A viabilidade de um Sistema Universal de Saúde no Brasil

Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna (UFRJ)

A proposta do debate – a viabilidade de um sistema universal de saúde no Brasil – refere-se, suponho, a um sistema público. Óbvio, me responderiam os organizadores caso eu colocasse uma impertinente interrogação na afirmativa enunciada acima. Mas sempre é bom explicitar, porque no Brasil (e não só no Brasil, mas é dele que estamos falando) conjecturar sobre o público sem mencionar sua presumida alteridade – o privado – pode comprometer a análise. O que vale tanto para a saúde como para a educação, a infraestrutura, etc.

A distinção entre público e privado é um fundamento do Estado nacional moderno, do qual são devedores até hoje a economia de mercado e o próprio capitalismo. Princípio inscrito na filosofia política desde Maquiavel e constitucionalizado pelas formações liberais que começam a emergir sobretudo a partir de fins do século XVIII. Está nos clássicos do liberalismo “avant la lettre” – Locke, principalmente -, mas também em Hobbes, Montesquieu, Rousseau. Negócios, religião, liberdades e preferências individuais fazem parte do mundo privado. Ao Estado – a esfera pública – cabe (dirá Weber séculos mais tarde, ainda numa chave liberal) exercer o monopólio da violência legítima. Armas e tributos. No que repete, em essência, a postulação hobbesiana, por curioso que pareça (no cap. XVIII do Leviatã, Hobbes adverte que o Soberano pode e deve delegar aos indivíduos as atividades de produzir e gerar riqueza; mas, se abdicar das atribuições de controlar os exércitos e arrecadar impostos, perderá a capacidade de desempenhar suas funções precípuas, a de assegurar que os contratos sejam efetivamente realizados e a de garantir que os agentes estejam em segurança para operar).

O mesmo Weber formulou, no início do século XX, o conceito de patrimonialismo – um tipo de relação tradicional entre governantes e governados – caracterizado basicamente pela indistinção entre público e privado. A relação moderna, racional, mediada pela burocracia, seria, para o sociólogo alemão, fundada

na impessoalidade, em regras e trâmites firmados na lei, na efetiva separação, enfim, entre público e privado. “Invenção” burguesa (Marx denunciou a separação entre público e privado como forma de ocultamento da natureza de classe do Estado capitalista), essa distinção, teoricamente de origem liberal, permitiria, no entanto, a consolidação de uma esfera pública relativamente blindada à captura pelos interesses privados. E, assim, viria a ser fundamental para a construção do Welfare State na Europa do pós-guerra, que, nas palavras de Francisco de Oliveira, representou uma “revolução copernicana” nas relações entre capital e trabalho, a partir das novas funções desempenhadas pelo fundo público na reprodução de ambos (Oliveira, 1988).

No Brasil, o Visconde de Cayru, discípulo de Adam Smith em Glasgow, e ministro da fazenda de Dom João VI, escreveria que “o bom governante é aquele que governa seu reino como se fosse a sua casa” (tirei a citação de Sérgio Buarque, Raízes do Brasil). Ou seja, público e privado, juntos e misturados.

As relações promíscuas entre público e privado no Brasil se estabeleceram desde cedo. José Murilo de Carvalho, em Cidadania no Brasil, o longo caminho, cita um tal Frei Vicente do Salvador, autor de um texto do século XVII intitulado História do Brasil, 1500 – 1627, no qual ele, o Frei, reproduz as palavras de um bispo de Tucumán, em passagem pelo Brasil na ocasião. Diz o bispo: “Verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-a cada casa”. Interessante o uso do termo república no século XVII. Bem atual. José Murilo de Carvalho completa: o poder do governo terminava na porteira das grandes fazendas.

O que não significava de modo algum, ele adverte, uma separação entre a casa e a rua, entre o privado e o público. Ao contrário, imperador, fidalgos, presidentes, governadores, coronéis, oligarcas em geral, compartilhavam promiscuamente o poder, na mesma casa e na mesma rua. Graças ao controle de cargos [delegado de polícia, juiz, coletor de impostos, agente do correio, professora primária] o coronel, o chefe local, podia premiar os aliados, controlar sua mão-de-obra e fugir dos impostos. Fruto dessa situação, diz ainda o historiador José Murilo de Carvalho, “eram as figuras do

‘juiz nosso’ e do ‘delegado nosso’ , expressões de uma justiça e de uma polícia postas a serviço do poder privado” (José Murilo de Carvalho, 2005, pag. 56). Também atual.

