Gastão Wagner de Sousa Campos*
O programa “Mais Médicos” apresentado pelo governo federal é uma tentativa de responder ao movimento social dos últimos meses. O projeto tem quatro propostas principais que objetivariam melhor a qualidade da política pública de saúde e do SUS.
Essa iniciativa levanta temas que merecessem apoio, mas, ao mesmo tempo, traz vários aspectos que não deverão ser apoiados por aqueles interessados no bem-estar dos brasileiros.
Merece nosso apoio o propósito de “contratar” 10 000 médicos para a rede de atenção básica (primária), particularmente, em postos localizados em regiões de grande vulnerabilidade social e sanitária, tanto em municípios pequenos ou médios quanto na periferia dos grandes centros. A extensão da atenção primária à saúde em geral, e da Estratégia de Saúde da Família, para mais de 90% dos brasileiros, nunca foi assumida como meta por nenhum governo federal ou estadual. Vários políticos haviam desistido da Saúde da Família, haviam se encantado com a substituição desse modelo pela demagogia das Unidades de Pronto Atendimento. Então, louvor ao propósito do governo federal de apoiar os municípios para provimento de médicos.
Entretanto, não merece nosso apoio a forma de “contrato” indicada pelo governo. Em realidade, é um contrato ilegal e as condições de recrutamento parecem inventadas para “espantar” os eventuais candidatos. Primeiro, porque se trata de um “contrato” provisório, três anos, prorrogáveis por mais três. O que significa que os médicos deverão deixar todas suas atividades – plantões, consultórios, etc. – para algo que terminará e o deixará com uma mão à frente e outra atrás. O governo federal dá um péssimo exemplo ao insistir em recrutar pessoal de maneira canhestra, a margem da lei, sem segurança ao profissional. As contratações precárias são um dos principais problemas do SUS hoje. Por que não propor uma carreira para os médicos da atenção básica? Uma carreira do SUS, com cofinanciamento da União, estados e municípios. Fazer concursos por estado da federação. Criar um interstício de cinco anos em que o médico estaria obrigado em permanecer no posto. Depois, antes de outro concurso, ele poderia escolher outra localidade ou outro posto. Como ocorre com juízes e promotores, há município sem juiz? A queixa das entidades médicas em relação ao modelo de contratação tem sentido e conduzirá o programa ao fracasso. Além do mais já é hora de criar-se uma política de pessoal decente para o SUS. Temos recursos e proposições factíveis que combinam a cobrança de responsabilidade sanitária, para médicos e outros profissionais, com autonomia profissional.
Merece ainda nosso apoio a preocupação com a formação dos médicos segundo métodos empregados em países com sistemas públicos de saúde, no caso, aumentando estágio na atenção primária ou básica. Merece também nosso elogio a decisão de recrutar uma parte dos médicos da atenção básica segundo normativas compulsórias ou estratégias de indução. Todos os países do mundo têm dificuldade para compor médicos para a atenção primária.
Entretanto, não tem cabimento racional estender-se o curso de medicina para oito anos! O necessário será realizar-se reforma do ensino médico, objetivando formar médicos com formação geral, em clínica e em saúde pública, com estágios práticos em todos os serviços do sistema, inclusive na atenção básica.
Ao invés de acrescentar-se mais dois anos ao já longo curso de graduação seria muito mais simples obrigar que todas as residências, de todas as especialidades, realizassem todo o primeiro ano em unidades básicas de saúde. Nesse caso, durante esse ano, as bolsas de residência seriam aumentadas segundo o piso inicial da carreira dos médicos da atenção básica. Óbvio que com supervisão de professores no local e à distância, por meio das Universidades responsáveis pelos cursos de residência. Para isto, bastaria que MEC e Ministério da Saúde apenas alterassem as normas da residência médica e teríamos esses dois objetivos atendidos: tanto o de melhorar a formação dos médicos, reforçando o caráter integral e humanista, afinal médico lida com gente e não com máquinas, quanto garantindo que entre sete e dez mil médicos, no primeiro ano de residência, estariam na atenção básica, de preferência nas localidades com alta vulnerabilidade. Vale lembrar que, em torno de 90% das bolsas de residentes, são de origem pública. União e estados da federação.
