Reforma tributária, desoneração da folha e o arranjo fiscal atual

Denise Lobato Gentil*
Está de volta a sempre inacabada discussão sobre reforma tributária. O debate se dá num jogo de fortes tensões entre as classes sociais, porque se trata de um dos mais importantes mecanismos de partilha da riqueza produzida em nossa economia. Os tributos têm a capacidade de mudar o fluxo de renda de uma classe para outra, definir o ritmo dos investimentos, influenciar o nível de emprego e viabilizar a rentabilidade dos capitais investidos nos setores produtivos da economia. Podem, ainda, moldar a relação do país com o resto do mundo porque interferem no fluxo de mercadorias e de capital financeiro entre os países. Por todos esses motivos, a reforma é um ato essencialmente político. Seu resultado expressará a superioridade econômica e a capacidade de dominação e articulação política de alguns segmentos da sociedade, enquanto outros, menos organizados, terão seus interesses barrados e serão oprimidos pela carga tributária. Por isso é que se trata de um debate interminável, de uma luta contínua. A cada momento histórico ela ganha um sentido e uma dimensão diferenciados.

Houve várias tentativas de reforma tributária nos últimos vinte anos, mas nenhuma delas procurava enfrentar o problema da elevada concentração de renda que o próprio sistema tributário atual acaba por legitimar e reforçar. Este é um tema de elevado grau de dificuldade no campo da política. Interesses estabelecidos durante séculos precisariam ser enfrentados. É quase um consenso, entre economistas heterodoxos e entre os defensores de uma sociedade mais justa, que o sistema tributário brasileiro, para se tornar mais equitativo, teria que tributar a propriedade de forma mais progressiva e cercear a especulação imobiliária e financeira. Para isso, entretanto, seria necessário contrariar os interesses e privilégios dos proprietários de vastas áreas urbanas e rurais mantidas ociosas ou semi-ocupadas, assim como daqueles que são detentores de riqueza financeira significativamente avolumada nos anos de liberalização e globalização. Esses segmentos têm uma expressiva representação política no Congresso, o que inviabiliza a aprovação de propostas mais democráticas. Ampliar a tributação sobre o capital financeiro significaria controlar o enriquecimento desenfreado que deriva da especulação e, ao mesmo tempo, limitar a fragilidade da economia a crises cambiais e financeiras que penalizam toda a sociedade para o benefício de poucos.

As barreiras a serem enfrentadas são de difícil transposição. Os interesses do capital financeiro estão entranhados, desde os anos 1990, nos mais importantes aparelhos do Estado e a legitimação de seus privilégios é proporcionada por uma política monetária apoiada em elevadas taxas de juros, que explicitam e reforçam o poder dos proprietários de ativos financeiros na definição das políticas públicas. Como os interesses do capital imobiliário e do capital financeiro não são contrariados, a tributação indireta foi sobrecarregada.
A taxação sobre o consumo, na esfera da circulação, não distingue ricos de pobres, proprietários de expropriados. É a tributação “invisível”, não percebida facilmente pelos que carregam o seu peso – os de menor renda – e, portanto, tornou-se o caminho de menor resistência política para a elevação da carga tributária. Um sistema tributário é sempre uma síntese das forças políticas existentes na sociedade, os que têm maior poder econômico, capacidade de se organizar e de fazer os seus interesses predominarem sobre os demais, pagam menores impostos em prejuízo dos que são economicamente mais frágeis, menos informados e com menor expressão política. A reforma não é um ato espontâneo de vontade política do Executivo e de sua burocracia, é uma construção complexa, que envolve questões estruturais e que abarca uma diversidade de interesses poderosos. Dependendo das circunstâncias políticas, pode resultar em pequenos avanços ou grandes recuos, de acordo com a correlação de forças políticas que dão sustentação ao governo no momento em que a reforma ocorrer.

Os governos FHC e Lula produziram resultados precários no que diz respeito à reforma tributária, distante do ideal de uma sociedade desenvolvida com baixos níveis de desigualdade social. A justiça fiscal, entendida como um conceito associado ao de justiça social, não teve espaço na agenda desses governos. A idéia de que o sistema tributário é um instrumento capaz de impedir os de maior capacidade econômica de prosperar sobre os menos afortunados sucumbiu ao pragmatismo político que tem alimentado as alterações da legislação tributária em favor do grande capital. Houve apenas medidas tópicas que atenderam às pressões políticas cotidianas, sobre a gestão tributária.

