SUS: Entre o Estado e o Mercado – Apresentação

Eduardo Fagnani*

O projeto reformista e democrático desenhado nos anos de 1970 pelas forças que lutavam contra a ditadura militar apoiava-se na restauração do Estado Democrático de Direito e na construção de um sistema de proteção social baseado na experiência da social democracia europeia, nos “anos gloriosos”, entre 1945 e 1975. Após uma árdua marcha, esse movimento desaguou na Constituição de 1988 que restabeleceu a democracia e consagrou as bases de um sistema de proteção inspirado no Estado de Bem-Estar Social e ancorado nos princípios da universalidade, da seguridade e da cidadania.

A nova Constituição inovou em diversos pontos. Um deles foi a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) que substituiu o antagônico modelo privatizado vigente na ditadura. Reza a Carta de 1988 que o SUS é público, universal e gratuito. A saúde “é direito de todos e dever do Estado”. As ações e serviços públicos de saúde “constituem um sistema único” organizado pela cooperação federativa entre níveis de governo, mas com gestão descentralizada. A Carta determina que a saúde “é livre à iniciativa privada”, mas de “forma complementar” ao SUS. Ela veda a “destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”, bem como “a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País”.

Todavia, desde o seu nascedouro, o SUS tem sido objeto de resistências políticas que minam constantemente suas possibilidades de realização plena. O SUS nunca conseguiu ser público e universal, como reza a Constituição da República. Surgiu como antítese da política privatista adotada pela ditadura militar, mas herdou 21 anos de expansão selvagem de mercantilização do setor. Os governos democráticos fracassaram na tarefa de reverter esse quadro de predominância da oferta privada e ausências de oferta pública.Ajustes macroeconômicos e reformas liberalizantes adotadas desde 1990 minaram suas bases de financiamento e restringiram os investimentos necessários para ampliar a oferta publica, especialmente nos sistemas de média e alta complexidade. Reflexo disso é a profunda desigualdade social e regional da oferta pública existente no momento, percebida por filas e demora no atendimento de consultas, exames e internações.

No plano internacional, a concorrência capitalista no contexto da globalização e das políticas liberalizantes ampliou a utilização das políticas sociais como espaços privilegiados da acumulação de capital financeiro. Em todo o mundo, os negócios dos complexos capitalistas internacionais avançaram na saúde, educação, saneamento, transporte público e na previdência social, por exemplo.

No Brasil, os governos democráticos não barraram esse avanço predatório e, em muitos casos, foram coniventes com a mercantilização e os interesses do complexo capitalista da saúde. Ainda nos anos de 1990, eles seguiram à risca as recomendações do establishment internacional para a difusão do modelo da “Nova Gestão Pública” (NGP). Os sistemas de saúde administrados pelo governo eram vistos como “grandes demais”. Tiveram êxito na venda do engodo de que a “concorrência entre fornecedores públicos e privados” melhoria a qualidade, eficiência e desempenho do sistema.

O Brasil fez a lição de casa nos anos de 1990. A Reforma Administrativa promoveu alterações jurídicas e administrativas que facilitaram a prestação de serviços por organizações sociais ou entidades com fins lucrativos financiadas com recursos públicos. Desde então, abriu-se a fronteira para o desembarque dos interesses privatistas na gestão da saúde, corroendo por dentro o sistema “público” formalmente consagrado pela Carta de 1988. O SUS é o único depositário das esperanças de prevenção e cura de mais de 75% da população. Todavia, responde por apenas 45% dos gastos totais de saúde (55% são privados).

Nos últimos dias, esse cenário estrutural preocupante ganhou um ingrediente adicional que despertou a reação dos principais atores do movimento sanitário brasileiro. Informações divulgadas pela imprensa (Governo federal negocia para ampliar acesso a planos de saúde. Folha de São Paulo, 27/02/2013) indicavam que o governo federal estaria “negociando com os planos de saúde um pacote de medidas de estímulo ao setor em troca de garantias de melhoras no atendimento”. Em troca seriam atendidos pedidos do setor por redução de impostos. Segundo o jornal as medidas beneficiariam “tanto para a classe média tradicional como a emergente”. Ela seria vista por integrantes do governo “como uma potencial marca do Executivo na saúde”. A proposta estaria em elaboração desde o início do ano e “as negociações estão sendo tocadas pela própria presidente da República”. Na reunião realizada em 26 de fevereiro, também teriam participado “cinco ministros de Estado”, integrantes da área econômica e representantes dos maiores grupos privados de operadoras de planos de saúde (Bradesco, Qualicorp e Amil).

As supostas intenções do governo foram prontamente rechaçadas pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal e associações da sociedade civil e do movimento social (CUT, CONTAG, IDEC e Conselho Federal de Medicina, ABRASCO, CEBES, entre outras). Diante das reações, o fato foi desmentido pelo Ministro da Saúde. Ele negou que o governo estaria preparando “planos pobres para pobres”. Mas não se pronunciou sobre a alegada reunião com empresários e sobre o fato de que governo estaria preparando um “pacote” de medidas de incentivos fiscais para as operadoras privadas.

Como se sabe, encontra-se em curso uma agressiva política de desonerações fiscais que poderá corroer os mecanismos de sustentação financeira da Seguridade Social, da qual a saúde é parte. A estratégia desobrigou 42 setores econômicos do pagamento da contribuição patronal de 20% sobre a folha salarial para a previdência. Informações da imprensa revelam que nos próximos dias o governo deve sancionar medida provisória que amplia a desoneração para 75 setores. Os hospitais privados e as operadoras privadas de saúde estariam incluídos na nova lista. Em troca de que?

Não se pode falar em desenvolvimento em uma sociedade onde seus cidadãos não tenham direitos e acesso digno a serviços básicos como saúde, educação, saneamento, e transporte público de massas, por exemplo. Nos países de capitalismo tardio é um engodo acreditar que essas tarefas serão supridas pelo setor privado.

Para debater este tema a rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimentorealizou entrevista com José Gomes Temporão (Ministro da Saúde, 2007–2010) e reuniu artigos escritos por renomados especialistas: Ana Luiza D´Ávila Viana, Ana Maria Costa, Carlos Octávio Ocké-Reis, Cristiani Vieira Machado, Fernando J. Pires de Souza, Geniberto Paiva Campos, Gilson Carvalho, Ialê Falleiros, José Sestelo, Lígia Bahia, Mario Scheffer, Nelson Rodrigues dos Santos, Ricardo de Lima Jurca e Vitor Gomes Pinto.

Vamos ao debate. Clique aqui para acessar aos artigos e entrevista.

Boa leitura!

* – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do CESIT (IE/Unicamp) e coordenador do núcleo Plataforma Política Social.

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