Neoliberalismo e marchas: o que uma coisa tem a ver com a outra?

Eduardo Fagnani*

Nesta série de artigos procura-se sublinhar algumas afinidades entre as marchas populares de junho de 2013 e as das décadas de 1970-1980. Em essência, os movimentos anteriores lutavam pela democracia e pelos valores do Estado de Bem-Estar inscritos na Constituição de 1988. Hoje, questionam a qualidade da democracia e da cidadania social que vigoram no país.

Nos textos anteriores, argumentou-se que, entre 1998 e 2013, por diversas vezes as ruas ganharam, mas não levaram. As elites dirigentes várias vezes conseguiram mudar para conservar o status quo. Essas manobras, iniciadas na transição democrática, foram aprofundadas entre 1990 e 2002, quando se formou no Brasil o grande consenso favorável ao projeto neoliberal.

No campo político, inicia-se o longo ciclo de crise da democracia participativa, a mesma que agora, em 2013, está sendo contestada. Assiste-se, nessa quadra, à remontagem da tradicional coalizão que tem sustentado o poder conservador no Brasil. Políticos identificados com a ditadura e outros identificados com o projeto reformista democrático dos anos 1970 passaram a ser a base de sustentação do antagônico projeto liberalizante.

No campo da cidadania social, a conservação do status quo social passava a exigir a eliminação do capítulo sobre a “Ordem Social” da Constituição da República. O Estado mínimo, cerne da agenda liberalizante, é a antítese do Estado de Bem-Estar Social, cujos valores foram consagrados na Carta de 1998 (e, em tese, assegurariam o tal “padrão Fifa” exigido pelas ruas).

É verdade que o neoliberalismo corresponde à etapa da concorrência capitalista no contexto da globalização. Mas muitos autores sustentam que no Brasil houve opção “passiva” ao projeto. No próximo artigo analisaremos o caso brasileiro. Neste, serão privilegiadas as mudanças ocorridas no plano internacional.

A partir do final dos anos de 1970, a ideologia neoliberal ganha expressão no cenário internacional. Para José Luis Fiori, essa ascensão inicia-se nos anos de 1960, quando as teses de Friedrich von Hayek e Milton Friedman e de tantos outros começaram a ganhar espaço acadêmico, sobretudo nas universidades norte-americanas. O fator decisivo da passagem da teoria para a prática ocorreu com a chegada ao poder das forças liberal-conservadoras, a partir da vitória eleitoral de Margaret Thatcher (1979), Ronald Reagan (1980), e Helmut Kohl (1982). Nesse contexto, destacou-se o pioneirismo da experiência de Thatcher, organizada sobre o tripé da desregulação, da privatização e da abertura comercial. Nos anos de 1980, essas ideias foram consagradas pelas organizações multilaterais que se transformaram no núcleo de formulação do pensamento e das políticas neoliberais voltadas para o ajustamento econômico da periferia capitalista. O neoliberalismo ganhou expressão ainda maior após a queda do Muro de Berlim (1989). De lá para cá, essas ideias se transformaram no “pensamento único”, uma espécie de “utopia quase religiosa”, afirma o autor.

No plano econômico, a estratégia imposta aos países subdesenvolvidos para ajustarem-se à nova ordem capitalista mundial foi sintetizada no chamado Consenso de Washington, que impunha condicionalidades aos países periféricos para renegociação das dívidas externas agravadas pela crise de 1982. A readmissão no sistema financeiro internacional dependia da adoção de programa de “ajuste” macroeconômico ou de estabilização monetária, tendo como prioridade absoluta a obtenção de superávit fiscal primário que envolvia, invariavelmente, a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública. O ajuste macroeconômico era complementado por um conjunto de reformas estruturais voltadas à liberação financeira e comercial, desregulação dos mercados, privatização das empresas estatais e redução do Estado. No início dos anos 1990, essas regras já haviam sido impostas a mais de sessenta países, sobretudo da periferia subdesenvolvida.

No campo político, “o capitalismo transformado em sentido neoliberal minou as bases da democracia liberal representativa” e ocorre “ampla submissão da sociedade civil e do Estado à economia”, afirma Joachim Hirsch. Para ele, o processo de globalização é na essência um ataque às conquistas democráticas do século 19 e, sobretudo, do século 20. O objetivo exitoso da “grande contraofensiva neoliberal” era criar um sistema político-econômico livre de “interferências democráticas”. Estabeleceu-se “um sistema mundial de Constitucionalismo neoliberal” que, na prática, “retirou de cada Estado a possibilidade da influência política democrática”.

Nesse processo, o caráter do sistema político também sofreu modificações essenciais. O sistema fordista de “partidos populares”, que aglutinavam amplos interesses sociais e procuravam influenciar os processos políticos decisórios, passou a ser “coisa do passado”. Esse modelo foi substituído pela ideia da “individualização“, impulsionada pelos próprios partidos, pela qual o comportamento de mercado penetra em todas as áreas da vida, desde a família até as escolas e as universidades. Para Hirsch, o indivíduo como “empresário de si mesmo“ torna-se a figura central das relações sociais.

Com a hegemonia dos mercados desregulados, a política deixou de tutelar a economia. A sociedade perdeu a capacidade de conter o ímpeto desagregador das forças de mercado. Na percepção dos críticos da Golden Age (1947-1973), “havia Estado demais, regulamentação demais, controles demais, sindicatos demais, proteção social demais, intervenção demais. Enfim, política demais!” A partir de meados da década de 1970, “a economia passou a se vingar da política”, afirma Frederico Mazzucchelli.

