades científicas. Em seu sumário-executivo, enumera 22 pontos, dos quais eu diria que apenas dois merecem alguma consideração positiva: no ponto 14, o documento afirma não haver evidências de que as “políticas de apoio às empresas” (leia-se: isenções e renúncias tributárias, Refis e outras), que somaram nada menos que 4,5% do PIB em 2015, tiveram algum êxito no sentido de “impulsionar a produtividade e a geração sustentável de empregos”. Bingo!!! E no ponto 22, o óbvio: “a melhoria da qualidade das despesas públicas exige a institucionalização de um sistema regular e rigoroso de monitoramento e avaliação das políticas públicas.” Com a ressalva, porém, de que qualidade do gasto deve levar em consideração não apenas a dimensão da eficiência (foco quase exclusivo, e a rigor o menos importante, embora o mais fácil de calcular, dos economistas-capatazes), mas, sobretudo, as dimensões da eficácia e da efetividade, por meio das quais o gasto público pode melhorar a realidade socioeconômica de um país e sua população.

 

Nos demais 20 pontos-resumo do relatório, um desfile de teorias ruins (caracterizadas por simplismos, reducionismos e economicismos da pior espécie), suposições comportamentais moralistas e pouco apreço à ética da responsabilidade que importa:  aquela que coloca o bem-estar coletivo antes e acima do bem-estar financeiro. Alguns exemplos disso estão elencados a seguir.

 

Diz o relatório que “o governo brasileiro gasta mais do que pode e, além disso, gasta mal.” Ora, o governo brasileiro produziu superávits primários (ou seja: poupança fiscal) da ordem de 3% do PIB, anualmente, entre 2003 e 2013. Se hoje gasta mais do que pode é, sobretudo, porque gasta quase 10% do PIB com juros da dívida pública, cujos principais beneficiários são o topo da pirâmide distributiva. Assim, de fato, o poder redistributivo do gasto público total (primário + financeiro) é baixo ou nulo, principalmente, porque o gasto financeiro é ultra concentrador de renda no topo e esterilizador de recursos reais para a base da pirâmide. Então, o primeiro passo para uma avaliação honesta sobre o tema é separar o gasto real do gasto financeiro e olhar cada um desses agregados pelas óticas do financiamento e do gasto.

 

Depois, olhando apenas o gasto real, é claro que há problemas de alocação, focalização e poder redistributivo em várias áreas. Entretanto, a que menos padece desse problema, pasmem, é a área social. Isso porque a maior parte do gasto social real está concentrado na base da pirâmide social abaixo de 3 Salários Mínimos (SM). (incluindo o gasto com o ensino superior público). Significa dizer que o problema fiscal e redistributivo está menos localizado no gasto e muito mais na receita que financia cada área específica. Exemplificando: o suposto problema de focalização da previdência rural não decorre do seu público-alvo (cuja focalização é alta), mas sim do fato de que são os trabalhadores pobres urbanos que financiam esses trabalhadores relativamente mais pobres do campo, num cenário em que a União se apropria dos recursos constitucionais assegurados para essa finalidade.

 

Contra as evidências acima, me disse outro dia um economista de alta patente do Banco Mundial: “Despesas com juros da divida publica não são discricionárias. Só pensa assim quem acha que os juros pagos pela divida pública são uma opção arbitrária de política econômica sem consequências além das distributivas. Caso se queira reduzir juros não há outro modo a não ser reduzir as necessidades de recorrer aos rentistas, ou seja, reduzir necessidades de financiamento.” Mas, se é assim, como então explicar a queda dos juros em 2017, uma vez que as necessidades de financiamento “acima da linha” são as maiores já vistas desde 1999? Taxa de juros em país que emite a própria moeda é em grande parte exógena, não tem nada a ver com risco de default interno porque por definição isso não existe: o governo não quebra! É claro que num mundo com hierarquia de moedas há taxas de juros mais ou menos exógenas, mas as questões aí são outras: de equilíbrio externo, instabilidade dos fluxos de capitais, volatilidade do câmbio. Ou seja, não tem muito a ver com o financiamento na própria moeda. De todo modo, o acúmulo de reservas internacionais e as baixas taxas de juros no mundo desenvolvido aumentam a flexibilidade – inclusive para baixo – da política monetária aqui praticável.

