Artigo 45 | O jogo de varetas e a desconstrução da cidadania

Amélia Cohn

 

Que os direitos sociais e as políticas sociais que os promovem estão sendo atacados, não há dúvida. O trágico, porém, é que não se trata de mera destruição ou demolição desse conjunto institucional construído a partir da segunda metade dos anos 90, redirecionado e aprofundado na perspectiva do combate à pobreza e à desigualdade social nos anos 2000. Mais do que mero bloqueio ou paralisia, trata-se de impiedosa e bem urdida operação de desconstrução de tudo que foi conquistado nesse período mais recente – e, reitero, com muito mais acertos do que erros. A urdidura segue a lógica do jogo de varetas ao contrário: não se trata de conseguir tirar uma vareta sem afetar o conjunto, mas de tirar aquelas que mais afetam e desconstroem o conjunto, aparentemente sem alterar o todo.

O primeiro passo para essa desconstrução se dá na área econômica. Por meio dos cortes orçamentários na área social – seguidos de perto na educação e saúde – asfixia-se a possibilidade de avanços reais na efetivação da cidadania para os expressivos segmentos da sociedade até o momento excluídos do mercado, dos direitos sociais, e da dignidade social e pessoal. Neste quesito chega-se não se recua diante do risco do morticínio em massa, representado pela fixação do orçamento para educação e saúde para os próximos vinte anos. Mudanças no perfil demográfico da população, possibilidades de ressurgimento ou continuidade de epidemias (que certamente ocorrerão diante das consequências sociais do ajuste do modelo econômico e orçamentário em prática) e novas, como a zika, não contam. Os que sobreviverem, testemunharão. Tampouco ciência e tecnologia são importantes para os novos mandatários: está aí o anúncio do corte de 45% da verba para as universidades federais. O que significa, em pleno século XXI, um desastre de prazo ainda mais longo.

O segundo passo é dado por mudanças nas regras do jogo em pleno jogo: o mesmo “pecado” atribuído à ex-presidenta Dilma é agora legalizado imediatamente após sua destituição por votação no Congresso Nacional. As regras do jogo institucional, portanto, não contam, porque podem ser mudadas a partir do alvitre de um congregado de pessoas que representam apenas seus interesses particulares. Que no geral coincidem com interesses privados dos grupos econômicos dos quais se originam.

O terceiro passo traduz a mudança radical dos governos – os três anteriores e atual – em termos de sua postura diante de seus pares latino-americanos e das potências internacionais. Fotos recentes das reuniões do G20 explicitam essa mudança: da trajetória de uma construção de um país autônomo, com amor próprio, consciente de sua importância e obstinado a ocupar seu lugar no mundo, passa-se a uma postura subalterna para com os poderosos, internacionalizando nossas riquezas a preço vil, e a uma postura agressiva e desrespeitosa com relação aos países seus pares na América Latina. Trata-se, neste momento, do imperialismo norte-americano, consentido e aplaudido. E praticado por personalidade que na década de 60 acusava esse imperialismo! Irônico se não fosse trágico!

No mundo do trabalho temos o quarto passo: a PEC 241 retira direitos pétreos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que a reforma da previdência que vem sendo anunciada em balões de ensaio fará que seu modelo chegue àquele chileno já tão decantado entre nós, de capitalização privada para “quem for capaz”, e de depender da sorte da sobrevivência depois das idades mínimas definidas e dos anos de contribuição para que possam ter acesso aos benefícios. Isso enquanto a grande massa dos assalariados não se transformar em “colaboradores”.

Mas isso para os novos reinantes é pouco. Até aí seria a destruição do sistema de proteção social bem ou mal conquistado na última década e meia. Há que desconstruí-lo. Para tanto, uma primeira diretriz consistente, embora aparentemente não o seja, é cortar programas setoriais que vêm tendo excelentes resultados, tais como o SAMU (assistência médica de urgência, os resgates), o Farmácia Popular, que complementa os serviços do SUS ao dispor medicamentos que não se encontram nas unidades dos serviços próprios do SUS sem onerar os usuários do sistema, obedecendo prioridades a partir de  maior incidência de enfermidades na população. Medicamentos gratuitos estes, aliás, que são acessíveis para todos, ricos ou pobres. E na perseguição da racionalidade custo/efetividade propõe-se privatizar os serviços públicos estatais, por meio de PPP (parcerias público-privadas) ou não, e ir acabando paulatinamente com o Programa Mais Médicos. Médicos cubanos são perigosos porque demonstram a viabilidade de um modelo de assistência à saúde que em grande parte dispensa tecnologia médica no atendimento básico à saúde, e a necessidade de uma formação profissional que só muito recentemente entrou para o currículo médico.

Os programas universais em saúde que buscam não fragmentar a oferta de serviços e assim não segmentar a população por tipo de acesso às diferentes modalidades de prestação de serviços públicos estatais e não estatais de saúde, são asfixiados anunciada sua substituição por propostas de privatização da oferta e produção de serviços de saúde, que agora sim traduzem-se em serviços de prestação de serviços médicos. A proposta em estudo pelos representantes do setor privado da saúde que participam de comissão nomeada pelo Ministério da Saúde consiste num modelo de oferta de Planos de Saúde Acessíveis, leia-se de baixa cobertura e de baixa qualidade, para “desafogar o SUS”. Não é preciso ser especialista no tema, basta ter um mínimo de bom senso, para saber que uma “porta de entrada” de baixa qualidade, com baixíssima oferta de uma cesta de serviços, certamente pressionará o SUS por aumento da demanda de assistência de média e alta complexidade. Mas, mais do que isso, tal como o PAS (Plano de Atendimento à Saúde, que disponibilizava um cartão de saúde aos usuários das unidades básicas de saúde maquiadas e não prestando atendimento de qualidade) implementado por Maluf em São Paulo, ou propostas de atuais candidatos às prefeituras de ofertar um cartão de saúde para os munícipes, como se já não existisse o Cartão SUS, o que se cria, e que é o mais importante de acordo com as atuais diretrizes mal forjadas mas muito bem definidas dos atuais governantes é a produção da consciência de que saúde não é um direito do cidadão e um dever do Estado, mas sim um bem de consumo; bem verdade que diferente de um cachorrinho de controle remoto que fala chinês, mas um bem de consumo, embora diferenciado. Aí está a desconstrução do projeto do SUS.

