O legado e o dilema de Temer

Fabrício Augusto de Oliveira[1]

 

Michel Temer é um presidente no mínimo intrigante. Com menos de 5% de aprovação pela população, tem insistido que, para contar com seu apoio, o candidato a substituí-lo no cargo presidencial tem de se comprometer com a defesa de seu legado. Mesmo para os que se encontram aboletados em cargos públicos e pretendem participar dessa disputa, não é uma tarefa fácil saber a que legado ele se refere por não ser possível identificar, mesmo com muito esforço, alguma iniciativa de seu governo que seja defensável.

 

Dos seus principais mosqueteiros iniciais, três se encontram presos (Cunha, Gedel e Henrique Alves) e três são alvos de inquérito no Supremo Tribunal Federal (Moreira Franco, Eliseu Padilha e Romero Jucá). O próprio Temer conseguiu, pelo menos temporariamente, escapar de ter de responder a dois processos de corrupção pelas mãos salvadoras do Congresso Nacional, que não tem o hábito de deixar seus pares abandonados na chuva, especialmente quando seus membros são recompensados pelo guarda-chuva emprestado com cargos públicos e liberação de emendas parlamentares. Ainda assim, não se livrou de todos os processos, pois outras denúncias continuam sob investigação.

 

Desde que assumiu, não tem hesitado em adotar uma série de medidas para atender as demandas de deputados, de lobistas de empresas e dos poucos grupos que o apoiam, em troca de favores, mesmo que, para isso, sacrificando a sociedade e os direitos humanos mais fundamentais, jogando a conta para o Estado. Assim aconteceu com a aprovação de anistias tributárias e ambientais e com medidas voltadas para enfraquecer os direitos indigenistas e garantir a depredação da exploração fundiária, sempre com o objetivo de assegurar ganhos para as aves de rapina do dinheiro público. Até mesmo uma medida que restabelecia a prática do trabalho escravo no país, para agradar a bancada ruralista no Congresso, foi por ele endossada, por meio de Medida Provisória, que o STF teve, no entanto, o bom senso de barrar.

 

Ultimamente, Temer tem insistido em aprovar a indicação da deputada Cristiane Brasil para a pasta do Ministério do Trabalho, o que lhe tem rendido não poucos aborrecimentos, por seu nome ter sido vetado pela justiça, pelo menos até o momento. Pelo que divulga a imprensa, Cristiane respondeu e perdeu dois processos na justiça trabalhista por não respeitar as leis que regem a contratação de trabalhadores, como, por exemplo, a exigência de assinatura da carteira de trabalho, eximindo-se, com isso, de ser obrigada a pagar seus direitos trabalhistas. Para qualquer pessoa de bom senso, soaria como despropósito sua indicação para comandar essa pasta por ignorar e desprezar as leis que protegem o trabalhador. Para Temer e para os áulicos que com ele caminham, isso não tem a menor importância, devendo prevalecer a autonomia do Executivo nessa indicação, que consideram necessária para continuar contando com o apoio do partido do pai de Cristiane, o PTB de Roberto Jeferson, aquele mesmo do Mensalão, nas votações do Congresso.

 

No campo da economia, Temer tem se jactado, aplaudido pelos economistas da ortodoxia, funcionários regiamente pagos pelo capital, de ter viabilizado reformas importantes e retirado o país do pesadelo da recessão em que o lançou a ex-presidente Dilma Rousseff. Até onde se tem notícia, apenas duas reformas saíram em seu governo, ambas prejudiciais para a população e os trabalhadores. A primeira, o congelamento, em termos reais, por 20 anos, dos gastos primários do governo federal, indicando a redução da participação relativa das políticas sociais no orçamento, num país onde as desigualdades além de gritantes são crescentes. A segunda, a reforma trabalhista, que enfraqueceu a rede de proteção dos direitos dos que trabalham e aumentou sua dependência dos humores do capital nos ciclos econômicos. Já a reforma previdenciária defendida pelo governo, apesar de necessária por questões demográficas, mas que felizmente parece com os dias contados, penaliza os trabalhadores de uma maneira geral, para preservar os privilégios dos que têm voz e influência nas decisões do Estado, ao contrário do que o governo Temer procura vender para a população, visando viabilizá-la politicamente.

 

Quanto à retirada do país da recessão, por enquanto não há muito a comemorar e tal fato nem mesmo parece ter sido fruto da política econômica, mais preocupada em sugar o pouco de vida que ainda poderia existir no sistema econômico para promover o ajuste fiscal, com o qual, os membros da equipe econômica acreditam, se abririam as portas para a retomada dos investimentos e do crescimento. É bem verdade que depois de desabar mais de 8% entre 2014 e 2016, o PIB deve registrar um crescimento de 1% em 2017, enquanto as projeções para 2018 indicam uma expansão de 2,5% da economia.    Nada disso, no entanto, parece garantido para este ano.