Bem que o Marquês de Pombal tentou, no século XVIII, dar um jeito nas coisas. E, para nos aproximarmos do tema da saúde, cabe lembrar que entre suas determinações destacou-se a expulsão dos jesuítas de Portugal e do Brasil. A força da Igreja era uma manifestação do poder privado, denotada de forma contundente nas searas da educação e da saúde. Não que o Marquês estivesse preocupado com a educação e a saúde do povo. Tinha, sem dúvidas, outras intenções. Mas, de todo modo, foram inócuas, no caso, suas determinações. A Santa Casa, que aqui aportou nos anos 1500, aqui está até hoje. Substituiu, privadamente – ao lado de outras ações igualmente privadas, como o paternalismo, o apadrinhamento e a repressão doméstica, retratados primorosamente pelas gravuras de Debret e Rugendas – os asilos públicos que países hoje desenvolvidos conheceram sob a égide das Leis dos Pobres na transição para o capitalismo.

É nos anos 30 do século XX, após o movimento que levou Vargas ao poder e que deslanchou o projeto industrializante de desenvolvimento nacional, que a questão da saúde entra com mais vigor e consistência na agenda pública. Não só como tentativa de erradicar (algumas) doenças infectocontagiosas que infestavam os principais portos de exportação e potenciais centros industriais, mas como benefício oferecido a trabalhadores urbanos em matéria de atendimento médico-hospitalar. Com a introdução dos seguros sociais compulsórios, sob a forma dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, começa a se configurar uma das principais características do sistema de saúde no Brasil: sua segmentação. Além da separação entre ações preventivas, ditas sociais, e ações curativas, de atendimento individual, a segmentação se expressava nas diferenças entre os IAPs no que concerne aos serviços oferecidos. Nenhuma jabuticaba. Bismarck implantara sistema semelhante na Alemanha dos anos 1880. Mas aqui a tal da dependência de trajetória (path dependence, o nome científico do popular “o passado me condena”) parece ter mais aplicabilidade do que na Alemanha.

Cabe lembrar que o IAPI – o Instituto dos trabalhadores na indústria – o mais populoso e funcional ao projeto desenvolvimentista, não tinha hospitais próprios, como tinham, por exemplo, o Instituto dos Bancários e o IPASE (o Instituto criado em 1938, durante o Estado Novo, para os servidores civis da União). No IAPI, nada de custos excessivos. Hésio Cordeiro, em seu clássico estudo de 1984, As Empresas Médicas no Brasil, mostra que foi no IAPI, antes mesmo do golpe de 64, que se gestou a estratégia de contratação (ou seja, compra) de serviços privados para ofertar atendimento médico aos segurados. (Para alguns segurados que podiam arcar com os encargos de co-pagamento).

Essa seria a estratégia básica de ampliação da oferta após a unificação dos IAPs no INPS, em fins de 1966. Não se tratava, mais uma vez, de jabuticaba alguma. Os técnicos do IAPI, os chamados “cardeais da previdência”, tinham aprendido atuária nos Estados Unidos e estudado fórmulas semelhantes em outros países, como mostra Gilberto Hochman. O que vai conferir alguma especificidade ao caso brasileiro será a forma fechada em que as negociações e escolhas se darão, permitindo que relações espúrias entre público e privado viessem a prevalecer. Uma burocracia weberiana praticante do neopatrimonialismo.

A partir de então, a segmentação do sistema de consolidaria. Nos anos 70, a classificação dos subsistemas – público, privado, privado lucrativo e não-lucrativo – seria sedimentada pela legislação, assim como as atribuições diferenciadas dos ministérios da saúde e da previdência (normas estabelecidas no PPA – Plano de Pronta Ação e no Sistema Nacional de Saúde, instituídos respectivamente em 1974 e 1975).

Com a reforma administrativa promovida pelo Decreto-Lei 200, em 1967, e, sobretudo com as resoluções que se seguiram ao AI-5, em 1969, o sistema de arrecadação de impostos se modernizou. Foi criada a Declaração Anual de Ajuste e nela encaixada a fórmula das deduções.