Um clássico exemplo desse cenário ocorreu nos anos 1990, quando os tributos foram redefinidos para beneficiar o processo de financeirização da economia nacional e para dar sustentação e solvência à crescente dívida pública, esses fatos já foram fartamente analisados por bons intérpretes da política tributária. O IRPJ das instituições financeiras foi reduzido, assim como o adicional do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ); houve redução da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do IRPJ ao permitir a dedução dos juros sobre o capital próprio; e, não faltou a isenção do imposto de renda sobre remessa de lucros e dividendos ao exterior, e assim por diante. Isso sem contar com a abertura para a fuga de capitais e a evasão fiscal que decorreram da liberalização financeira.

Entretanto, como era necessário fazer crescer as receitas de impostos com o objetivo de alcançar as metas de superávit primário, a tributação indireta se elevou, através de majoração da alíquota da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), da ampliação da base de incidência do PIS/Pasep e da COFINS, da elevação da CPMF, ou seja, foi empregada a tributação regressiva, aquela que é paga pelas pessoas de menor poder aquisitivo, para compensar os privilégios tributários concedidos às elites nacional e estrangeira que investem no país, e que já eram favorecidas pelos juros excepcionalmente elevados. Esse processo não foi interrompido nos anos 2000, ao contrário, foi se agravando cada vez mais o peso da tributação indireta, corroendo o poder de compra, dos que recebem os menores salários.

A possibilidade de se fazer uma reforma tributária redistributiva da renda no cenário político atual é remota. No máximo, poderão ocorrer alguns ajustes ao modelo existente, preservando sua estrutura regressiva. Hoje, o ideal que se busca é o de simplificar o sistema tributário, resolver a guerra fiscal entre Estados, desonerar da folha de pagamentos e reduzir a tributação sobre o investimento produtivo. E isso é tudo, se tanto. A fórmula para fazer do sistema tributário um instrumento indispensável para complementar uma política social avançada implica em tomar a redistribuição de renda como o objetivo mais importante, muito acima da “eficiência tributária”, que é a eficiência para o capital (da circulação financeira e da circulação produtiva), não para a coletividade. Não seria excessivo repetir que este é um movimento essencialmente político, porque seria necessário tributar de forma intensa e progressiva a propriedade imobiliária improdutiva, rural e urbana, a riqueza financeira, as heranças, o consumo de artigos de luxo e a alta renda, sobretudo a renda do capital que não gera emprego e produção. Só assim se reduz a enorme distância entre ricos e pobres.

Seria necessário, entretanto, ir mais além. Os gastos públicos precisariam passar por uma ampla reestruturação para torná-los mais favorecedores da distribuição da renda, elevando a parcela dos recursos arrecadados para políticas sociais e econômicas voltadas ao combate à pobreza e à elevação do emprego e da renda dos assalariados. O gasto com juros teria de se reduzir para dar espaço à realização de investimentos públicos. Isso, sem dúvida, atingiria os financiadores de campanhas políticas e alguns aliados da base de apoio do governo, mesmo os que são progressistas. É evidente que cria muitas resistências. Para se viabilizar, teria que ser um movimento de fora para dentro do Estado, vindo da pressão popular, organizadas em partidos, centrais sindicais e nos aparelhos de Estado que são mais progressistas e representativos de interesses da coletividade. Esta é uma construção lenta, que exige um amplo debate nacional e grande maturidade política mas, não é impossível. Já foi enfrentada por algumas sociedades, em momentos históricos específicos, como ocorreu nos países europeus, no período do pós-II Guerra Mundial. O Japão e a Europa têm uma estrutura tributária muito mais justa.
O uso da desoneração da folha como política de redução de custos

Os setores empresariais sempre pressionam por políticas compensatórias para os quais chamam de custo-Brasil, entre eles, a elevada carga tributária, a valorização cambial e as altas taxas de juros. Entretanto, seria a estrutura tributária do Brasil a causa mais relevante da baixa competitividade dos produtos brasileiros?