O neoliberalismo é um produto da “derrota da luta social”. A partir do final dos anos 1960, começou a haver certo incômodo com o poder dos sindicatos e com a interferência do Estado. Para Luiz Gonzaga Belluzzo, “a primeira coisa que Reagan e Thatcher fizeram foi derrotar os sindicatos”. Esse foi o fator decisivo para impulsionar o neoliberalismo.

De fato, o “ataque” aos direitos trabalhistas constitui um dos núcleos da ofensiva dos mercados. “Na base de tal ‘redirecionamento’ estava a vontade de quebrar a espinha dorsal dos sindicatos e dos movimentos organizados da sociedade”, segundo Sônia Miriam Draibe. De acordo com Jorge Mattoso, configurou-se uma situação de “desordem do trabalho”, percebida pela crescente ampliação da insegurança observada em diferentes níveis: no mercado de trabalho, no emprego, na renda, na contratação e na representação do trabalho. Houve aumento das demandas pela “flexibilização” e desregulamentação dos mercados de trabalho, segundo Carlos Alonso Barbosa de Oliveira.

Outro foco da revanche dos mercados foi o Estado de Bem-Estar, tido como manifestação do excesso da intervenção estatal durante a Golden Age.1 O ideário do Estado do Bem-Estar Social foi esconjurado em favor do ideário do Estado mínimo, que representa sua negação: focalização versus universalização; assistência versus direitos; seguro social versus seguridade social; mercantilização versus serviços públicos; contratos flexíveis versus direitos trabalhistas e sindicais.

O núcleo do Estado mínimo é ocupado por políticas focalizadas de combate à pobreza extrema. Essa “estratégia única” também abria as portas para a privatização dos serviços sociais. Ao Estado cabe somente cuidar dos “pobres” eleitos pelos organismos internacionais (aqueles que recebem até US$ 2 por dia). Os que estão “acima” dessa arbitrária “linha de pobreza” precisam buscar no mercado privado os serviços de saúde, previdência, saneamento, transporte público, educação e outros bens e serviços sociais básicos.

O Chile foi o laboratório do paradigma liberalizante para os países subdesenvolvidos. Com base nessa experiência, desenvolvida no início dos anos de 1980 por delegação de Pinochet a Milton Friedman, o Banco Mundial elaborou o conhecido “modelo dos três pilares”. Ao Estado cabia somente atuar de forma focalizada no “pilar inferior”, onde se concentra a “pobreza” arbitrada pelas agências internacionais. Para os “pilares intermediários e superiores”, as “soluções” seriam ditadas pelo mercado. A privatização foi imposta para setores essenciais, como saúde (WORLD BANK, 1993), previdência (WORLD BANK, 1994), saneamento e transporte público. No Chile, a educação também foi privatizada. No caso da previdência, nos anos de 1990 nove países de América Latina e treze da Europa Oriental e Ásia fizeram as reformas paradigmáticas propostas pelo Banco Mundial.

O que isso tudo tem a ver com as marchas de 2013? De um lado, porque por esse processo se fez o esvaziamento da política e da democracia. De outro, pelas contramarchas impostas à cidadania social (o tal “padrão Fifa”). Como foi sublinhado nos artigos anteriores, a Constituição de 1988 instituiu um sistema de proteção social inspirado nos valores dos regimes de Estado de Bem-Estar Social (Direitos, Igualdade, Universalidade e Seguridade Social). Mas isso passou a ser incompatível com o ajuste macroeconômico e a reforma liberal do Estado. Essas faturas estão sendo cobradas pelas marchas populares de 2013.

O próximo artigo analisará a forma pela qual as elites brasileiras dos anos de 1990 acolheram esse projeto e suas repercussões na cidadania social. Diversos autores sustentam que, com a convicção de que “não há outro caminho possível”, os governos abriram mão das possibilidades de exercício de políticas públicas mais ativas em defesa dos interesses nacionais.
Referências

BARBOSA DE OLIVEIRA, C.A. “Contrato coletivo e relações de trabalho no Brasil”. In: BARBOSA DE OLIVEIRA, C.A.; SIQUEIRA NETO, J.; OLIVEIRA, M.A. (Org.). O Mundo do Trabalho – Crise e Mudança no Final do Século. Campinas: Cesit-IE-Unicamp-Página Aberta, 1994.

BELLUZZO, L.G. Entrevista resumida e publicada no Portal Carta Maior com o título “Com os dogmas neoliberais não se constrói uma nação e o seu desenvolvimento”, 17/7/2013.

DRAIBE, S.M. “As políticas sociais e o neoliberalismo – reflexões suscitadas pelas experiências latino-americanas”. Revista da USP n. 17. São Paulo: USP, 1993.

FIORI, J.L. Os Moedeiros Falsos (Coleção Zero à Esquerda). Petrópolis: Vozes, 1997, p. 206-207.

HIRSCH, J. “O fim da democracia liberal”. Publicado inicialmente em www.links-netz.de. Tradução de Luciano C. Martorano para o portal Fundação Mauricio Grabois, 2013. (http://grabois.org.br/portal/revista.int.php?id_sessao=21&id_publicacao=…).

MATTOSO, J. A Desordem do Trabalho. São Paulo: Scritta, 1995.

MAZZUCCHELLI, F. “Nem sempre foi assim!”. Caderno Temático 1 – “Política social e desenvolvimento: o Brasil entre dois projetos. http://www.politicasocial.net.br/index.php/caderno/caderno-tematico1/132… (acesso em 30/7/2013).

WORLD BANK. Investing in Health. Oxford, England: Oxford University Press, 1993.

WORLD BANK. Envejecimiento sin Crisis: Políticas para la Pprotección de los Ancianos y la Ppromoción del Crecimiento, Oxford University Press, 1994.

Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT/IE-UNICAMP) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento.

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