As deduções de gastos com saúde privada (na época também deduções generosíssimas com gastos em educação privada) se transformaram num dos principais incentivos à expansão de um mercado de assistência médica no país. Se a fórmula não foi inventada pela ditadura militar, foi, durante a mesma, aprofundada.

Paralelamente, recursos do FAS (Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social, criado em 1974) possibilitaram que a construção de novos estabelecimentos privados fortalecesse esse mercado. Em 1964, do total de estabelecimentos hospitalares existentes no Brasil, 16% eram públicos (contando as redes federal, estaduais e municipais). Em 1974, o número absoluto de estabelecimentos havia quase dobrado, mas o percentual, em relação ao total de estabelecimentos, se elevara para míseros 16.4%. Entre os privados, os lucrativos passaram de 33.2% do total, em 1964, para 44.5% em 1974. E os não-lucrativos tiveram sua participação reduzida de 50.8% em 1964 para 39.1% dez anos depois. Os leitos hospitalares públicos passaram de 47% do total em 1950 para 28% em 1975, enquanto os privados, cuja participação no total era de 53% em 1950, passaram a 72% em 1975 (Cordeiro, 1984; Werneck Vianna, 1998).

Essa história é bastante conhecida mas nunca é demais recordá-la. Hoje há uma tendência a pensar que a “privatização” da saúde, bem como a trajetória de crescente segmentação da atenção médica, teve início nos anos 90 quando a chamada onda neoliberal invadiu o país, desvirtuando as conquistas consignadas pela Constituição Federal de 1988. A retrospectiva mostra que o processo é anterior. A segmentação do sistema de saúde vem do primeiro autoritarismo – o de Vargas nos anos 30 e 40. E a lógica privatizante foi acoplada ao sistema pelo segundo

autoritarismo, o militar, nos anos 70. Esse último praticamente “criou” um mercado de saúde no Brasil.

Parece curioso que na América Latina governos autoritários criem mercados. Mas só parece. Porque, seguindo as formulações de Polanyi (1944/1980) sobre o papel do Estado na formação dos mercados nacionais, podemos deduzir que tais iniciativas integraram uma espécie de neomercantilismo que, nos anos 70 e 80, pavimentou o caminho do neoliberalismo da década de 90 (do século XX, não do século XVIII).

No caso brasileiro, o problema não é (ou não é somente) a existência desse mercado, mas as velhas relações de promiscuidade entre público e privado que sempre voltam a agir. Obscuras durante a ditadura e disfarçadas na democracia. São essas relações e as práticas nas quais elas se traduzem que alimentam e costuram os

diversos obstáculos à efetivação do SUS como sistema único e universal. Entre eles, a extrema segmentação de todo o sistema, incluindo o privado (segmentação da oferta e da clientela), a fragmentação territorial (cinco mil e tantos SUS municipais!), o subfinanciamento do sistema público e a sua exclusão da agenda governamental desde que foi instituído ( e ressalte-se que foi instituído como política de Estado, não de governo).

A Constituição Federal de 1988 inaugurou no Brasil um sistema de seguridade social, incluindo nele a previdência social, a saúde e a assistência social. Diversamente do conceito de seguro social, a seguridade é um sistema – como está definido em várias convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho) – que combina benefícios contributivos e benefícios não contributivos. Como concepção, maturada no âmbito da socialdemocracia europeia durante a primeira metade do século XX e amparada pela teoria econômica keynesiana, tem sentido redistributivo. Não produz nem se propõe a produzir homogeneidade social, mas reforça a redução das desigualdades operada sobretudo por políticas fiscais.

Trata-se com efeito de um sistema, no qual receitas são solidariamente compartilhadas, e que, desse modo, reduz, como sistema, o caráter securitário da previdência social (que é, por natureza, um seguro social) e dilui possíveis estigmas atribuídos à assistência pública (que também é, por natureza, uma política assistencial). A concepção de seguridade social envolve conceitual e potencialmente a desmercadorização dos direitos (à saúde e à previdência, por exemplo) e a desfilantropização dos benefícios assistenciais. Como mostra Esping-Andersen, em seu famoso texto As três economias políticas do Welfare State, a desmercadorização significa que o trabalhador deixa de depender do mercado para ter acesso a bens fundamentais para sua reprodução, como, por exemplo, a atendimento médico. E mais, significa que o direito deixa de ser social-corporativo (como no modelo bismarckiano dos IAPs de Vargas) e passa a ser social em sentido pleno, deixando também de depender do vínculo formal de trabalho. O direito deixa de ser direito do trabalhador/consumidor/segurado e passa a ser direito do cidadão. Claro que isso não cai do céu; trata-se de uma construção política, levada a cabo por confrontos e

negociações entre atores coletivos. É claro, também, que a reação do mercado à desmercadorização é de ferrenha oposição.