É necessário dizer, antes de tudo, que é a política cambial, junto com a baixa produtividade, os principais fatores que retiram a competitividade dos produtos brasileiros. A política monetária de juros altos provoca valorização cambial excessiva porque atrai um fluxo intenso de capital externo especulativo dirigido para aplicações em títulos públicos. O diferencial entre juros internos e externos não é, certamente, a única causa da valorização cambial, mas é um fator central. O câmbio apreciado tem dificultado a exportação de produtos manufaturados brasileiros e reduzido a capacidade de competição dos produtos nacionais frente aos importados, produzindo uma veloz desindustrialização e commoditização da pauta de exportações da economia brasileira. Seu uso, entretanto, tem sido tolerado por conter a inflação causada por choques externos nos preços dos alimentos, metais e petróleo, mas, sobretudo, por, comodamente, justificar a elevação desproporcional da rentabilidade do capital financeiro.

O governo propõe a redução de tributos sobre a folha de salários, ao invés de optar por baixar a taxa de juros para contornar o problema causado pelo desnivelamento do câmbio. O resultado desejado não será alcançado, enquanto tivermos a mais alta taxa de juros real do sistema mundial, o fluxo de capitais se dirigirá fartamente para o Brasil. A redução de tributos tem efeito muito limitado para compensar as consequências nefastas dos juros altos e do câmbio valorizado. Uma política de incentivo à ciência e à tecnologia, de ampliação da infraestrutura de energia e transporte e, sobretudo, de queda dos juros e de alinhamento do câmbio é que fariam a redução estrutural do custo-brasil. Um sistema tributário tem outros objetivos, entre eles aquele considerado “sagrado”, de reduzir desigualdades sociais e aliviar as tensões sociais produzidas por uma economia monetária. Numa sociedade com fortes traços de subdesenvolvimento, onde persistem problemas estruturais graves, esta função do sistema tributário torna-se imprescindível. Seu uso para compensar uma política monetária deletéria e de baixíssima eficácia para combater a inflação torna-o disfuncional e revelador do poder das elites patrimonialistas na condução da política macroeconômica do país.

Para reduzir a assimetria de poder, os trabalhadores e os que recebem os mais baixos rendimentos deveriam ser os principais beneficiados por uma futura reforma tributária, com base no princípio da progressividade na taxação sobre rendas e propriedades, de forma a reverter o fluxo de renda e riqueza em favor dos mais necessitados. Um movimento dessa ordem só seria factível com o amplo envolvimento dos sindicatos e das centrais sindicais, os elos mais fortes. É preocupante, entretanto, a posição de defesa da desoneração da folha de alguns setores. Há a crença de que proporcionará maior contratação de trabalhadores e reduzirá a carga sobre os assalariados, isso é uma ilusão.

A proposta é de redução da tributação da parcela de contribuição social do empregador sobre a folha. Essa desoneração provocará redução de custo e imediata elevação da margem de lucro, sem reduzir preços. Uma maior parcela de lucro não necessariamente implicará em mais contratação de trabalhadores nem em redução de carga tributária sobre assalariados. Não existe nenhuma ligação direta e imediata entre uma coisa e a outra. Primeiro, porque a taxa de juros, sendo muito elevada, pode desviar o adicional de lucro da aplicação em investimentos produtivos e da contratação de trabalhadores, para direcioná-lo aos investimentos em títulos públicos, que oferecem alta rentabilidade, segurança e liquidez. Segundo, é preciso compreender com clareza o que determina o crescimento do emprego formal. Não são os fatores do lado da oferta (como é o caso da redução de impostos), mas os estímulos à demanda as variáveis principais a influenciar o nível de emprego.

O que determina a criação de empregos formais?

Entre 2003 e 2010 foram criados 15 milhões de empregos formais no Brasil . Quando a economia cresce, impulsionada pelo consumo e pelo investimento, o emprego formal dispara e o desemprego cai rápida e progressivamente. Isto se alcança por meio de políticas macroeconômicas como o aumento do crédito, a política de recuperação do salário mínimo e o crescimento do gasto público. Essas políticas, por elevarem a demanda agregada, têm o poder de sinalizar aos empresários que vale a pena contratar trabalhadores para produzir, porque as vendas serão quase certas. Do contrário, sem a produção de um cenário favorável, redutor de incertezas quanto à rentabilidade dos investimentos, a desoneração da folha pode cair significativamente – ou qualquer outra redução de custo – sem causar impactos positivos sobre a produção e o nível de emprego.

