André Biancarelli* | Publicado originalmente no Jornal do Brasil
Na semana que se encerra, em paralelo ao encontro de cúpula dos BRICS, realizou-se em Fortaleza-CE uma série de eventos da sociedade civil para também discutir esta aliança na perspectiva dos povos. Organizadas pela Fundação Friedrich Ebert (ligada ao SPD alemão) e por outras organizações, algumas sessões se propuseram a examinar as desigualdades sociais nas grandes economias emergentes. O conceito norteador da troca de experiências e ideias foi o da “prosperidade compartilhada”: a busca por uma associação virtuosa entre geração e distribuição da renda. Sob esse ponto de vista a experiência brasileira recente, principalmente quando comparada com a realidade no maior dos BRICS, se revela um ponto fora da curva, uma positiva exceção.
A questão da desigualdade tem suscitado importantes debates teóricos nos últimos tempos. Uma visão convencional do problema – que implícita ou explicitamente defende a concentração de renda, como forma de incentivar a poupança dos mais ricos e, assim, o investimento – apresenta sérios problemas teóricos e não encontra respaldo empírico. Recentemente, vem sendo rejeitada mesmo no interior do mainstream acadêmico e financeiro internacional.
Para a social-democracia europeia tradicional, estas relações estavam muito bem estabelecidas durante a “Era de Ouro” do após-Guerra. A pressão sindical por maiores salários redundava não apenas em ampliação do poder de compra dos trabalhadores (e demanda efetiva que incentivava aumentos de produção e ampliação da capacidade), mas também em investimentos em inovação que elevavam, desta maneira virtuosa, a produtividade da economia. Este arranjo, por uma série de razões, deixou de funcionar bem ao longo dos anos 1970, e a reação política às dificuldades resultou na hegemonia liberal-conservadora inaugurada por Reagan e Tatcher.
Nos Estados Unidos são observados os resultados mais dramáticos, em termos de equidade social, desta guinada. A parcela dos salários no PIB cai, continuamente, dez pontos percentuais desde o fim dos anos 1960, para o mínimo histórico de 42,5% registrado em 2013. O índice de Gini, medida básica da distribuição pessoal da renda (que quanto mais próximo de 1 revela maior desigualdade), sai da faixa de 0,39 para 0,48 no mesmo intervalo.
Transformações também muito rápidas, e negativas, se verificam na economia de maior êxito na história recente do capitalismo, e grande líder do BRICS. Com crescimento médio próximo a 10% ao ano desde o fim da década de 1970, o índice de Gini na China (de acordo com os dados oficiais) sai da quase igualdade (0,18 em 1978) para os atuais 0,47, com um grande salto ocorrendo entre 1998 e 2008 (de 0,32 para 0,49). Porém, cálculos alternativos apresentados em Fortaleza pelo professor JiannanGuo, da Southwestern University of Finance and Economics daquele país, apresentam uma realidade ainda mais impressionante. Quando calculado com base em pesquisas domiciliares realizadas pela universidade, o Gini atual da China se situaria em torno de 0,61.
Antes que se insinue a vigência da relação espúria entre concentração e crescimento, há que se levar em conta uma série de especificidades daquele país, com destaque para os controles migratórios, os contrastes regionais e o sistema de conexões pessoais (guanxi) que reproduz e acentua as diferenças. Mas a conclusão é inescapável: a prosperidade, justo onde mais salta aos olhos, definitivamente não está sendo compartilhada.
Neste contexto é que as transformações recentes vividas pelo Brasil constituem exceção, honrosa. Conseguiu-se, em curto espaço de tempo, reduzir de maneira significativa as diferenças de rendimento do trabalho. Usando a mesma régua, o Gini brasileiro, que atingiu seu auge no fim da década de 1980 (quase 0,64) e girava em torno de 0,60 nos anos 1990, se reduz continuamente até os 0,53 do último registro. Os determinantes desta transformação (políticas de transferência, crédito, e principalmente a redução da informalidade e o aumento do salário mínimo) mostram que não se tratou de processo espontâneo.
Mais importante, o fato de ter ensejado a ampliação mercado de consumo e se tornado o principal motor do dinamismo é a prova de como a associação entre prosperidade e distribuição ainda pode funcionar da maneira virtuosa que informa a reflexão progressista internacional. E faz com que a impressão sobre o país e suas perspectivas, por parte destes observadores externos, seja bem melhor do que a disseminada pelo chamado “mercado financeiro internacional” e seus congêneres domésticos.
As várias qualificações que são necessárias a esta síntese do caso brasileiro – o patamar ainda muito alto de desigualdade, os problemas na mensuração na renda, a situação intocada ou piorando em outras dimensões das diferenças sociais, o fôlego cada vez menor da retroalimentação entre distribuição e crescimento– não invalidam a lição principal. Pelo contrário, estes e outros problemas deveriam ser o incentivo para a busca de novas frentes de “compartilhamento da prosperidade”. Que não deve ignorar os desafios da difícil conjuntura atual, mas também não pode abrir mão dos objetivos maiores do desenvolvimento, que só começaram a ser contemplados nos últimos anos.
* André Biancarelli é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da mesma instituição e coordenador da Rede Desenvolvimentista.