Não cabe aqui aprofundar esse tema, mas vale destacar que a concretização da seguridade não ocorreu no Brasil. A regulamentação dos preceitos constitucionais, nos anos 90, se deu de maneira a setorializar a ações de previdência, saúde e assistência. Cada setor recebeu sua própria Lei Orgânica, cada setor se instalou num Ministério e a cada setor foram gradativamente se destinando parcelas específicas do conjunto volumoso de receitas estabelecidas pela Carta.

O desmonte da Seguridade, porém, impacta negativamente cada um dos setores em pelo menos duas dimensões interligadas: a do financiamento e a da solidariedade.

No que concerne ao financiamento, a função meramente decorativa do orçamento da seguridade social – e, portanto, do conjunto de receitas constitucionalmente estabelecidas para a seguridade, das quais parte substanciosa vai para o orçamento fiscal, via DRU – permite que o governo vincule e quantifique determinadas receitas para os setores. Nada de compartilhamento. Consequências?

A seguridade social tem superávit, sempre, ano a ano, como mostram os estudos da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), inclusive o mais recente, que registra um resultado positivo de R$ 53.892 bilhões em 2014. Mas a previdência aparece como deficitária, a saúde fica subfinanciada e a assistência surfa nas águas do Bolsa-Família, que não é um benefício da seguridade e custa pouco.

Na dimensão da solidariedade (um conceito que, nas ciências sociais, expressa a noção de pertencimento à coletividade), mais complexa em termos de verificação empírica, um exemplo é o da previdência: se volta a ser um seguro, contributivo, como justificar a aposentadoria do segurado especial que não contribui? Também afeta a solidariedade indispensável à efetivação de um sistema universal, como o SUS, o fato de terem GEAP (plano privado de saúde e previdência, que se intitula – sic – Fundação de Seguridade Social) os servidores dos ministérios da saúde e da previdência social.

No que diz respeito à saúde, a Constituição foi clara: direito de todos e dever do Estado. Livre à iniciativa privada, sendo, porém, vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

Contudo, como dizem Ligia Bahia e Mario Scheffer em recente artigo postado no site Plataforma Política Social, “é como se o SUS fosse um monumento tombado”. Daqueles, se poderia acrescentar, cuja recuperação exigiria recursos indisponíveis. Nos países desenvolvidos que mantém sistemas universais, em média mais de 70% do gasto total com saúde vem de recursos públicos. No Brasil, apesar do desígnio constitucional, apenas cerca de 44% dos gastos são públicos (Bahia & Scheffer, 2014).

Os governos eleitos democraticamente desde 1989 vêm incentivando gastos privados com previdência, com educação, com planos de saúde e medicamentos, e cada vez mais destinando fundos públicos ao setor privado, o que, por exemplo, alimenta o processo de segmentação, do sistema se saúde. No gradiente da oferta diferenciada aos diferenciadíssimos estratos socioeconômicos da população, o SUS fica na rabeira. De sistema universal passa a subsistema para pobres. Para pobres. Não para trabalhadores e muito menos para cidadãos. Então, não funciona como direito desmercadorizado. Funciona como assistência pública.

Como subsistema – ou subsetor do sistema geral – , o SUS em geral compartilha com os demais (o subsetor privado e o suplementar) a mesma rede de prestadores e compradores de serviços, do que decorre uma combinação entre público e privado no mínimo “complexa”. Como mostram os trabalhos da Ligia Bahia (Bahia, 2013), de Jairnilson Paim (Paim, 2013) e de vários estudiosos do tema, profissionais (sobretudo médicos) transitam livremente entre o SUS e os planos privados, assim como os tão desiguais indivíduos que demandam atendimento podem utilizar os serviços de todos os subsetores, dependendo da facilidade de acesso, da garantia de cobertura ou da capacidade de pagamento.

