Artigo 41 | Povo ferido é que dá pérolas

Juliano Giassi Goularti*

Na escrita de Nordeste (1937), Gilberto Freyre nos leva a uma poderosa reflexão: “O que nos faz pensar nas ostras que dão pérolas.” A ostra quando indesejadamente é ferida por um grão de areia e/ou parasita reage produzindo pérolas. A lapidação da pérola é resultado da dor. Neste caso, ostras felizes são aquelas que não produzem pérolas.

O golpe, orquestrado por frações de classe, articulado com os gringos e apoiado pela grande mídia que levou Michel Temer a assumir interinamente o governo, representa uma grave ferida no interior da sociedade brasileira. Para “chutar a escada” da massa de trabalhadores assalariados que estava ascendendo padrões de consumo e serviços públicos que antes eram monopólio da alta classe média e média classe média, se faz necessário feri-los para assim despossuídos.

Uma política de valorização social é frequentemente vista como “populista”, uma vez que ascende socialmente o poder social da população. Nesse caso, o “populismo” é um impulso para um aumento social relativo de frações de classe historicamente marginalizada. Ou seja, pode-se considerar que a política social-desenvolvimentista dos governos Lula e Dilma I conjugada como “populista”. Nesses anos de “populismo”, os rendimentos da alta classe média e média classe média mantiveram-se estabilizado, enquanto o ordenado dos mais pobres foi elevado pela política de valorização do valor real do salário mínimo – ver estudos do prof. Waldir Quadros.[1]

A decisão política da presidenta Dilma em reduzir a canônica taxa de juros assim com o spread bancário foi como cutucar onças com varas curtas. Desagradou o capital financeiro e frações de classe que têm rendimentos sob forma de lucros e dividendos isentos. A dor da ferida está na desvalorização dos títulos públicos, estabilização dos rendimentos da alta classe média e média classe média e na ascensão social dos miseráveis, massa trabalhadora e baixa classe média.

Adicionalmente, a robustez da Petrobrás, lei de partilha para proteger a riqueza do Pré-Sal, constituição dos BRICS e fortalecimento do MERCOSUL desagradaram os interesses dos Estados Unidos na região. Portanto, ferir os rendimentos das famílias que sobrevivem de renda, o capital financeiro que avoluma dinheiro fictício e os interesses do governo norte americano, foi motivo para apoio e financiamento do golpe.

Dado o avanço social da última década, o debate que está posto é que os gastos públicos com políticas de direitos sociais e garantias fundamentais não cabem mais no orçamento federal. Nessa acepção, ganha conotação a proposta do governo interino em desvincular despesa primária asseguradas pela Constituição Federal de 1988.

Falando em bom português, os neoliberais estão querendo dizer que não é mais possível fazer superávit primário razoável para garantir os rendimentos das famílias rentistas e do capital financeiro. Por isso as garantias constitucionais de vinculação de gastos em saúde, educação, previdência rural e benefício de prestação continuada já não cabem mais no orçamento.

Sem demora, é preciso provocar um ferimento nas famílias que sobrevivem de ordenados privando-lhes o direito e garantias asseguradas pelo orçamento público. Neste caso, o ferimento está resumido nos seguintes planos: Uma ponte para o futuro do PMDB, Agenda Brasil do Senado Federal, Agenda da CNI para sair da crise 2016-18 e Proposta de Emenda Constitucional N° 241. O mais curioso é que nenhuma dessas propostas passou pelo crivo popular e democrático das urnas, isto é, não possui legitimidade.

Uma vez consumado o golpe, essas propostas passaram no dia seguinte a fazer parte da agenda do governo interino. Sob o pretexto da crise econômica, que deriva de um conjunto de encadeamentos, o corte de direitos sociais e garantias fundamentais estão colocados como condição sine qua no para sua superação. Como diz o prof. Pedro Rossi, o ajuste fiscal é o “Posto Ipiranga” dos economistas neoliberais, ou seja, eles crêem que o ajuste é o antídoto mágico para os problemas macroeconômicos – desemprego, crise, instabilidade, incerteza, etc…

Simultaneamente os neoliberais estão pautando a crise pelo lado fiscal, dado que as despesas primárias passaram de 15% do PIB em 1998 para 20% em 2014. Atribuir às despesas primárias como “patinho feio” da crise econômica é ter uma reducionista da dinâmica da política macroeconômica. Esse “mito da gastança” apoia-se no aumento das despesas com benefícios sociais – Bolsa Família, aposentadorias e pensões do INSS, seguro-desemprego, SUS dentre outros.

A redução das desigualdades sociais e o crescimento econômico pelo lado do aumento das despesas primárias culminaram em um círculo virtuoso que beneficiou não apenas os mais pobres, mas também as elites e do setor empresarial. O que irá determinar a velocidade da rotação do fluxo circular da economia capitalista é o gasto (público e/ou privado), e não ao contrário. Em uma economia capitalista, fortalecer a política de gastos públicos é condição imprescindível para iniciar a recuperação econômica.

Para retomar o desenvolvimento, optar por “uma reforma trabalhista simples, que flexibilize a CLT, como o que consta no documento Uma Ponte para o Futuro” como coloca o prof. Yoshiaki Nakano em artigo ao Valor Econômico (09/agosto), é agravar a crise. O agravo da crise também se da pela proposta do teto do gasto (PEC-241), considerada como “fundamental” por José Ronaldo Souza Junior, do IPEA – entrevista ao Valor Econômico (09/agosto).

Estamos de acordo com o prof. Nakano que urge a necessidade de uma “reforma do Regime de Política Macroeconômica”. Mas optar pelos caminhos que estanque os gastos públicos e retire direitos sociais é ferir justamente aqueles que mais necessitam da intervenção do Estado, além de contribuir para deixar a economia brasileira patinando na crise.

A questão é que no contexto do atual do avanço das ideias ortodoxas, a teoria keynesiana que desencadearam as revoluções intelectuais modernas tornando-se um guia relevante para as políticas públicas está proibida, isto é, a Teoria Geral de Keynes entrou para o Index Librorum Prohibitorum.[2] Pasmem, os preconceitos da ortodoxia pela intervenção do Estado e pelos gastos públicos nunca foram superados.

Neste debate, a ortodoxia pouco tem a oferecer em matéria de sugestões políticas palpáveis para superação da crise. Logo, associar o ajuste fiscal social – que se traduz numa ferida social – como alternativa para superação da crise e para retomada do desenvolvimento é um mito.

Notas:

[1] 1) Melhorias sociais no período 2004 a 2008 (2010). 2) 2009 a 2012: heterodoxia impulsiona melhorias sociais (2014). 3) Paralisia econômica, retrocesso social e eleições (2015).

[2] Fernando Nogueira da Costa (2016). Ajuste fiscal sem legitimidade democrática.

*Juliano Giassi Goularti é doutorando pelo Instituto de Economia da UNICAMP e membro da Plataforma Política Social.