 

Em outras palavras: se temos uma grande necessidade de financiamento (déficit nominal, que inclui juros), o gasto com juros é alto porque a taxa de juros cobrada pelo setor privado ao governo é alta. Mas não é o BC que define a taxa de juros? E por que temos um déficit nominal elevado? Quase sempre, e mesmo depois da crise de 2014, o resultado primário (sem juros) no Brasil é melhor do que o dos países de renda média (Chile, China, México, Índia, Argentina, Colômbia, Rússia, etc.). Ou seja, a carga de juros é alta porque a taxa de juros é historicamente elevada e não porque historicamente gastamos mais do que arrecadamos. Aliás, os maiores saltos da dívida pública brasileira no período pós-real foram em 1994-99, e em 2002. Eles estiveram pouco relacionados a déficits primários descontrolados, mas sim a taxas reais de juros estratosféricas (20% a.a. na época do câmbio fixo) e endividamento público externo ou atrelado ao câmbio.

 

Prosseguindo: diz o relatório que “ao longo das duas últimas décadas, o Brasil observou um consistente aumento dos gastos públicos, o que agora coloca em risco a sustentabilidade fiscal.” Ora, mais uma vez é preciso separar o gasto real do financeiro. Este último cresceu mais que proporcionalmente ao gasto real. Por sua vez, o aumento do gasto real observado entre 2003 e 2013 esteve acompanhado do aumento mais que proporcional da arrecadação tributária, pois esta – sendo regressiva como é no Brasil – possui multiplicador maior que um em relação ao PIB e ao próprio gasto real do setor público. De modo que a brecha fiscal que se abriu desde 2015 se deve menos ao crescimento explosivo do gasto (que decididamente não aconteceu) e muito mais ao colapso da arrecadação decorrente dos seguintes fatores: desastrosa política de desonerações em contexto de retração econômica; queda do crescimento e correspondente arrecadação (pois esta é pró-cíclica no Brasil); aumento da sonegação e evasão fiscal, estimulada pela campanha política de negação do Estado e pelo próprio governo com seu conjunto de medidas de isenções, perdões, Refis e afins.

 

De modo que, para começar a solucionar o problema fiscal, a EC/95 (que estipula um teto global para os gastos públicos) precisará ser revogada pelo próximo governo eleito, se eleição houver! Pois ela sufoca e colapsa diversas políticas públicas (sobretudo na área social) que necessitam de gastos correntes para existir e funcionar e, ao mesmo tempo, induz a economia como um todo a um regime de semi-estagnação, já que o gasto público é, no Brasil, o principal sinalizador e estimulador dos gastos privados de monta, mormente em áreas de grandes investimentos etc.

 

Mas a EC/95 também desestimula a produção privada em setores não intensivos em capital ou investimento, como o são quase todos os grandes setores fornecedores de bens e serviços correntes ao governo, como as áreas de educação, saúde, custeio da máquina pública etc. Ou seja, travar compras governamentais significa travar o poder indutor do gasto e do investimento privado mesmo em setores tradicionais da indústria nacional que são muito dependentes dos gastos públicos e, dificilmente, terão condições de dirigir sua produção para o mercado externo.

 

Ainda do ponto de vista da obsessão fiscal, diz o relatório que “a fonte mais importante de economia fiscal de longo prazo é a reforma previdenciária.” Pois eu diria: é claro que não! De uma perspectiva de longo prazo, tanto o RGPS como o RPPS federal já estão minimamente equacionados do ponto de vista atuarial com as regras aprovadas e vigentes desde 1998, 2003 e 2013. Definitivamente, não é tornar a previdência pública superavitária (isso em si mesmo um disparate num país ainda tão desigual e heterogêneo como o Brasil, onde a previdência tem sim que cumprir um papel redistributivo) que o problema fiscal brasileiro de longo prazo vai se resolver. Esse problema apenas pode ser resolvido, numa economia como a brasileira, a partir de um mix de reformas estruturais das quais eu destaco as seguintes: i) reforma tributária progressiva na arrecadação e redistributiva no gasto, orientada por objetivos de simplificação, racionalização, progressividade e vinculações sociais e regionais mínimas; ii) reforma financeira que tanto desestimule aplicações e enriquecimento financeiro como estimule a reinversão produtiva, tanto dos estoques de riqueza real e financeira como dos fluxos correntes de rendas do capital; e, iii) recalibragem do gasto real em cada área específica de política pública, segundo a tríade eficiência, eficácia e efetividade do gasto.

 

Tudo isso porque a lógica por trás do ajuste fiscal proposto pelo Banco Mundial passa longe de quaisquer critérios de equidade e justiça distributiva. No caso da previdência social, prima apenas por introduzir critérios de capitalização individual num sistema que a Constituição Federal de 1988 formulou e organizou como de solidariedade intergeracional e repartição simples. Ao tornar a previdência pública autofinanciável por seus próprios “clientes”, esta reforma vai tanto expurgar parcela considerável de pessoas que jamais conseguirão cumprir os seus requisitos mínimos, como eliminar o seu potencial redistributivo (em nível intergeracional e regional), tornando-se mais um elemento concentrador de renda no país.

