Marcelo Zero
Os governos do PT colocaram os pobres no orçamento. Na esteira do que a Constituição de 88 timidamente apontava, esses governos resolveram investir a sério nos cidadãos mais necessitados, nos excluídos históricos que não entravam nos orçamentos, nas universidades, nos hospitais, nos empregos com carteira, nos aeroportos e nos shoppings.
O resultado foi que 36 milhões de cidadãos deixaram a miséria e outros 40 milhões entraram na classe média, ou na nova classe trabalhadora. O resultado foi que o índice de Gini (indicador que mede a desigualdade) do Brasil caiu de 0,610 pra 0,490. O resultado foi o filho do pedreiro que virou doutor. O resultado foi a filha da Senzala que virou médica. O resultado foi mais democracia, mais soberania e maior dinamização da economia real.
O investimento nos pobres deu certo, muito certo. Para cada real investido no Bolsa Família, o PIB aumentou em R$ 1,75. O aumento real do salário mínimo em 72%, a expansão do crédito popular, a geração de 23 milhões de empregos formais, entre outros fatores, mais que duplicaram o tamanho do comércio varejista no país. Essa grande dinamização do mercado interno propiciada pelo combate à pobreza e às desigualdades, e combinada com um bem aproveitado ciclo internacional das commodities, transformou a 12ª economia do mundo, em 2002, frágil, vulnerável a choques externos e dependente do FMI, na 6ª economia mundial, em 2011, com reservas internacionais de US$ 380 bilhões e credora do FMI.
Contudo, o agravamento da crise internacional, o baixo crescimento do comércio mundial, a guerra cambial e o fim do superciclo das commodities impuseram, em anos recentes, sérios entraves ao desenvolvimento de muitos países emergentes. No Brasil, esses graves entraves externos se combinaram com uma crise política profunda, provocada intencionalmente por grupos políticos reacionários e antidemocráticos, que não reconheceram a vitória da presidenta Dilma Rousseff, para mergulhar o país na recessão. Como agravante, a Lava Jato, operação imprescindível para o combate à corrupção, paralisou importantes setores econômicos do Brasil, levando, segundo avaliações independentes, a uma queda do PIB situada entre 2% e 2, 5%.
Pergunta-se: qual a culpa da inclusão dos pobres no orçamento na deflagração da presente crise? Nenhuma. Saliente-se que, até o agravamento da crise internacional, em 2014, os governos do PT fizeram superávit primário, isto é, gastaram menos do que arrecadaram. Ademais, mantiveram a dívida líquida da União em torno de 35% do PIB, em contraste com os 60% do PIB, que tínhamos ao final dos governos neoliberais de FHC.
Mas o governo do golpe coloca a culpa na crise nos pobres. Com efeito, o governo golpista vê o investimento nos pobres como “gasto”. Gasto excessivo e inútil. O ministro Meirelles já afirmou que o Brasil andou “gastando muito” com Educação e Saúde. Parece piada, mas não é. É trágico. E o Usurpador, além de trair a presidenta eleita, agora diz que vai trair o povo e tomará “medidas impopulares”, assim que o Senado confirmar o golpe.
Não se trata de qualquer medida impopular. Não se trata de um cortezinho ali, um ajustezinho acolá. Trata-se de uma loucura austericida que não existe em nenhum país do mundo. Querem colocar na Constituição Federal um congelamento das despesas primárias por pelo menos 20 anos. Dessa forma, os gastos com juros ficariam liberados, mas os gastos com Educação, Saúde, Previdência, Assistência Social, Segurança Pública, Ciência e Tecnologia, etc. seriam congelados. Mesmo que o PIB aumente e a receita cresça, o Brasil ficaria impedido de investir na melhoria dos serviços públicos e nos programas sociais que são vitais aos mais pobres.
Se tivéssemos serviços públicos com a qualidade que alguns países da Europa Ocidental já têm, tal medida, ainda que insana, seria, até certo ponto, suportável. Obviamente, não temos. O Brasil ainda precisa investir muito em Educação, Saúde, Segurança Pública, Previdência, Ciência e Tecnologia etc. para ser um país mais competitivo e justo. Portanto, essa medida, que não existe em nenhum país do mundo, essa grande Jabuticaba do Mal, é absolutamente insuportável e insustentável.
