André Biancarelli* | Jornal do Brasil
Que o Brasil está em campanha eleitoral aberta não é novidade. O fato novo dos últimos dias é que a campanha esquentou, e se tornou mais clara sobre os temas econômicos. As vozes oficiais, até então caladas diante de um ataque em várias frentes, passaram a se fazer ouvir, recusando ajuste recessivo em cima do emprego e do salário. O conteúdo deste debate ainda muito desigual é revelador e suscita algumas reflexões.
A primeira delas é a comparação com o pleito de 2002, muito evocado atualmente. Do ponto de vista econômico, aquelas eleições tiveram como pano de fundo uma degradação da conjuntura, que muitos preferem esquecer, em suas várias frentes: fiscal (com a dívida pública líquida subindo ao longo do ano de 52% do PIB para 60%, e a bruta superava 80%), inflacionária (o IPCA atingiu mais de 12% no acumulado do ano), cambial (o dólar inicia o ano abaixo de R$ 2,5 e chega a encostar em R$4,00), desemprego (a taxa média foi superior a 12%) e, enfim, crescimento baixo (em torno de 2,5% depois de pouco mais de 1% em 2001). Nunca é demais recordar: a crise externa fez com que se exigisse dos principais candidatos a presidente a concordância com o programa de ajuste do FMI – ao qual o Brasil recorria pela terceira vez em quatro anos.
Naquele contexto adverso, um dos marcos simbólicos da campanha vitoriosa da oposição foi a chamada “carta ao povo brasileiro”, que ao contrário do que sugeria o título tinha um destinatário nada “popular”. O PT e seus aliados se comprometiam a manter as ferramentas e as prioridades da gestão macroeconômica do governo de então, que se encerrava daquela forma pouco exitosa. Os instrumentos de pressão sobre esta escolha eram, mais do que ideológicos ou psicológicos, objetivos: uma fuga de capitais em curso, que provocava o descontrole resumido no parágrafo anterior. O “lulômetro” criado pelo Goldman Sachs era de fato apenas um termômetro. Poucos discordariam hoje de que aquela promessa foi cumprida, principalmente no primeiro mandato de Lula.
Volte-se a 2014. Até o discurso presidencial de Primeiro de Maio, o debate econômico na pré-campanha seguia pela mesma trilha, apesar das condições concretas serem outras: a dívida pública líquida está estabilizada em cerca de 35% do PIB (a bruta por volta de 60%); o IPCA ronda os 6,5% anuais; o dólar oscila em torno de R$ 2,30; e debate-se se o país está em pleno emprego apesar do crescimento ter dificuldade para superar os 2%. Não é uma maravilha, mas estamos longe do colapso.
O clima atual de críticas à política econômica, como se sabe, é muito violento. Uma espécie de ápice deste ataque aparece em mais um editorial da imprensa estrangeira, desta vez pelo Financial Times, que cerca de dez dias atrás comparou a mandatária brasileira à alemã e aos irmãos Marx e, mais importante, reclamou da falta de “entrega”. Sem disfarçar, a intenção é pautar o rumo da política econômica para o próximo mandato, arriscando-se em previsões peremptórias e estranhas ameaças: “O país precisa de um choque de credibilidade. Se Dilma Rousseff não o fizer, a eleição presidencial de outubro fará”.
E aqui cabe um parênteses sobre a linguagem. Políticas públicas, ou o rumo geral da gestão estatal, não são ou não deveriam ser mercadorias que se encomenda e se “entrega”. É a famigerada “lição de casa” de outros tempos, em versão até menos envergonhada. Compromissos, prioridades, acordos, são expressões muito mais civilizadas. Até porque o destinatário – de novo ele – que reclama da falta ou demora na entrega é específico, e está muito longe de representar o conjunto da sociedade.
Sindicatos e outras organizações sociais, o setor produtivo e outros atores políticos relevantes também têm reclamado, aparentemente com razão, da falta de diálogo com este governo, em contraste marcado com o anterior. Há claríssimos erros, ademais, na gestão macroeconômica dos últimos anos, que devem sim ser objeto de controvérsia. Mas os interesses por trás do diário britânico não parecem muito dispostos a ampliar a discussão: “Elas (as preocupações generalizadas) estão agora começando a empurrar o debate para uma direção amigável ao mercado. Isso só pode ser uma coisa boa”.
Os dois candidatos de oposição vinham vestindo perfeitamente o figurino de “entregadores”, com uma escalada de promessas impopulares no campo econômico. Como a situação objetiva é muito menos dramática do que em 2002, um bom ponto para discussão é se tais comprometimentos – que até aqui dispensam cartas e se apoiam na “credibilidade” de figuras aventadas como eventuais condutores da economia – se dão por convicção ou interesse no financiamento privado para suas campanhas. É um tema suficientemente complexo para merecer outra coluna, mais à frente.
Por enquanto, importa anotar a sinalização clara de que as prioridades para um eventual segundo mandato de Dilma Roussef não coincidem exatamente com as exigências do chamado “mercado”. Há, felizmente do ponto de vista da democracia, espaço para que isso seja declarado de maneira bem menos disfarçada do que em outras oportunidades. O debate eleitoral de 2014 no campo da economia tende a ser, enfim, mais condizente com a situação atual do país, com as perspectivas para os próximos anos e com as possibilidades mais variadas de escolhas e compromissos.
* André Biancarelli é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da mesma instituição e membro da Plataforma Política Social.