 

Ademais, nunca ninguém diz que parte importante do gasto público alocado aos programas sociais que transferem renda (previdência, BPC, bolsa família etc.) é  autofinanciado pelos próprios beneficiários, já que consomem tudo o que ganham! Ou seja: considerando a renda domiciliar em geral baixa do público beneficiário e a regressividade da estrutura tributária centrada em impostos e contribuições sobre o consumo de bens e serviços, parte considerável da arrecadação que financia tais programas provém, em primeira instância, dos gastos de consumo desses segmentos sobre os quais incide a maior parte dos tributos no Brasil. Em termos relativos, isso é tanto mais verdadeiro quanto mais pobre for o beneficiário.

 

Já no caso do Regime Próprio de Previdência dos servidores públicos federais, diz o relatório que “os déficits do RPPS e a iniquidade do sistema previdenciário como um todo poderiam ser solucionados por meio da remoção dos privilégios concedidos aos servidores públicos contratados antes de 2003.” Em relação a este ponto, outro absurdo desse documento – e da ideologia punitivista e individualista que o ampara – é tratar como iguais segmentos e sistemas muito diferentes entre si. É preciso tanto separar o RGPS do RPPS como separar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para tratar da previdência de cada um em separado. Ao fazer isso, ver-se-á que o RPPS do Executivo já eliminou a maior parte dos privilégios e já desenhou soluções atuariais (como o teto e a contribuição elevada nas fases ativa e inativa de vida dos servidores, aposentados e pensionistas) que praticamente resolvem o problema estrutural no longo prazo. Hoje em dia, tornar-se servidor público não parece um bom negócio. Embora o  salário corrente em algumas áreas seja ainda bom (relativamente a ocupações similares no setor privado), esse contrato paga, relativamente, mais Contribuição Previdenciária (em termos percentuais sobre a folha) e Imposto de Renda Pessoa Física (diretamente sobre a folha); não possui FGTS e está preso ao teto do INSS quando da aposentadoria.

 

Quanto à massa salarial do funcionalismo público federal, mesmo considerando os aumentos reais do período recente, é possível afirmar que eles foram efetiva e orçamentariamente incorporados à estrutura de gastos do Estado brasileiro porque tais aumentos (de pessoas e de salários) vieram acompanhados de aumentos mais que proporcionais da arrecadação e do PIB no mesmo período. De modo que a relação “gastos de pessoal sobre o PIB”, mas também sobre a arrecadação total e sobre a massa salarial do setor privado, estiveram praticamente estabilizadas entre 2003 e 2013. Sem falar que o quantitativo de servidores civis ativos hoje na União é praticamente o mesmo de 30 anos atrás! Tendo havido, não obstante, uma mudança importante na composição final desses servidores no sentido de maior e melhor profissionalização, pela qual há, hoje, mais servidores em atividades finalísticas que intermediárias;  mais mulheres; mais negros; e, maior escolarização que há 30 anos.

 

Por fim, importa lembrar que esse mesmo contingente de servidores produz, hoje, em termos de entregas de bens e serviços à população, muito mais que antes. De modo que sou obrigado a concluir, mesmo usando o raciocínio rasteiro dos economistas, que o setor público brasileiro hoje é mais produtivo que antes! Com isso não quero dizer que não haja espaço para ajustes e melhorias, evidentemente. Mas, sim, dizer que os problemas existentes em termos de ocupação e atuação do setor público brasileiro dizem respeito mais a aspectos do ciclo laboral no serviço público (tais como: seleção, alocação, progressão, remuneração, sindicalização, representação e aposentação) que ao enganoso e simplista discurso seja do inchaço da máquina seja da explosão dos gastos com pessoal.

 

Portanto, tudo somado, é preciso concordar com Dani Rodrik: “O problema real é que a economia dominante se camufla muito facilmente em ideologia, restringindo as escolhas que aparentemente temos e fornecendo soluções convencionais. Uma compreensão adequada da economia que está por trás do neoliberalismo nos permite identificar – e rejeitar – a ideologia quando se disfarça de ciência econômica. Mais importante ainda, isso nos ajudaria a desenvolver a imaginação institucional de que nós realmente precisamos para reformular o capitalismo para o século XXI.” (Rodrik, D. Salvando a economia do neoliberalismo. Appud Carlos Drummond, Carta Capital, n. 980, 29 de novembro de 2017).