Jorge Beloqui* e Mário Scheffer**
Coincidentemente, também em 1996, uma lei federal estabeleceu a obrigação do Sistema Único de Saúde (SUS) de garantir o acesso universal aos medicamentos antirretrovirais para o tratamento das pessoas que vivem com HIV e aids.
As histórias paralelas, da proteção patentária e da epidemia da aids no Brasil, guardam lições que podem iluminar o trabalho do Legislativo na revisão da lei de patentes, o que ganhou novo fôlego a partir do projeto de lei 5402/13, de autoria dos deputados Newton Lima (PT-SP) e Dr. Rosinha (PT-PR).
Os atuais requisitos e critérios de concessão de patentes no Brasil precisam ser urgentemente revistos porque não atendem os interesses de desenvolvimento econômico, impõem custos sociais e inviabilizam políticas públicas, pois muitos dos recursos do sistema de saúde ficam comprometidos com a compra de remédios patenteados.
Dentre tantas outras contribuições, a luta contra a aids levou ao cotidiano do campo da saúde pública temas como propriedade intelectual, marcas e patentes; acrescentou ao direito das empresas sobre seus inventos, a discussão do acesso ampliado a produtos inovadores que podem melhorar a saúde e salvar a vida das pessoas.
Atualmente mais de 300 mil brasileiros recebem da rede pública os medicamentos para tratamento da aids. Feito extraordinário do SUS, o programa é fruto de decisões políticas e da mobilização comunitária de ONGs e dos cidadãos que vivem com HIV, que decidiram se unir para lutar pelo seu próprio destino.
Mas não haveria acesso universal ao tratamento da aids sem a produção nacional de medicamentos genéricos, sem a quebra de patente, sem a denúncia dos preços exorbitantes dos antirretrovirais de marca, sem o enfrentamento do poder de monopólio das multinacionais farmacêuticas, sem o protagonismo do Brasil ao defender nas instâncias internacionais a compatibilização dos direitos humanos e à saúde com as regras de propriedade intelectual e comércio.
Apesar desses avanços, a sustentabilidade do acesso aos antirretrovirais é incerta no Brasil, assim como não foi possível ampliar a assistência farmacêutica a outras necessidades de saúde, a exemplo do câncer, cujo tratamento não chega a todos que precisam.
A adoção de medidas corajosas no passado, ainda que restritas ao HIV e aids, têm sido neutralizadas pelas restrições da lei, pelos exageros na concessão de benefícios aos detentores de patentes, pelo esgarçamento da negociação de preços com as empresas, apontando para a necessidade da revisão do marco legal. Somam-se o potencial de maior consumo, com o início cada vez mais precoce do tratamento antirretroviral, o aumento do número de pacientes na rede pública e as novas possibilidades de uso dos medicamentos como coadjuvantes das ações de prevenção da infecção pelo HIV.
A reforma da lei de patentes precisa tocar em pontos essenciais.
Há uma distorção na lei atual que precisa ser eliminada, que é a permissão da vigência das patentes para além dos 20 anos preconizados nas regras internacionais, o que tem atrasado a entrada de produtos genéricos no Brasil.
É preciso proibir o patenteamento de produto já conhecido, baseado em pequenas alterações na fórmula ou sob o argumento de que terá uso diferente do original, o que na prática tem levado à eternização do monopólio das patentes.
Deve ser fortalecido o dispositivo do licenciamento compulsório, já previsto na legislação (utilizado no Brasil pela primeira vez em 2007, com o efavirenz, um medicamento anti-HIV) que consiste na autorização outorgada pelo estado para que terceiros possam explorar a patente de um produto sem o consentimento do titular, desde que atendidos os requisitos legais de interesse público.
Além da licença compulsória, caberia a previsão legal de facilitar o uso público e não comercial de patentes de produtos, que passariam a ser produzidos pelo governo ou empresas, desde que para fins exclusivos de politicas públicas de distribuição gratuita, sem interferir no prazo de monopólio conferido à empresa detentora da marca.
Outro imperativo é o fim do mecanismo chamado pipeline – que faz o Brasil aceitar as patentes concedidas em outros países antes de a lei nacional entrar em vigor, em 1996, quando já estavam no domínio público brasileiro. Para se ter uma ideia, o mecanismo de pipeline subtraiu do SUS de US$ 519 milhões, devido à revalidação indevida da patente de cinco antiretrovirais entre 2001 e 2007. Espera-se o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4234, para por fim a esse tipo de revalidação de patente estrangeira que não traz em si o princípio da novidade.
No leque de medidas para viabilizar o acesso a medicamentos no SUS, o legislador não pode deixar de ampliar as possibilidades de importação paralela, toda vez que um produto é comercializado em outro país, pelo titular da patente ou por terceiros autorizados, por um preço mais baixo do que o praticado no Brasil. Esse impeditivo leva a distorções absurdas. Por exemplo, um medicamento anti-HIV, o atazanavir, vendido para o Ministério da Saúde por US$ 2,80 o comprimido, é encontrado por US$ 0,53 no mercado internacional, mesma situação do antibiótico linezolida, cujo preço no Brasil chega a US$82,00 contra US$ 2,50 em outros países.
Na concessão de patentes, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) muitas vezes deixa de considerar o interesse da saúde pública. Por isso, na revisão do marco legal, deve ser ressaltado o mecanismo de análise e anuência prévia das patentes de medicamentos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Qualquer pessoa ou entidade interessada, por meio de questionamento fundamentado, deveria ter a oportunidade de evitar a concessão equivocada de uma patente, mas para isso devem ser instituídos mecanismos formais de oposição a pedidos de patentes, o que hoje não é plenamente garantido na lei.
Faz-se necessário, ainda, proibir a exclusividade de dados de medicamentos, a exemplo de resultados de ensaios pré-clínicos e clínicos, fornecidos pelas empresas durante o período de registro. Fora da lei atual, essa exclusividade vem sendo garantida por decisões judiciais que concedem o sigilo, a pedido de empresas detentoras dos dados, o que dificulta a produção de genéricos após a expiração do monopólio, o que resulta de fato na extensão da patente além do tempo da concessão.
O novo texto legal precisa, ainda, excluir, do rol de produtos que podem ser patenteados, os medicamentos para tratar doenças negligenciadas, como tuberculose, malária, hanseníase, dengue, doença de chagas, leishmaniose, dentre outras.
A discussão sobre a revisão da lei de patentes ocorre num momento de intensa expressão pública pela garantia dos direitos essenciais, com destaque para a reivindicação do acesso a saúde. É, portanto, anseio da sociedade, a conquista de uma lei de patentes que evite abusos e subterfúgios, que estimule a verdadeira inovação e que adote todas as flexibilidades previstas nos acordos internacionais. Ao fim, trata-se de aprovar nova lei e fixar novas práticas para que o direito à propriedade intelectual e ao lucro não se sobreponham ao direito à saúde e à vida.
* – Jorge Beloqui, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP.
** – Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, são ativistas da luta contra a aids e membros do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).