Fabrício Augusto de Oliveira *
Impressiona-me como alguns analistas de esquerda ainda tentam justificar a política econômica atual, e a enxergar, mesmo que com dificuldade, algum compromisso do governo com um projeto de sociedade em que continuem preservadas e protegidas algumas bandeiras progressistas. Isso porque, não é uma tarefa fácil, mesmo usando uma lupa de grande alcance, encontrar algo que tenha restado de um projeto que, promissor em sua proposta inicial para o povo brasileiro, começa a se despedir – se é que isso já não ocorreu – de forma melancólica.
Não há muito o que fazer neste momento em que o Estado se encontra praticamente falido, incapaz de administrar com equilíbrio suas contas primárias, gerando um déficit nominal na casa dos 8% do PIB, o que o impede de continuar cometendo desatinos orçamentários para não agravar ainda mais a já delicada relação dívida bruta/PIB. Menos ainda, com um déficit nas contas externas superior a 4% do PIB, que só tem sido estancado por ter o país mergulhado num processo recessivo que, combinado com a recuperação do câmbio, num cenário de crescente instabilidade, derrubou as importações, reduziu as viagens dos brasileiros ao exterior e diminuiu as remessas de lucros das empresas estrangeiras para suas matrizes.
Se este quadro não é suficiente para demonstrar o fracasso da política econômica, a ele pode-se adicionar os ingredientes que tal situação tem acarretado: não tão cedo o país conseguirá se libertar do torniquete da recessão que se aprofunda, derrubando o nível de emprego e de renda e vendo recuar, gradualmente, os ganhos que foram arduamente conquistados em relação à redução das desigualdades sociais, ainda mais considerando que o financiamento das políticas públicas vai se tornando, neste quadro, cada vez mais problemático.
Não é o momento de continuar procurando virtudes que não mais existem ou que só permanecem por não terem atravessado o caminho de quem detinha o comando do barco. O momento é de autocrítica e de reflexão para se saber onde e porque se errou, se este for o caso, visando extrair lições que podem iluminar futuras oportunidades que surgirem para não serem novamente perdidas.
O fato é que, embora muitos não admitam, errou-se muito desde o começo do governo Lula, para quem se propunha combinar um projeto de crescimento econômico com inclusão social. No primeiro mandato, adotando um receituário ortodoxo, o crescimento veio praticamente “de graça” com o boom da economia internacional e com o “efeito-China”, catapultando as reservas externas e as receitas públicas, mas do ponto de vista da política econômica, nenhuma reforma importante foi realizada para fortalecer a indústria, aumentar os investimentos e a produtividade do trabalho e reduzir o custo-Brasil, visando tornar consistente este crescimento.
Tendo recebido o crescimento praticamente sem esforço, abriu-se espaço, com o aumento das reservas e da arrecadação, para o país se tornar menos vulnerável às crises externas e fazer avançar e fortalecer políticas redistributivas – bolsa-família, fundos para o financiamento de estudantes, valorização do salário mínimo etc., mas sem procurar, em nenhum momento, se livrar do ou mitigar o peso que o capital financeiro ocupa no orçamento, que, por sinal, continuou a aumentar no tempo. A frase de Lula de que “os ricos nunca ganharam tanto dinheiro como no meu governo” é emblemática dessa situação.
Uma combinação que só poderia funcionar, na ausência de reformas estruturais, enquanto houvesse oxigênio suficiente para continuar mantendo a economia em crescimento. Este, no entanto, sofreria sérios abalos, primeiro com a crise do subprime de 2007-2008 e, posteriormente, com a da dívida soberana europeia, mas sem, contudo, enfraquecer a disposição do governo de continuar na aventura de uma combinação bem sucedida durante a fase mais áurea de crescimento mundial, em que colheu politicamente abundantes frutos, e levá-lo a rever a estratégia para criar as condições de continuidade de um crescimento mais consistente e sustentado.
Obstruídas as fontes mais “fáceis” do crescimento, a estratégia deslocou-se, para sustentá-lo, para as políticas anticíclicas de estímulo ao consumo, as quais, se justificadas para mitigar os efeitos de uma crise, como foi feito exitosamente no caso do subprime, visando a proteger e defender a renda e o emprego do trabalhador até a sua superação, não podem ser mantidas indefinidamente, se desacompanhadas de reformas que fortaleçam e dinamizem o lado da oferta, pelas inevitáveis tensões que terminam provocando no campo orçamentário, nas contas externas e na inflação.
