A crise como pretexto para reeditar velhos ataques

Para José Dari Krein, a pauta que quer rever direitos trabalhistas precarizando a atividade profissional não é nova. Porém, em meio a crises, emerge com o embuste de tábua de salvação

Leslie Chaves | Edição João Vitor Santos | Do IHU On Line 

Imagine uma mágoa mal resolvida no passado. Toda vez que há um atrito entre as partes, essa mágoa vem à tona. A analogia serve para compreender a relação entre o empresariado e o trabalhador. O professor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit, da Unicamp, José Dari Krein entende que as conquistas dos empregados nunca foram engolidas pelos patrões. O problema, segundo ele, é que em momentos de crise se vê a oportunidade de voltar atrás e revogar conquistas e avanços do mundo do trabalho. “A atual crise política e econômica está sendo utilizada como pretexto pelas entidades patronais para impulsionar a sua agenda de reformas trabalhistas”, analisa. Para ele, “é uma agenda velha, que começou a ser introduzida no governo Fernando Henrique Cardoso”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Dari destaca que os empresários “até o momento, não conseguiram tudo o que queriam”. E, mesmo em um governo dito progressista como o do Partido dos Trabalhadores, as ameaças seguem iminentes. “Assim que os sinais da crise começaram a aparecer e a ofensiva contra Dilma ganhou força na sociedade e nos meios de comunicação, também houve uma enxurrada de novas proposições de alteração de aspectos econômicos, sociais e trabalhistas prejudiciais aos trabalhadores”.

Segundo o professor, entre 2003 e 2014 foram introduzidas 23 medidas chamadas flexibilizadoras, “tais como a prioridade do crédito para sistema financeiro em detrimento do trabalhador, o crédito consignado, a lei da previdência, alternações no abono salarial e no seguro-desemprego etc.”, explica. Entretanto, no mesmo período, houve outras 15 medidas que ampliaram a proteção social, “tais como a política de valorização do salário-mínimo, a ampliação do direito das domésticas, o fim dos incentivos para contratação temporária, o estágio etc. Alguns pontos ficaram no embate sem aprovação no arcabouço legal, como a prevalência do negociado sobre o legislado, a terceirização etc.”, completa. Ou seja, é sempre um jogo de avanços e muitos retrocessos. Para ele, a questão de fundo é o desejo de “jogar a CLT no lixo, colocar em risco as conquistas dos trabalhadores”.

José Dari Krein é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, tem mestrado e doutorado em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde atualmente é professor no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia a situação do mercado de trabalho neste contexto de instabilidade política e econômica? Quais foram as principais transformações que ocorreram nesse campo nos últimos 10 anos?

José Dari Krein – Impressiona a velocidade da deterioração dos indicadores do mercado de trabalho no Brasil a partir de 2015, expressa especialmente no crescimento do desemprego e na queda dos assalariados formais (1,8 milhão nos últimos 12 meses, segundo o Relatório Anual de Informações Sociais – RAIS). A atual crise econômica está significando uma inflexão na tendência que vinha desde 2004 de crescimento do assalariamento, da formalização e elevação dos salários em termos reais. É uma interrupção de um processo que poderia, caso continuasse, vislumbrar uma melhor estruturação do mercado de trabalho, ainda que esse processo anterior tenha se concentrado em geração de postos de trabalho de baixos salários.

Por exemplo, uma baixa taxa de desemprego proporciona um maior poder de barganha aos trabalhadores e aos sindicatos. A geração de emprego, a política de valorização do salário-mínimo, as negociações salariais com aumento salarial foram importantes para promover a inclusão social de segmentos expressivos da população. No entanto, emprego formal não é sinônimo de emprego de qualidade. O processo de flexibilização, que cria insegurança aos trabalhadores, continuou avançando, como mostra o forte crescimento da terceirização. A questão é que esse processo teve uma reversão, e as perspectivas do mercado de trabalho não são nada animadoras, levando em consideração as políticas de propostas de ajuste da economia na atualidade.

Além disso, a crise está sendo utilizada pelas entidades patronais, apoiada em analistas pró-mercado, para colocar na agenda uma reforma trabalhista. Essa agenda é de absoluta desconstrução de direitos e de eliminação dos parcos avanços conseguidos no país.