Se o gasto público com saúde é baixo, o que significa perversidade redobrada por se tratar de um sistema universal num país com a dimensão do Brasil, a situação se agrava na medida em que novas estratégias de transferências de recursos públicos

para o setor privado ampliaram e sofisticaram a fórmula da dedução do imposto de renda implantada durante a ditatura militar. É a neoprivatização.

À renúncia fiscal no cálculo do imposto de renda da pessoa física e da pessoa jurídica, vieram se somar, no caso da saúde, empréstimos do BNDES, subsídios e isenções tributárias a planos privados, desonerações da indústria farmacêutica e dos hospitais filantrópicos, incentivos econômicos, enfim, que favorecem a expansão do setor privado sem contrapartida ao sistema universal. Recursos que transitam da esfera pública para a esfera privada como se entre as duas não houvesse fronteiras.

Nesse sentido, cabe menção especial aos chamados gastos tributários. A nomenclatura é da própria Receita Federal e se refere a desonerações equivalentes a gastos indiretos de natureza tributária. Desde 2009 e, especialmente desde 2011, as desonerações se alastraram por vários segmentos da economia. Essa é uma questão que merece debate à parte.

Estudos da ANFIP e de outros autores (Salvador, 2015; Barbosa, 2015, por exemplo) destacam, todavia, uma diferença importante entre as desonerações. Enquanto as desonerações de impostos (tipo IPI) cresceram 16.48% entre 2010 e 2014, os gastos tributários advindos das contribuições sociais (COFINS, PIS, CSLL e contribuições previdenciárias), que financiam a seguridade social, tiveram evolução de 72.76% em termos reais.

Na função saúde, os gastos tributários evoluíram de 20,6 bilhões em 2010 para 24,9 bilhões em 2014, o equivalente a 9,5% dos gastos tributários de 2014, segundo o estudo de Evilásio Salvador (Salvador, 2015). Parte importante das desonerações tributárias que dão origem aos gastos tributários na área da saúde está relacionada, como já mencionado, à dedução, no IRPF, de despesas com planos de saúde e serviços médicos e, no caso da Pessoa Jurídica, ou seja, das empresas, das deduções de valores relativos à assistência médica, odontológica e farmacêutica prestada a empregados. Segundo o mesmo autor, essas duas modalidades de renúncias na área da saúde totalizaram 14.4 bilhões de reais em 2014, o equivalente, aproximadamente, a 29% do total de recursos diretamente alocados pelo governo federal no orçamento da saúde em 2014.

O chamado gasto tributário afeta também o financiamento das políticas de saúde e educação nos municípios, uma vez que os impostos desonerados, como o IR e o IPI constituem a base da composição do Fundo de Participação dos Estados e do FPM. Como os municípios e os estados têm gastos obrigatórios com saúde e educação, as desonerações federais implicam restrições principalmente nos orçamentos municipais.

As atuais desonerações, com redução arrecadatória do PIS (Programa de Integração social), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), agravam, no campo da seguridade e em particular no da saúde, uma situação de redução de receitas que já vem desde os anos 90, quando foi instituído o chamado Fundo Social de Emergência. Hoje, esse estratagema, que ostenta nome mais adequado para seus fins – Desvinculação das Receitas da União (DRU) – retira 20% das receitas dessas contribuições para uso exclusivo do governo federal. Em 2014, a DRU “transferiu”, do orçamento da seguridade social para o orçamento fiscal, R$ 63,2 bilhões (ANFIP, 2015).

Todavia, como observa Rafael Barbosa, em artigo publicado no site Brasil Debate, sobre elas – as desonerações que atingem as contribuições sociais – o governo ainda pode exercer algum controle e, pelas regras de aplicação das mesmas, é exigida alguma compensação, mesmo que insuficiente (e elas estão na pauta de discussões do ajuste, hoje). Diversamente, a renúncia fiscal do Imposto de Renda, que atinge em cheio a saúde, dado que constitui direito dos beneficiários de planos e seguros privados, é aplicada sem qualquer compensação orçamentária, teto ou controle. A renúncia fiscal do imposto de renda, que não está na pauta do ajuste, é direta. Representa diretamente a utilização de recursos públicos da saúde de forma unilateral em benefício do setor privado. Retira capacidade financeira do SUS. Segundo o autor citado, a renúncia do IRPF por despesas médicas pulou de 3,7 bilhões de reais em 2009 para 11,8 bilhões em 2015, apresentando uma taxa de variação de 213%.