Como essas reformas foram, em geral, solenemente ignoradas, acreditando-se que o consumo seria capaz de impulsionar os investimentos privados e expandir a oferta, numa economia prisioneira de graves problemas estruturais, com o Estado arcando com o maior peso das políticas redistributivas e mantendo infensas, deste ônus, as camadas mais ricas da sociedade, não haveria como escapar, no médio prazo, de uma situação de progressiva deterioração das principais variáveis macroeconômicas. À necessidade de reformas, o governo apenas reagia, incentivando a população a gastar mais, mantendo, para isso, artificialmente o câmbio represado, expandindo o crédito, ampliando as transferências diretas de renda e reduzindo e desonerando alguns setores de impostos para baratear os preços dos produtos. Uma equação que, para não poucos, não era sustentável.
Durante algum tempo, no entanto, essa experiência funcionou, produzindo ilusões, como se o país tivesse encontrado uma nova receita de política econômica redentora em que a economia só dependeria da demanda, a ela se ajustando, automaticamente, a oferta. Beneficiado pelo forte crescimento do consumo, com a expansão de uma “nova classe média”, o desemprego praticamente desapareceu com a criação de novos postos de trabalho em setores de baixa produtividade, como o de serviços, os salários aumentaram ano a ano pelo maior aquecimento do mercado de trabalho, contribuindo – e muito! -, juntamente com as políticas redistributivas, para a redução das desigualdades de renda.
Essas ilusões encobriam, contudo, o que ocorria pelo lado real da economia: com os efeitos do aumento do consumo vazando para o exterior, diante da impotência da indústria brasileira de concorrer com os produtos importados e atender a demanda adicional, os déficits comerciais externos retornaram e a indústria de transformação ingressou numa trajetória persistente de declínio, com quedas nas exportações, no emprego industrial e redução de sua participação no PIB, configurando um processo de desindustrialização precoce e de reprimarização da pauta exportadora. Com o câmbio represado para conter as pressões inflacionárias, os déficits na balança de transações correntes tornaram-se crescentes, recolocando o país na rota da vulnerabilidade externa, principal óbice para o crescimento econômico nas décadas de 1980 e 1990. Com o Estado arcando com boa parte dos custos do aumento do consumo, num processo de inclusão social criticável e insustentável, mantendo preservadas a renda e a riqueza dos setores dominantes, os desequilíbrios orçamentários tornaram-se inevitáveis, só encobertos pela prática de uma “contabilidade criativa”, que se tornou uma rotina para sustentar, enquanto foi possível, essas ilusões.
Uma política que, ao fim e ao cabo, terminou fornecendo argumentos e motivos para o retorno da ortodoxia ao comando da política econômica e que, mesmo que alguém discorde, tem responsabilidade no ajuste esquizofrênico em curso na atualidade, que está condenando o país a passar alguns anos no “inferno da estagnação” e do desemprego e a devolver pelo menos parte dos ganhos que foram obtidos em termos de redução das desigualdades para “ajustar” a economia de acordo com os cânones neoliberais, nos quais não cabe qualquer contemplação com o social.
Iniciativas importantes, mas tardias, como as dos programas de investimentos em infraestrutura e de estímulos às exportações, não devem aplacar a política de “terra arrasada” de um ajuste letal para a economia e a sociedade, o qual, mal sucedido este ano por uma arquitetura em tudo inconsistente e pela oposição política oportunista do Congresso, vai aumentar e manter a instabilidade nos mercados financeiros, agravar a situação de endividamento do país e exigir mais e mais ajustes da mesma natureza nos próximos anos para satisfazer as aves de rapina da riqueza financeira. Não será a simples redução do superávit primário de 1,2% para 0,15% do PIB que trará de volta o crescimento, como se tem visto em algumas análises.
De qualquer modo, o fato é que a política econômica foi reprovada no teste realizado e o modelo que ensaiou fracassou por razões que devem ser consideradas nessa avaliação: i) por ter procurado fazer uma política redistributiva conciliadora, mantendo intocados, ao mesmo tempo, e até mesmo beneficiados neste processo, os detentores da renda e da riqueza; ii) ter descurado de criar as condições estruturais para garantir um crescimento econômico consistente, necessário para a sustentação de políticas dessa natureza; iii) não ter criado mecanismos sustentáveis de financiamento das políticas sociais, priorizando a inclusão social pelo maior acesso aos bens de consumo; e iv) por ter ignorado as regras do capital e não ter sabido aproveitar as alternativas e brechas que surgiram, neste período, para implementar políticas mais consistentes voltadas para a melhoria das condições de vida da população brasileira. São lições que não podem ser esquecidas em novas oportunidades que surgirem.
* – Doutor em economia pelo Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, colaborador do Brasil Debate e autor, entre outros, do livro “Política econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”