 

O crescimento de 2017 se deve muito ao fato de a economia ter atingido um ponto de inflexão depois da queda espetacular de 2014/2016 e ter sido auxiliado, nessa reversão, por uma política de expansão da demanda, uma heresia para a ortodoxia, com a liberação de mais de R$ 50 bilhões das contas inativas do FGTS e dos saldos do PIS/Pasep, para o que também contribuiu a queda da inflação e a redução ainda que lenta do desemprego, além, não se pode esquecer, dos rendimentos do 13º salário que animam a atividade econômica. Afora isso, em quase nada se avançou para destravar os caminhos do crescimento, a não ser a redução da taxa Selic de 14,25% para 6,75%, devido à queda ainda mais acentuada da inflação de 9,26% em maio de 2016, quando Temer assumiu interinamente a presidência, para 2,86% em janeiro de 2018. Apesar de importante, isso, no entanto, não é suficiente para despertar o animal spirit do empresário. Este necessita de confiança no futuro para investir e essa está longe de fazer sua reaparição no cenário econômico.

 

Se não há, à vista, forças que podem desencadear um novo ciclo de crescimento um pouco mais sustentado, mesmo por que o país continua com os mesmos problemas macroeconômicos e com uma política econômica de conteúdo claramente anticrescimento, o mesmo não se pode dizer de forças em movimento que podem inibir este pequeno reensaio de recuperação.

 

Se são boas as notícias que chegam do exterior de que a economia mundial pode crescer 3,9% este ano, devido à recuperação econômica mais sólida dos Estados Unidos, da saída da União Europeia da UTI e do vigor mais forte da economia chinesa, abrindo uma nova janela de oportunidade para o Brasil dele se beneficiar, são ruins também as consequências deste movimento. Devido ao maior aquecimento global, as taxas de juros do mundo desenvolvido, que permaneceram próximas de zero por muitos anos, devem aumentar, colocando um ponto final na folia da liquidez e do dinheiro farto e mais barato que tem alimentado as economias emergentes. Para os países mais encrencados com as agências de rating, em termos de classificação dos riscos dos investimentos, caso do Brasil, tal situação pode provocar sérios ruídos na trajetória em curso de recuperação.

 

O maior nó, no entanto, reside na questão fiscal, cuja solução, acreditava-se, encontraria respostas nas mãos da ortodoxia, que prima por não titubear em sacrificar a população, se necessário, para salvar a economia. Depois de três anos comandada por excelências dessa corrente de pensamento (Joaquim Levy e Henrique Meirelles), o buraco nas contas públicas, ao contrário dessas expectativas, tem aumentado ano a ano: em 2017, o setor público, como um todo, fechou com um déficit primário de 1,69% do PIB e com um déficit nominal de 7,8% – se não o maior, um dos maiores do mundo -, devido ao custo da dívida de R$ 400 bilhões (6,1% do PIB). Como resultado, a dívida líquida do setor público encerrou o ano com o percentual de 51,5% do PIB e a dívida bruta geral dos governos com 74%. Este resultado só não foi pior devido ao ingresso no caixa do governo de um montante apreciável de receitas extraorçamentárias e à transferência, para o exercício seguinte, de consideráveis restos a pagar.

 

Como o nível de endividamento do país deve continuar em trajetória ascendente, pois, além do projeto de corte dos gastos primários, nada mais foi feito, em termos estruturais, para equacionar essa situação, pode-se considerar o Brasil sério candidato a sofrer novos cortes em suas notas de crédito pelas agências de rating, provocando novas turbulências na economia e encarecendo o crédito externo. Por mais que essas agências estejam hoje desacreditadas, com a crise do subprime nos Estados Unidos, são elas que continuam com a última palavra nessa avaliação. Por 2018 ser um ano de eleições presidenciais, este quadro de turbulência pode se agravar ainda mais pelas incertezas que essas deverão trazer, especialmente em virtude da indefinição – e pouca aceitação pela população – dos candidatos em potencial que concorrerão.

 

Não parece, assim, haver nenhum legado de Temer para ser defendido por algum candidato a presidente, seja no campo político ou econômico, a menos que esse se resigne, de antemão, com a derrota. Este tem sido, na verdade, seu grande dilema, a ponto de estar começando a levar a sério a possibilidade de ser ele próprio candidato para levar adiante essa insensatez. Mas, se chegar a tanto, conseguirá pelo menos obter os 3 a 5% de aprovação atual de seu governo? É muito pouco para quem tem se colocado como redentor dos problemas do país e uma derrota acachapante para um presidente que, mesmo sem legitimidade, terá governando o país por mais de dois anos. Vale a pena correr o risco? Para ele, parece que sim.

 

[1] Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede e O Beltrano, e autor, dentre outros, do livro “Economia e Política das Finanças Públicas no Brasil: um guia de leitura”.