IHU On-Line – Pesquisas indicam que, principalmente nos últimos 10 anos, houve uma movimentação da pirâmide de classes econômicas brasileira, com a ascensão de pessoas às classes consideradas médias (A, B e C), e a saída de milhões do patamar de extrema pobreza. O que significa para a organização social do país tal processo de mobilidade econômica? De que modo esse fenômeno pode ser afetado pela crise econômica e pelo desemprego?

José Dari Krein – As características do capitalismo contemporâneo, globalizado e financeirizado são adversas aos mecanismos clássicos de distribuição de renda, pois tende a fragilizar as políticas sociais de caráter universal, o papel do Estado e os sindicatos, assim como implementar uma agenda pró mercado e que promova reformas tributárias concentradoras de renda. O Brasil está dentro deste contexto de globalização, internacionalização da produção, sob o domínio da acumulação financeira desde os anos 1990. Nos anos 2000, o Brasil e alguns outros países latino-americanos aproveitaram o boom de commodities e implementaram políticas que dinamizaram o mercado interno, por meio de transferências de renda e elevação do salário-mínimo, sem, no entanto, realizar alterações estruturais na organização da economia.

Os países latino-americanos que apostaram na Aliança do Pacífico também tiveram crescimento econômico, mas com resultados sociais muito mais modestos, tais como na Colômbia. É um processo que durou entre 2004 e 2013. O seu esgotamento está realizado com a incapacidade do governo de encaminhar uma política de sustentação do crescimento econômico e do avanço das posições conservadoras na sociedade que foram ganhando força para implementar a sua agenda conservadora. A partir de então há um processo de reversão do quadro, especialmente pelo crescimento do desemprego e a fragilização das finanças públicas. A perspectiva é bastante temerária, pois tudo indica que viveremos um período de regressão social.

IHU On-Line – Qual o papel do mundo do trabalho na diminuição das desigualdades?

José Dari Krein – Os indicadores mostram que houve uma diminuição das desigualdades entre os rendimentos do trabalho. A riqueza continuou se concentrando e o acesso aos serviços sociais também permaneceu muito desigual. Ou seja, apesar da pequena melhora, o Brasil continua sendo um país profundamente desigual. O principal avanço foi reduzir o número da pobreza e incluir no consumo muitos segmentos populacionais excluídos. É uma política tímida considerando a realidade nacional, mas mesmo assim gerou ondas de manifestações, pois a sociedade brasileira é historicamente e estruturalmente desigual, em que uma parte expressiva da classe média não se conforma com a redução da desigualdade, como pode ser observado na ampliação dos direitos das empregadas domésticas.

O incremento da renda ocorreu entre os mais ricos e entre os que se encontram na base da pirâmide social. Mesmo assim, é algo importante do ponto de vista da sociedade. Essa diminuição apresenta relação direta com o comportamento do mercado de trabalho, geração de emprego, política de elevação do salário-mínimo, ampliação ao acesso à educação e ganhos reais nas negociações coletivas (ação sindical). A diminuição mais acentuada da desigualdade depende de outras políticas mais substantivas, e entre as principais está uma reforma tributária (a estrutura tributária é muito regressiva no caso brasileiro) e o oferecimento de serviços públicos universais e de qualidade. A flexibilização das relações de trabalho também tende a agravar a desigualdade social, pois permite maior espaço para a acumulação do capital.

IHU On-Line – De acordo com dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, pela primeira vez desde 1992, simultaneamente a renda do trabalho dos brasileiros diminuiu e a desigualdade aumentou. O que a combinação desses dados significa para a organização da sociedade brasileira?

José Dari Krein – É a reversão do processo anterior e reafirmação do padrão histórico brasileiro de ser um país calcado na desigualdade. Uma parte importante da base social pró- impeachment advém de segmentos que não toleram constituir uma sociedade mais igual, assim como a não resolução da crise econômica e política é o fator de explicação da reversão dos indicadores de renda e do aumento da desigualdade. Na crise, os pobres, os trabalhadores são os primeiros a ter a sua condição de vida sacrificada.

