Michela Calaça* e Celia Hissae Watanabe**
Por muitos anos, o semiárido brasileiro foi visto como o lugar do atraso e de vida precária. Nesse imaginário, foi denominada a “indústria da seca” por alguns teóricos, em referência à execução de grandes obras de engenharia, como barragens e açudes, que não só não resolviam os problemas do abastecimento de água para as comunidades rurais da região, como criavam novos problemas sociais.
Os atingidos por barragens saíam de suas terras para dar lugar a uma estrutura de armazenamento de água e muitas vezes não viam chegar essa água em sua nova moradia. As vergonhosas frentes de emergência submetiam famílias inteiras ao trabalho na construção de açudes (em terras de grandes proprietários locais), ou na limpeza de estradas, em troca de alimentação. As imagens veiculadas do semiárido eram de gado morto e pessoas famélicas, sendo fartamente exploradas nas campanhas eleitorais.
Em 2003, com a vitória de Lula (um sertanejo, que deixou o sertão para fugir da pobreza), as organizações da sociedade civil do semiárido apresentaram um projeto que buscava dialogar com o conhecimento dos povos do semiárido. Não buscava soluções mágicas nem gigantescas. Deu origem ao Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC) e trazia para o governo federal o acúmulo de conhecimento de um povo que, não obstantes os problemas da região, construía suas próprias saídas.
O governo Lula investiu nesta proposta, que proporcionou a mais de 556 mil famílias o acesso a “água de beber”, mesmo durante os meses de seca.
Destaque-se que essa experiência extraordinária tem um custo muito menor do que as grandes obras tradicionais e alcança um contingente maior de pessoas. Não se esgota nela mesma e consegue apreender novos conhecimentos sobre a região.
Partindo da experiência acumulada na construção do Programa 1 Milhão de Cisternas, a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) apresentou nova proposta de melhoria da vida dos sertanejos. As organizações da ASA sistematizaram as experiências dos tanques de pedra e das barragens subterrâneas para ampliar a capacidade de armazenamento da cisterna de água para consumo humano e para a produção de alimentos. Assim nasceu mais uma proposta concreta para a construção da convivência com o semiárido.
Os Governos de Lula e Dilma Rousseff investiram efetivamente na construção de outra imagem do semiárido. Atualmente, mais de 1,2 milhão de famílias são abastecidas com água para o consumo humano, mesmo no período da estiagem; e quase três mil escolas do semiárido contam com tecnologia de armazenando de água para fornecer às crianças. Foram construídas cerca de 170 mil unidades que dispõem de tecnologia de armazenamento de água para irrigação de alimentos no semiárido, beneficiando as famílias que ampliaram sua capacidade produtiva, a diversidade e a qualidade dos alimentos comercializados nas feiras das pequenas cidades.[[1]]
Outra política importante para o desenvolvimento do semiárido é a Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). Cerca de 200 mil famílias agricultoras e assentadas da reforma agrária no semiárido contam com serviços de ATER, além das chamadas referenciais específicas para mulheres rurais. Além disso, outra estratégia de ATER, continuada e com um recorte metodológico para o semiárido, foi construída a partir do Projeto Dom Helder Camara (PDHC). Com base em parcerias locais, a partir de 2003 o PDHC vem atuando no fomento à organização produtiva, participação e gestão social, ATER, crédito e comercialização. Estimula o dinamismo dos territórios e busca construir referenciais para as politicas públicas de convivência com o semiárido, na construção e disseminação de tecnologias sociais exitosas, a exemplo da premiada ação de reuso de água utilizada nas casas, para irrigação dos quintais produtivos.
O semiárido tem ainda uma linha específica de PRONAF, com grande acesso ao microcrédito orientado, importante como primeiro passo no acesso ao crédito produtivo. As famílias agricultoras têm também o Programa Garantia Safra, que visa a minimizar as perdas na produção devido às secas prolongadas. O que melhorou a vida no semiárido não foi uma ou outra ação isolada, nem o conjunto delas todas, mas a construção de políticas públicas a partir dos conhecimentos locais em consonância com a diversidade regional.
Outro elemento importante nesse debate é o poder das oligarquias. Durante muito tempo a falta de água possibilitou que políticos (muitos deles do PMDB, partido dos principais oligarcas do Nordeste) trocassem água por voto. Não é por outra razão que o programa de cisternas foi muitas vezes atacado pelos prefeitos, pois afrontava diretamente seus interesses locais. Mas a sociedade, com o apoio do governo federal, enfrentou esse impasse reafirmando a opção pela ampliação da cidadania.
Passados 14 anos, o semiárido brasileiro é exemplo mundial de eficiência de uma política pública que respeita o conhecimento dos povos. Avançamos do “combate à seca” para a convivência com o semiárido, em um movimento dialógico entre Estado e sociedade que mudou a vida das pessoas.
Mas essa realidade está em risco. O golpe, que usurpa o governo legitimamente eleito pelo povo, nos coloca em alerta, pois sem democracia não há diálogo do Estado com a sociedade. O voto popular do semiárido nas eleições presidenciais de 2014 precisa ser respeitado. Essa condição é fundamental para evitar retrocessos que certamente ocorrerão com a volta ilegítima das tradicionais oligarquias regionais ao poder.
[[1]] Fonte: http://www.mds.gov.br/webarquivos/sala_de_imprensa/dados/AguaParaTodos-UF-MAR2016-12042016.xls. Acesso em 13 de junho de 2016
* Mestre em Serviço Social
** Mestre em Gestão de Políticas Públicas