Merece ainda nosso apoio, a ampliação, em torno de dez mil novas vagas, para residência. Particularmente se forem priorizadas residências para médicos de saúde da família e comunidade (generalistas, especializados em atenção primária) e outros especialistas em falta no SUS: anestesistas, psiquiatras, oncologistas, pediatras, entre outros.
Entretanto, não tem cabimento a proposta de ampliarem-se dez mil vagas para graduação médica. O Brasil tem 1,8 médicos por mil habitantes; o Canadá, 1,7; a Inglaterra, 2,4; com mais dez mil médicos se formando ao ano, em menos de uma década, teríamos um número excessivo de médicos. Elemento danoso conforme demonstram caso dos EUA e de Cuba.
Entretanto, de fato, necessitamos de mais médicos, mais vagas nas Faculdades de Medicina, não entre dez a onze mil; mas algo entre três e quatro mil vagas. Nesse caso, o governo e o SUS deveriam apoiar a ampliação da rede de Faculdades Públicas, não há porque estimular a abertura de escolas privadas.
Resta-nos a intenção governamental de “importar” médicos estrangeiros no caso de brasileiros não preencherem a cota necessária. Caso se adotasse a proposta de realizar-se o primeiro ano de residência, em todas as especialidades, na atenção primária, seriam de sete a dez médicos a mais na rede básica! Bem, ainda tendo em vista o modelo de contratação já criticado, parece-nos que a inevitabilidade destas contratações é determinada muito mais pela falta de carreira e possibilidade de remanejamento e promoção ao longo dos anos, do que a outros fatores. Por outro lado, o subfinanciamento crônico do SUS e estímulos fiscais à medicina de mercado fizeram com que, para atender aos 25% de brasileiros com seguro privado, tenhamos 54% dos recursos financeiros gastos em saúde. Isto induziu uma distribuição de médicos distorcida, quase 55% da capacidade de atendimento médico é absorvida pelo setor privado.
Falta SUS, portanto.
O Brasil escolheu o “direito universal à saúde” quando elaboramos nossa Constituição. Trata-se de um princípio de natureza ética, moral, que se transformou em lei. Nossa Lei Maior responsabilizou o Estado e a sociedade pela transformação desse valor abstrato em realidade. Indicou ainda um modelo organizacional para dar concretude a essa aspiração: o SUS.
Falta enfrentar o entrave do subfinanciamento, calcula-se que seria necessário dobrar os gastos com o SUS. De 3,6% do PIB chegar-se a mais de 7%. Falta eliminar o incentivo fiscal e os repasses de orçamento público ao setor privado, cálculos indicam que seriam injetados mais de 20 bilhões de reais no SUS ao ano se isto acontecesse.
Falta realizarmos uma radical reforma do modelo de funcionamento da assistência à saúde em geral e da assistência médica em particular. O SUS é uma adaptação tupiniquim da tradição dos Sistemas Públicos e Universais de Saúde que surgiram na Europa a partir da segunda metade do século XX. Estes países inventaram a atenção primária com base em médicos e enfermeiros generalistas, encarregados do atendimento clínico e preventivo de toda a população e não somente dos pobres. Os hospitais e especialistas funcionam articulados, integrados, em rede com a atenção primária. Os serviços de urgência e de saúde coletiva são complementares.
Falta prosseguir na reforma administrativa e do modelo de gestão do SUS. O SUS está fragmentado, dividido, com políticas e programas diferentes conforme o governo, conforme seja da União, dos estados ou dos municípios. O SUS está dividido entre atenção primária, hospitais, ambulatórios, urgência, saúde mental, etc. O SUS está sendo estraçalhado entre serviços públicos, organizações sociais, fundações, entidades filantrópicas, uma Babel em que não há solução gerencial mágica. O SUS sofre com as mesmas mazelas do Estado brasileiro: ineficiência, privatização de interesses, clientelismo, burocratização. Precisamos, urgente, de uma reforma do modelo de gestão que diminua o poder discricionário do poder executivo e que assegure sustentabilidade e continuidade ao SUS.
Falta, vale insistir, uma ampla e generosa política de pessoal: repensar a formação, carreiras com responsabilidade, condições de trabalho adequadas, e educação permanente.
O Brasil precisa do SUS.
* – Gastão Wagner de Sousa Campos é professor titular de Saúde Coletiva da FCM/UNICAMP.