O Brasil é um exemplo do uso de políticas bem sucedidas de estímulo à demanda para a superação do problema do desemprego nos moldes da tradição keynesiana, ainda que a primazia da política monetária em curso limite as condições de expansão do mercado de trabalho. Como foi relatado acima, há efeitos perversos que produzem desânimo para novos investimentos e que reduzem o saldo exportador, dois dos motores mais importantes para uma estratégia de crescimento e formalização do mercado de trabalho. Entretanto, a presença de um arranjo favorável de política fiscal criou efeitos positivos que contrabalançaram a combinação adversa de juros e câmbio.

Podem ser apontados pelo menos quatro mecanismos propulsores do emprego formal no recente ciclo de crescimento na economia brasileira:

1.O aumento do gasto público social, produzindo a expansão dos serviços básicos em saúde, educação, previdência, assistência social, seguro-desemprego e abono salarial. As transferências monetárias se elevaram, em número e em valor, especialmente àquelas vinculadas ao salário mínimo . Como consequência, ocorreu um aumento do número de empregados diretamente e indiretamente pelo Estado. Conforme pesquisa realizada no IPEA, “no caso dos gastos que se convertem em expansão das redes de serviços sociais, como em educação e saúde, há em geral um incremento direto do pessoal ocupado com vinculação formal, cuja característica crucial para o mercado laboral é serem postos de trabalhos permanentes e cumulativos no tempo e […] a renda nominal derivada dessas ocupações também possui a característica permanente e cumulativa, dois importantes fatores de sustentação dos segmentos privados do comércio e dos serviços locais” (IPEA, 2010, p. 353). No caso dos gastos com transferências monetárias diretas, o incremento desta renda, tem características de regularidade e previsibilidade no tempo, fatores importantes para sustentação da demanda. Além disso, são entregues a uma fatia da população com alta propensão a consumir o que eleva o seu potencial de atração sobre as decisões empresariais privadas de investir e contratar trabalhadores.

Somados os números de benefícios pagos em 2010 tem-se um total de aproximadamente 62,5 milhões de pessoas e/ou famílias através das quais o Estado teria injetado renda, que se converteu em consumo corrente de bens e serviços, provocando o surgimento de um significativo mercado de consumo de massa.

2.A expansão das operações de crédito (de aproximadamente 23% para 46,6% do PIB entre 2003 e abril de 2011) , foi um dos fatores determinante do crescimento econômico recente e da recuperação do nível geral de ocupação e do emprego formal. O crédito se dirigiu para setores com grande capacidade de geração de emprego, como foi o caso do setor rural, setor habitacional e empresas estatais. Segundo informações do IPEA (2010, op.cit.), há correlação positiva entre essa expansão recente do crédito e o nível de ocupação da força de trabalho, porque os novos postos de trabalho tiveram por trás, vetores da demanda empresarial e pública e não aqueles imperativos de sobrevivência que caracterizam a ocupação, por conta própria.

3.A formação bruta de capital fixo (FBCF) da economia brasileira como um todo vem crescendo, desde 2006. Sua elevação e sustentação num patamar mais alto que os verificados nos anos 1990 e no início desta década, tem sido um dos grandes desafios para garantir que o crescimento recente seja sustentável. Em que pese, ainda, estar em um nível baixo – encerrou o ano de 2010 num patamar anual de 18,4% do PIB –, tem demonstrado uma perceptível aceleração no período recente. O investimento público teve uma crescente participação nesse agregado, tendo passado de 2,64%, em 2003, para 4,38% do PIB, em 2009 e estimava-se em 5% do PIB para 2010. Há uma contrastante intervenção estatal federal quando confrontada com a tradicional reação diante de crises internacionais – momentos em que os cortes no orçamento federal eram tidos como instrumentos básicos de ajuste e os investimentos públicos, considerados a rubrica prioritária para a compressão de despesas. Uma nova fase de postura fiscal anticíclica foi inaugurada – com elevado peso das estatais federais (perto de 2% do PIB) e de ampliação dos repasses para estados e municípios destinados a investimentos. Para se ter uma idéia do montante de investimentos já efetuados, as estatais federais investiram R$18.665 milhões em 2003, enquanto em 2009, foi atingida a cifra de R$59.841 milhões, enquanto a participação de Estados e Municípios passou, em 2003, de R$22.992 milhões para R$57.719 milhões em 2009, incluindo-se nesse montante as transferências federais a esses entes da federação destinadas a tal fim (pois cerca de um quinto de seus investimentos depende de recursos federais). A política anticíclica centrou esforços consideráveis no aumento dos investimentos em obras de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

