A contaminação do SUS pela fragilidade da atenção básica

Título original: A contaminação do SUS pela fragilidade da atenção básica e má formação de médicos.

João Vitor Santos | Publicado originalmente no portal IHU Unisinos 

“O que pensar de futuros médicos que promovem baladas em que se praticam violências contra suas colegas mulheres? Quais são as disciplinas que tratam as questões éticas, morais e humanitárias do exercício profissional? Simplesmente inexistem”, destaca o ex-ministro da Saúde.

O Sistema Único de Saúde – SUS atende a todos os brasileiros e a grande maioria tem nele o único acesso a atendimentos médicos. Mas para o ex-ministro da Saúde e diretor-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde – ISAGS/UNASUL, José Gomes Temporão, o Sistema é muito mais do que isso.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele revisita os conceitos e princípios que balizam essa política de Saúde. Destaca que é preciso se ter clareza de que o SUS visa não só aos atendimentos, mas à promoção humanista da saúde em ações que passam pela prevenção. Mas reconhece que essa atenção básica precisa se expandir. Para assegurar eficiência, é preciso levar o princípio para toda a Esplanada dos Ministérios. “O senso comum, quando fala de saúde, pensa em médicos, hospitais, tecnologias. É preciso inverter essa equação colocando a produção de saúde na frente do processo”, pontua.

Essa revisão conceitual da política passa também pelos profissionais da área. Médicos, por exemplo, vivem o que o ex-ministro chama de “mercantilização da profissão”. Desde a sua formação, a preocupação passa a ser mais o lucro, o reconhecimento enquanto especialista, esquecendo que, num sistema como o SUS, o que está no centro é a visão de saúde “como um bem coletivo, patrimônio da sociedade”, e não como “um espaço de acumulação para fazer bons negócios”. “Do lado da saúde institucionalizada as respostas não se encontram na falta de oferta de especialistas, mas sim na fragilidade da atenção básica e na formação precária dos novos médicos frente à questão da ética profissional”, completa o médico, que ainda fala sobre corrupção e as diferenças do sistema brasileiro em relação aos países mais ricos.

José Gomes Temporão é médico sanitarista. Assumiu o Ministério da Saúde no Governo Lula, em 2007, e permaneceu no cargo até 2011. Hoje, é diretor Executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Gostaria que o senhor nos recordasse os princípios básicos do Sistema Único de Saúde – SUS. Como ele funciona?

José Gomes Temporão – O SUS é resultado de um longo processo de luta da sociedade brasileira pelo direito à saúde. Ele toma forma apenas em 1988 com a promulgação da nova Constituição que contempla um capítulo específico sobre a saúde. Está escrito: “A saúde é um direito de todos e dever do Estado”. Depois, aprovou-se a Lei Orgânica da Saúde que contempla os princípios da universalização, descentralização, integralidade e controle social. Hoje, o SUS atende a todos os brasileiros, sendo que 75% da população depende única e exclusivamente do Sistema para suas necessidades em saúde.

IHU On-Line – Se lhe fosse dada a missão de rever alguns conceitos e princípios do SUS, quais seriam?

José Gomes Temporão – Penso que a descentralização ao longo destes 25 anos adotou um viés de municipalização que levou a certa fragmentação na organização de redes integradas de atenção. Precisamos resgatar nesse contexto o conceito de região. Por outro lado, as relações público-privadas deveriam ser revistas.

“Penso que a descentralização ao longo destes 25 ano [do SUS] adotou um viés de municipalização que levou a certa fragmentação na organização de redes integradas de atenção. Precisamos resgatar nesse contexto o conceito de região”

IHU On-Line – Países europeus e mesmo os Estados Unidos, muito mais ricos que o Brasil, não dispõem de um sistema público — e gratuito — de saúde como o nosso. No que o SUS poderia inspirar outros países e no que se diferencia das políticas em saúde dessas outras nações?

José Gomes Temporão – Na verdade, o Brasil se inspirou nos modelos de welfare europeus, como o da Inglaterra ou do continente americano, como o do Canadá. Mas, também, da experiência cubana e dos princípios da Conferência de Alma Ata daOMS. O cerne da diferença é se a saúde é vista como um bem coletivo, patrimônio da sociedade, ou se é vista como um espaço de acumulação para fazer bons negócios.

IHU On-Line – Como o SUS atua na medicina preventiva? Fala-se no programa Saúde da Família, mas é o único? Como funciona?

José Gomes Temporão – Todo sistema de saúde diferenciado em termos de qualidade e impacto deve ter como base uma política de atenção básica universal. Assim é na Inglaterra, por exemplo, onde todo e qualquer cidadão para ter acesso a qualquer nível do sistema deve se consultar com o médico de família. O nosso Programa Saúde da Família – PSF se inspira nesse princípio. Hoje, ele cobre cerca de 50% da população brasileira e tem impactado de forma significativa as condições de saúde das populações que se beneficiam dele.