IHU On-Line – De que modo a precarização do trabalho, agravada pela crise econômica e por medidas governamentais, como o PL 4330 entre outras, contribui para o agravamento das desigualdades?

José Dari Krein – A desigualdade cresceu fortemente nos anos recentes no mundo. Os dados mostram que entre o pós-guerra até o final dos anos 1970, os ganhos de produtividade e os salários cresceram de forma similar. Após 1980, sob a hegemonia das políticas neoliberais, as diferenças sociais se acentuam, os salários praticamente não cresceram e os rendimentos financeiros explodiram, com a concepção de estruturar a economia e a vida social a partir de mecanismo de mercado.

Portanto, as políticas de flexibilização e de redução da proteção social tendem a agravar a insegurança do trabalhador, ampliar a precariedade e a desigualdade. A proposta de liberalização total da terceirização (PLS 30/2015 ou PL 4330/2004) tende a produzir maior precariedade do trabalho e, consequentemente, contribuir para ampliar a desigualdade social. Os estudos acadêmicos mostram que terceirização é sinônimo de maior precarização do trabalho. O presente projeto de lei não cria nenhum novo direito, mas dá um imenso poder às empresas para pressionar os trabalhadores a reduzir direitos. Tudo pode ser terceirizado, o que significa menos direitos, menores salários e benefícios sociais. Isto significa que a aprovação do projeto da liberalização da terceirização é uma transferência direta de renda em favor do capital em detrimento do trabalho. Na forma como o projeto saiu da Câmara dos deputados, é uma volta à regulação do trabalho pré-1930.

IHU On-Line – A partir do contexto econômico e político do país neste momento, que riscos correm os direitos sociais garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e pelo sistema previdenciário?

José Dari Krein – A atual crise política e econômica está sendo utilizada como pretexto pelas entidades patronais para impulsionar a sua agenda de reformas trabalhistas e de proteção social. É uma agenda velha, que começou a ser introduzida no governo Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, e todas as mudanças legislativas foram na direção de flexibilizar os elementos centrais da relação de emprego e de fragilizar as instituições públicas responsáveis pela efetivação dos direitos trabalhistas. Desde então, as entidades patronais estão pressionando para uma total desconstrução das regras inscritas no nosso arcabouço legal institucional. Até o momento não conseguiram tudo o que queriam.

Segundo nosso levantamento, foram introduzidas 23 medidas flexibilizadoras entre 2003 e 2014, tais como a prioridade do crédito para sistema financeiro em detrimento do trabalhador, o crédito consignado, a lei da previdência, alternações no abono salarial e no seguro-desemprego etc. Mas, também foram implementadas 15 medidas que ampliaram a proteção social no mesmo período, tais como a política de valorização do salário-mínimo, a ampliação do direito das domésticas, o fim dos incentivos para contratação temporária, o estágio etc. Alguns pontos ficaram no embate sem aprovação no arcabouço legal, como a prevalência do negociado sobre o legislado, a terceirização etc. São aspectos centrais que significam jogar a CLT no lixo, colocar em risco as conquistas dos trabalhadores. Esta agenda da flexibilização total voou com força na atual crise.

Algumas das ameaças

Para exemplificar, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar – DIAP elenca 55 propostas legislativas em tramitação no Congresso Nacional que ameaçam direitos dos trabalhadores. Destas, 32 foram apresentadas entre 2013 e 2015. Ou seja, assim que os sinais da crise começaram a aparecer e a ofensiva contra Dilma ganhou força na sociedade e nos meios de comunicação, também houve uma enxurrada de novas proposições de alteração de aspectos econômicos, sociais e trabalhistas prejudiciais aos trabalhadores. Portanto, apesar de ser uma pauta requentada das ideias de flexibilização que vem desde os anos 1990, há uma grande ofensiva nos anos recentes na perspectiva de desconstruir direitos e fragilizar a regulação pública.

Exemplos de novas iniciativas são a redução da idade mínima para 14 anos, a proibição dos sindicalistas de participarem de fórum públicos, a redefinição do conceito de trabalho análogo à escravidão etc. Os setores empresariais e conservadores começaram a apresentar a sua pauta mais retrógrada sem nenhum constrangimento, como pôde ser observado na imprensa nas últimas semanas. Tudo indica que haverá uma grande ofensiva, mas também avalio que haverá resistência na sociedade a esta agenda.