A trajetória das relações entre público e privado no Brasil, sobretudo (mas não somente) quando se elege a política de saúde como foco de análise, tornou remota (será que anacrônica?) a empáfia do Visconde de Cayru. As porteiras das grandes fazendas foram abertas à visitação pública, mas as porteiras do Estado – representado pelo fundo público – igualmente foram escancaradas ao trânsito privado.

Público, no Brasil, consiste numa categoria amorfa: uma noção de baixa intensidade. A esfera pública é entendida como terra de ninguém e portanto passível de ser capturada por cada um. O individualismo predatório, entretanto, não é distribuído igualitariamente por toda a população. O poder de impor interesses não é simétrico.

Perspectivas? Certamente é possível e plausível imaginar um cenário de mudanças. Mudanças no sentido de ampliação dos recursos destinados à saúde pública, mudanças que reduzam a segmentação da oferta de atendimento, mediante regulação mais rígida do privado e expansão do público, mudanças que revertam a fragmentação territorial, através de arranjos cooperativos de gestão regionalizada.

Mas daí a imaginar que o SUS venha a se constituir efetivamente em sistema único e universal, tipo inglês, há uma distância quase intransponível. Não por culpa dele, SUS. Seriam necessárias mudanças que alterassem de fato a estrutura de reprodução das desigualdades sociais; e o que se busca, hoje, são apenas melhorias cosméticas na pontuação do Gini ou do IDH. Sem uma profunda redução das desigualdades, ou, como se dizia antigamente e de modo mais apropriado, a meu ver, sem uma drástica reversão do quadro de heterogeneidade estrutural ainda vigente no país, permanece remoto o cenário capaz de sustentar um sistema universal para todos: o cenário em que os brasileiros substituam o uso constante da primeira pessoa do singular pelo uso, ao menos frequente, da primeira pessoa do plural.

Referências

ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil e Fundação ANFIP de Estudos de Seguridade Social) – Análise da Seguridade Social 2013, Brasilia, setembro de 2014.

ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil e Fundação ANFIP de Estudos de Seguridade Social)– Análise da Seguridade Social 2014, Brasilia, julho de 2015.

Bahia, Ligia – “O prazo de validade do SUS”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, out. 2013

Bahia, Ligia e Scheffer, Mario – “A saúde nos programas de governo dos candidatos a Presidente da República do Brasil nas eleições de 2014: notas preliminares para o debate”, Plataforma Política Social, 23 de julho de 2014.

Barbosa, Rafael da Silva – “Desoneração tributária, renúncia fiscal e saúde pública”. Brasil Debate (brasildebate.com.br), abril de 2015.

Buarque de Holanda, Sérgio – Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, 1936. Companhia das Letras, 1995 (26ª edição).

Carvalho, José Murilo – Cidadania no Brasil, o longo caminho. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (7ª edição).

Cordeiro, Hésio – As empresas médicas no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1984.

Ensping –Andersen, Gosta – “As três economias políticas do Welfare State”. Lua Nova n. 24, sete. 1991.

Hochman, Gilberto – “Os cardeais da previdência: gênese e consolidação de uma elite burocrática”. Dados. Rio de janeiro, vol. 35, n.3, 1992.

Oliveira, Francisco – “O surgimento do anti-valor: capital, força de trabalho e fundo público”. Novos Estudos, São Paulo, 1988.

Paim, Jairnilson – “A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde”. Cadernos de Saúde Pública, 29, out. 2013.

Polanyi, Karl – A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro, Campus, 1980.

Salvador, Evilásio – “As consequências das renúncias Tributárias no Financiamento da Seguridade Social no Brasil”. Plataforma Política Social, maio de 2015.

Weber, Max – “Os três tipo puros de dominação legítima”. Cohn, Gabriel (org), Max Weber: sociologia. São Paulo, Ática, 1979.

Werneck Vianna, Maria Lucia Teixeira – A Americanização (perversa) da Seguridade Social no Brasil. Rio de Janeiro, Revan, 1998).