“O cerne da diferença é se a saúde é vista como um bem coletivo, patrimônio da sociedade, ou se é vista como um espaço de acumulação para fazer bons negócios”

IHU On-Line – Recentemente, reportagem do programa Fantástico, da Rede Globo, denunciou um esquema de corrupção envolvendo próteses médicas. Além de colocar a saúde de pacientes em risco, médicos chegam a desviar 100 mil Reais por mês do SUS. Como o senhor recebeu essa denúncia?

José Gomes Temporão – Estarrecido, como toda a população e a grande maioria dos médicos. Será necessário regular esse mercado que a cada ano cresce de forma importante com a introdução de novas tecnologias.

IHU On-Line – Fraudes e desvios de recursos a que o SUS é exposto têm sido alvo de denúncias há muitos anos. Como preservar o Sistema para assegurar que o recurso — quase sempre escasso — não caia na teia de corrupções e desvios?

José Gomes Temporão – Os inimigos do SUS batem nessa tecla com frequência. Os mais ignorantes chegam a afirmar que não faltam recursos ao sistema público, e sim controle melhor dos recursos disponíveis. As fraudes devem ser combatidas ampliando-se a transparência, o acesso das pessoas à informação e os modelos de participação social.

“As fraudes devem ser combatidas ampliando-se a transparência, o acesso das pessoas à informação e os modelos de participação social”

IHU On-Line – Violência, criminalidade e acidentes de trânsito fazem milhões de vítimas todos os dias no Brasil. Quanto o sistema público de saúde gasta tratando vítimas dessas situações?

José Gomes Temporão – O volume de recursos financeiros gasto no tratamento e reabilitação das vítimas é fator relevante, mas menor. O custo do ponto de vista humano e societário é dramático. No Brasil o número de homicídios a cada ano gira em torno dos 50 mil. A maioria, jovens do sexo masculino e negros. Acidentes de trânsito vitimam cerca de 40 mil por ano. Vivemos uma epidemia de violência agravada pela falência do sistema prisional e da própria justiça. Mas a sociedade se nega a ver de frente as determinações estruturais dessa situação que na realidade é o modelo de sociedade que estamos construindo. O motor que produz violência está na exclusão, no preconceito, na injustiça, no abismo social entre as classes, na precariedade do sistema escolar e de saúde, na violência contra as mulheres, crianças e idosos, na homofobia, na falência das políticas de combate às drogas ditas ilegais. Sem enfrentar essa determinação, a situação só irá piorar.

IHU On-Line – Recentemente, o senhor disse que “o desenvolvimento sustentável do país requer colocar a saúde em todas as políticas, considerando suas dimensões biológica, psicológica e social para construir um ambiente facilitador à vida”. Como operacionalizar isso?

José Gomes Temporão – Deve-se começar não confundindo saúde com assistência à saúde. O senso comum, quando fala de saúde, pensa em médicos, hospitais, tecnologias. É preciso inverter essa equação colocando a produção de saúde na frente do processo. Vamos a alguns exemplos: a contaminação do ar e da água, os pesticidas usados largamente sem controle para o cultivo de alimentos, os acidentes de trânsito e de trabalho, os homicídios que se contam às dezenas de milhares por ano, na violência generalizada.

Do lado da saúde institucionalizada as respostas não se encontram na falta de oferta de especialistas, mas sim na fragilidade da atenção básica e na formação precária dos novos médicos frente à questão da ética profissional e da mercantilização da profissão. Em relação a estes, o que pensar de futuros médicos que na Universidade de São Paulo – USP promovem baladas em que se praticam violências contra suas colegas mulheres? Quais são as disciplinas que tratam as questões éticas, morais e humanitárias do exercício profissional? Simplesmente inexistem.

Mais exemplos? Vamos lá: a mortalidade materna não cai na velocidade desejada, mas não queremos enfrentar o aborto como uma de suas principais causas; a obesidade infanto-juvenil cresce em progressão geométrica, mas a publicidade de fast food e refrigerantes segue de vento em popa; a terceira causa de morte no país já são os homicídios e acidentes de trânsito e de trabalho, mas continuamos com visões simplistas e limitadas das raízes da violência e equivocadamente pedimos mais polícia para enfrentá-la; vociferamos contra o consumo das drogas ilegais (fora maconheiros!) e somos complacentes com o consumo abusivo de álcool; rangemos os dentes quanto ao desvio de verbas públicas na saúde pública e a corrupção que a acompanha, mas ingenuamente cremos quando nos vendem a ilusão de que ter um plano de saúde vai nos curar de todos esses males e também daqueles das filas do SUS.

IHU On-Line – Passado o tempo de implantação, qual a sua avaliação do programa Mais Médicos?

José Gomes Temporão – Penso que ainda é cedo para termos uma avaliação de caráter mais qualitativo e que possa medir o real impacto. Mas as informações preliminares são muito positivas.

IHU On-Line – É possível articular SUS e sistema privado de planos de saúde? Como?

José Gomes Temporão – São modelos conceitualmente distintos. Um se baseia no direito universal à saúde e no financiamento público. O outro é um negócio que obrigatoriamente deve ter equilíbrio financeiro. No primeiro temos o cidadão diante da sociedade e do Estado. No segundo é o consumidor diante do mercado.