A análise se baseia em dois elementos:

1) a grande resistência ocorrida em 2015 ao projeto de regulamentação da terceirização, mostrando que a sociedade não aceita qualquer proposta que signifique precarização da vida social;

2) na unidade de grande parte da esquerda construída no movimento pela defesa da democracia. A crise também leva a uma maior politização da sociedade. Também é quase um consenso entre os analistas que haverá uma crescente repressão e perseguição aos movimentos populares, em particular aos sindicatos. Viveremos “tempos interessantes”, como dizia o historiador Hobsbawm.

IHU On-Line – Caso o impeachment da presidente Dilma Rousseff seja aprovado, que mudanças podem ocorrer no mundo do trabalho a partir de um possível governo de Michel Temer?

José Dari Krein – No cenário de impeachment, o quadro se agrava enormemente. Por um lado, a carta de intenção de Temer foi apresentada no documento “Uma Ponte para o Futuro” . Nesse documento, afirma de forma cristalina o propósito de retirar direitos. Antes de enumerar algumas propostas, adota como base de informação na comparação com outros países o Relatório Global de Competitividade 2015-2016, do Fórum Econômico Mundial. É um documento que coleta informações a partir dos empresários. Constrói um diagnóstico enviesado.

Entre outras pérolas, o documento propõe: 1) “acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação”; 2) fim de todas as indexações; 3) fim da política do salário-mínimo e sua vinculação com os benefícios da seguridade social; 4) prevalência do negociado sobre o legislado; 5) reforma previdenciária.

Essas propostas significam uma desconstrução muito expressiva de direitos e proposições dos segmentos mais vulneráveis ou que estão na base da sociedade brasileira. Por exemplo, os aposentados são atacados diretamente três vezes: 1) fim da correção das aposentadorias pela inflação passada; 2) diminuição do piso, com a redução do valor e a desvinculação do salário-mínimo; 3) reforma da previdência.

“Uma ponte para o retrocesso”

Além disso, todos os assalariados poderão ter direitos menores. Portanto, é um documento que apresenta uma “uma ponte para o retrocesso”. O que está ruim pode piorar. Por outro lado, é até assustador como as forças apoiadoras do golpe estão propagando as suas propostas conservadoras, sem nenhuma veleidade. Por exemplo, o setor empresarial industrial apresentou a proposta de introduzir no Brasil a possibilidade de o trabalhador negociar individualmente a sua relação de emprego com o empregador. O setor agrícola propõe que tenha o direito de criar um exército no campo para combater os movimentos sociais.

É impressionante como as propostas são apresentadas sem nenhum pudor e nenhuma comprovação empírica, mas a partir de uma visão ideológica e de explícito interesse de classe. Por exemplo, não existe comprovação de que reduzindo direitos se cria emprego, mas todas as principais entidades empresariais e os profissionais defensores da globalização financeira, do mercado autorregulado, acreditam que sim.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Dari Krein – Tudo indica que a ofensiva virá, mas também haverá resistência e luta. O que deixa o futuro em aberto. Novos movimentos de contestação estão ocorrendo na sociedade, com um índice de mobilização bastante acentuada se comparado com os últimos 15 anos no Brasil.

Há também movimento de resistência importante em outras partes, como, por exemplo, na França : o Governo está tentando realizar uma reforma com retirada de direitos e está encontrando forte resistência na sociedade, especialmente da juventude. No caso brasileiro, os sindicatos tendem a ficar em uma posição mais defensiva no enfrentamento dos problemas diretos da relação do emprego, dado o crescente desemprego, mas poderá ter uma função protagonista de organizar a resistência na sociedade. É uma janela de oportunidade para se conectar com uma sociedade em que os sinais de descrença, de descontentamento e de inconformismo se tornam mais forte e presente nas pessoas, especialmente em segmentos que não estão organizados de forma tradicional, como são as mobilizações sociais, tais como de jovens ocupando as escolas etc. Também é expressão de uma crise mais profunda o surgimento de movimentos fascistas e conservadores. Portanto, vivemos um período de sinais contraditórios e de forte disputa social.