4.O cenário econômico internacional, favorável às exportações brasileiras de commodities, propiciou taxas de crescimento bem mais significativas a partir de 2006, o que favoreceu a expansão das ocupações e o alargamento do emprego formal. O enorme dinamismo, sobretudo da economia chinesa, proporcionou o aumento de preços e quantidades das exportações de produtos primários, dinamizando a economia nacional e criando condições para que o país atravessasse a crise externa de 2008 com muito menor fragilidade que em outros episódios de crise cambial do passado. Conforme estudo do IPEA (2010, op. cit.), embora setores agrícolas e agroindustriais de exportação tendam mais a desempregar que empregar trabalhadores, é possível que a força de trabalho remanescente esteja ficando empregada com carteira. Por outro lado, segundo o referido estudo, o crescimento das exportações também atingiu parte dos segmentos industrial e comercial, fazendo com que ocorressem rebatimentos positivos no emprego formal.

E, finalmente, mas não menos importante, é preciso lembrar que o nível de emprego formal subiu consideravelmente nos últimos oito anos, sem que nada mudasse nas regras de tributação sobre a folha de salários. Em função do bom dinamismo da economia brasileira, foi crescente a arrecadação das contribuições sobre a folha salarial de empregados e empregadores, o que sustentou um patamar também crescente de gastos com a seguridade social. É um circuito virtuoso que se retroalimenta. Os sindicatos e as centrais têm que ficar atentos para essa equação econômica que lhes favorece.

Entre 2004 e 2010, o dinamismo da economia brasileira desafiou as convicções dos economistas ortodoxos. O crescimento não foi acompanhado de pressão inflacionária. Os salários reais subiram, mas o nível de emprego também cresceu. A conquista de milhares de postos formais de trabalho ocorreu sem medidas de flexibilização no mercado de trabalho. O aumento no valor e no número de benefícios sociais (de previdência e assistência social) coincidiu com fortes melhorias nos índices de pobreza e de desigualdade social. O gasto público e privado com o crescimento do salário mínimo, mantida a mesma estrutura do sistema tributário atual, se converteu em maior crescimento econômico e em elevação da arrecadação de impostos e contribuições sociais e não em desestímulo ao investimento privado como é suposto pelos manuais ortodoxos. Houve recordes de arrecadação a cada ano e a situação fiscal do Brasil é uma das melhores do mundo. O superávit da Seguridade Social de 2010 está entre os maiores da história, à revelia das previsões de explosão do déficit da Previdência. Esta foi a lição deixada pelos anos de política macroeconômica dos anos 2000 e precisamos absorvê-la, abandonando definitivamente os equívocos do raciocínio liberal.

Com todos esses resultados favoráveis, sobram motivos para encarar com ceticismo e desconfiança os resultados de uma política de desoneração da folha de pagamentos. É necessário lembrar que a tributação do empregador sobre a folha dirige-se, hoje, para gastos com a previdência social, pois é uma receita vinculada, que atende às necessidades dos trabalhadores. Se essa receita for reduzida e parcialmente substituída por outra fonte não vinculada à seguridade social (e essa é a proposta de reforma), o destino desse recurso pode não ser os gastos em favor dos assalariados, por mais bem intencionados que sejam os propositores – uma flexibilidade geradora de imprevisibilidade e insegurança, portanto.