Da mesma forma, há que se investir nessa desconstrução da cidadania em outras áreas de atuação do poder público. Privatiza-se a educação, também por meio de PPPs, propõe-se uma “Escola Sem Partido”, acaba-se com o programa Brasil Alfabetizado, que afinal tem como público alvo aqueles não mais úteis à sociedade.

Vamos à assistência social. Ela retorna ao lugar de onde a duras penas foi tirada: o cuidar, o maternar os pobres, é tarefa para mulheres. E essa atribuição lhes é dada a partir de suas qualificações não profissionais, mas pessoais: ser mulher de alto executivo de cargo público, ser mãe e por aí vai. Aliás, no caso em questão, talvez a primeira dama atual fosse qualificada por seus atributos pessoais a cuidar não apenas de crianças até 1000 dias de vida filiadas ao Programa Bolsa Família, mas também de idosos. Tal como talvez avós fossem mais capacitadas para cuidar daquela proposta do que mães, já que criaram filhos e netos.

Em suma, pobre agora é questão para mulher, e esta torna-se mera coadjuvante de um quadro de governantes machos. Em tudo estamos voltando ao pré 1964. Um dos avanços significativos no resgate do papel das mulheres como gestoras competentes e consequentes de seus atos tem início no governo FHC com Ruth Cardoso, antropóloga pioneira no estudo dos movimentos sociais e da sociedade civil, dirigindo como profissional competente o Comunidade Solidária, criado em 1995. Não era um cargo e uma função de primeira dama, mas um programa com propostas claras, dirigido por homens e mulheres, estas com poder advindo estritamente da sua expertise. A participação das mulheres tem continuidade nos governos Lula e Dilma, com elas dirigindo programas de emancipação, das próprias mulheres e dos negros, e posteriormente ocupando ministérios, inclusive na área econômica. Em contraste, agora as mulheres tornam-se meras coadjuvantes. Eis aí mais um elemento da desconstrução da consciência cidadã por parte principalmente dos pobres (hoje não mais vistos da perspectiva de portadores de direitos), e reafirmação da cidadania como privilégio por parte dos ricos, ou dos não pobres, mais precisamente.

Para arrematar, cria-se agora no interior do Ministério do Planejamento a Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, com vistas a submeter à inquisição de um julgado se candidatos a cargo público, para fins de ocupação de cotas para negros, são efetivamente negros ou não, a depender da cor da pele. Tais como os pobres que nas palavras do ministro da saúde “imaginam doenças para procurar o SUS”, os demais imaginariam sua cor de pele para ter acesso ao “privilégio das cotas”. Não basta a autodeclaração racial, há que se verificar se são negros mesmo. Daqui a pouco, talvez verificar se todos os circuncidados são efetivamente judeus, quem sabe a partir do perfil de seu nariz; e para verificar se os indígenas (aqueles que sobreviverem ao genocídio de que têm sido vítimas, o que ao que tudo indica só tenderá a aumentar) são mesmo indígenas, talvez por meio de algum “ritual” igualmente humilhante. Pois é dessa forma que se fabricam novas versões de racismo e de discriminações.

Enfim, é por essa via que retornamos a um conjunto – só aparentemente desarticulado – de ações públicas que avançam para um passado em que os pobres e despossuídos, vivendo em situação do que vem se nomeando de “emergência econômica”, voltam a ser o público alvo de políticas públicas que os fazem retornar ao seu devido lugar: o de subalternos, circunscritos a determinados espaços de convivência que não maculem aqueles dos não pobres, culpabilizando-os por sua situação de pobreza, já que incapazes de sobreviverem via mercado. Pois é este o objetivo, que o mercado então os atinja por meio de políticas públicas que não mais vêm com o conteúdo de direitos de cidadania, mas como bens de consumo ou benefícios assistenciais.

Quando em 2005 FHC afirma “vamos sangrar o PT”, na verdade a proposta mais ampla inscrita nisso revela-se agora, em 31 de agosto: envolvia “sangrar” o projeto que vinha sendo implementado, de construção de um país e uma sociedade mais justa, alegre, democrática e soberana, construída segundo os valores e preceitos da cidadania. O que na realidade com aquela frase se estava afirmando era que o objetivo dessa sangria consistia em avançar para o passado, caracterizado por uma sociedade discricionária, autoritária, submissa aos interesses internacionais. É diante desse quadro que nos encontramos: de desconstrução, e não mero desmonte (o que já não seria pouco), dos avanços implementados neste início do século XXI.

Dessa perspectiva, nada mais atual na demonstração da corrosão da estrutura de um edifício social que poderia estar fundamentando nossa sociedade no sentido de ser mais justa e generosa do que o magistral filme Aquarius. Quem já assistiu, saberá do que estou falando, e quem ainda não, assistindo se dará conta do que se trata.