É maior a probabilidade de a Previdência perder arrecadação própria de imediato e não ser compensada proporcionalmente, no futuro, com mais empregos e outras fontes de receita. Os trabalhadores terão muito a perder. Melhor seria que apostassem na defesa ferrenha de um arranjo de política macroeconômica que eleve as chances de crescimento do PIB e de intensificação do movimento de formalização do mercado de trabalho.

Na proposta de reforma tributária em tramitação na Câmara está prevista a criação do IVA – Imposto sobre Valor Adicionado – e consequentes mudanças no critério de financiamento da seguridade social. Resumidamente, pode-se dizer que seriam extintas a COFINS e o PIS, e a CSLL seria incorporada ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas. O salário educação também seria extinto e incorporado ao IVA. A proposta pretende, portanto, acabar com a pluralidade das fontes de financiamento do orçamento da Seguridade Social atribuídas pela Constituição Federal de 1988, permaneceria apenas a contribuição sobre a folha de salários.

A tentativa é de substituir a tributação indireta por outras incidentes sobre a renda (IR) e sobre o valor adicionado (IPI e IVA-Federal). Haverá também, conforme mencionado anteriormente, a desoneração progressiva da contribuição dos empregadores sobre a folha, não foi considerada a reposição da perda de receita com a CPMF, extinta em dezembro de 2007. Com transformações de tal magnitude, pode ser que, finalmente, os conservadores tornem viável um déficit nas contas da Seguridade Social por insuficiência de receitas. Finalmente, “o monstro” – o déficit – que sempre enxergaram para dar credibilidade a reformas privatizantes na previdência pública, estaria nascendo.

O Orçamento da Seguridade Social foi pensado em 1988 como um orçamento isolado do resto dos recursos públicos pertencentes ao orçamento fiscal, exatamente para ser “intocável” – isto é, protegido da disputa política e das manipulações e arbitrariedades do jogo de poder sobre os recursos do orçamento público. As verbas destinadas à proteção social assegurariam condições mínimas de sobrevivência a uma vasta parcela da população. São recursos que amparariam os mais necessitados, que têm menor poder de pressão sobre os aparelhos do Estado. Era necessário criar uma zona de proteção dentro do orçamento público. A realidade tem confirmado o sucesso desse arranjo. A PEC da reforma tributária propõe flexibilizar essa proteção jurídica e institucional, lançando os direitos sociais no campo da disputa dos recursos do orçamento fiscal, onde a apropriação do excedente é feita pelos grupos com maior capacidade econômica e política de fazer prevalecer suas demandas e seus privilégios.

O Brasil passou, nos últimos anos, por um regime de crescimento com distribuição de renda e criação de um mercado de consumo de massas sem precedentes na história do país. A melhora na distribuição da renda foi, em grande medida, proporcionada por políticas fiscais de aumento do salário mínimo e das transferências sociais. Todas essas conquistas consolidaram o sucesso de determinadas opções de políticas econômicas que se tornaram consensuais e de vasta legitimidade social. Melhor seria que continuássemos a explorar o potencial de crescimento do arranjo fiscal atual, procurando aperfeiçoá-lo, ao invés de colocá-lo em risco por uma opção de reforma que, nem de longe, está se propondo a fazer as necessárias transformações estruturais no sistema tributário atual.

* Doutora em Economia, professora e pesquisadora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Publicado no Boletim Tributação & Cidadania, n 4, agosto de 2011, Fundação Anfip

NOTAS:

Fonte: Boletim Observatório do Mercado de Trabalho, MTE, nº 11 – www.mte.gov.br.
Significativos foram também os gastos com os programas de geração de trabalho e renda alavancados com recursos dos fundos públicos – Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), FGTS, fundos constitucionais etc.
IPEA, “Macroeconomia para o Desenvolvimento: crescimento, estabilidade e emprego”. Brasília, Ipea, 2010.
Desse total, 27,8 milhões de benefícios foram emitidos pelo INSS (previdenciários mais assistenciais, dados de outubro de 2010), 22 milhões de benefícios temporários foram pagos pelo Ministério do Trabalho (dados disponíveis em 2008; provavelmente são maiores em 2010) e 12,7 milhões de família beneficiárias do Programa Bolsa Família em 2010 .
Segundo a série Indicadores econômicos – Operações de Crédito do Sistema Financeiro do Banco Central – www.bcb.gov.br.

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