Os desinvestimentos seriam assustadores. Se tal medida esquizofrênica estivesse em vigor há 10 anos, os rombos acumulados na Saúde seriam de R$ 180 bilhões. Na Educação, seriam de R$ 320 bilhões. Na Previdência, R$ 890 bilhões. Na Assistência Social, R$ 187 bilhões. Na Defesa, R$ 95 bilhões. Na Ciência e Tecnologia, R$ 22 bilhões. Na Segurança Pública, R$ 28 bilhões. No Transporte, R$ 82 bilhões. Na Cultura, R$ 7 bilhões. No Meio Ambiente, R$ 23 bilhões. E por aí vai.
Se tal medida estivesse em vigor há 10 anos, não haveria FIES, PROUNI, Ciência sem Fronteiras, Mais Médicos, Minha Casa, Minha Vida, Luz para Todos e tantos outros programas que fizeram a diferença na vida das brasileiras e dos brasileiros. Se tal medida estivesse em vigor há 10 anos, o Bolsa Família seria uma fração daquilo que é hoje. Se tal medida estivesse em vigor há 10 anos, o Brasil não teria saído do Mapa da Fome.
O irônico é que a Constituição de 88 continha limitação para taxas de juros, que não podiam exceder 12% ao ano, em termos reais. Os conservadores criticavam muito esse dispositivo, que nunca foi respeitado, e diziam que era um absurdo se inserir tal limite na Carta Magna. Agora, no entanto, consideram normal e desejável se colocar um limite constitucional fixo para investimentos sociais.
Considere-se que os gastos com juros são os únicos que não geram nada para a economia real e para o país. Em contraste, os “gastos” com Educação, Saúde, Previdência, etc. estimulam a economia real e contribuem decisivamente para tornar o Brasil um país mais justo e democrático.
É claro que numa conjuntura de crise e de incertezas, é normal que o país busque certo equilíbrio das contas públicas. Porém, tal busca não pode resultar em medidas insanas, que seriam rejeitadas até mesmo pelo FMI, o qual já fez seu mea culpa, no que tange ao apoio irracional às políticas contraproducentes de austeridade. O governo golpista, porém, ainda não chegou ao FMI moderno e a Piketty, ficou parado na reaganomics da década de 1980.
Além disso, tal equilíbrio poderia ser obtido não tirando os pobres do orçamento, mas colocando os ricos na arrecadação.
Os 71 mil cidadãos mais ricos do país pagam apenas 6% de sua renda em impostos. Em contraste, você, leitor de classe média, paga até 27,5% da sua renda ao fisco. E os mais pobres, mesmo isentos dos impostos diretos, gastam boa parte de sua renda em impostos indiretos. A bem da verdade, a carga tributária real para os que ganham até um salário mínimo é de 37%. Por conseguinte, nossa estrutura tributária é muito regressiva, socialmente injusta, e praticamente não incide sobre os ganhos do capital. Só incide realmente sobre os rendimentos do trabalho. Na OCDE, apenas a Estônia tem estrutura tributária semelhante.
Uma boa reforma tributária poderia, numa conjuntura de estagnação do comércio mundial e baixo crescimento da economia internacional, assegurar a receita necessária para a continuidade dos investimentos públicos que estimulariam a economia real e permitiriam ao Brasil sair mais rapidamente da crise. Ao mesmo tempo, se poderia fazer esforço maior para coibir a sonegação fiscal, responsável por um rombo anual de mais R$ 500 milhões, muito maior que o rombo ocasionado pela corrupção estrito senso, qual mal chega a R$ 70 bilhões.
O governo golpista, no entanto, não quer mexer no “andar de cima”. Não tem interesse em combater a sonegação e a evasão fiscal. Não quer mexer nas contas suíças. Não deseja incluir os ricos na arrecadação. Na realidade, quer manter e ampliar os gastos estéreis de mais de R$ 500 bilhões que temos anualmente pagando juros a rentistas e ao sistema financeiro, que acumula hoje os maiores lucros da sua história. Numa conjuntura em que muitos países praticam taxas de juros negativas, o Brasil do golpe insiste em praticar uma das maiores taxas de juros do mundo. Numa conjuntura recessiva, você, leitor de classe média, é obrigado a pagar 256% de juros do cheque especial e até 420% de juros em seu cartão de crédito. Isso não acaba apenas com as suas economias, isso acaba com a economia do país.
Mas, para esse governo golpista, a culpa da crise é do pobre coitado que sobrevive graças ao Bolsa Família, do estudante que faz universidade graças ao Prouni e ao Fies, do idoso que recebe um aposentadoria equiparada ao salário mínimo, do paciente que hoje pode se consultar com um médico de verdade graças ao Mais Médicos e ao SUS. Eles seriam os “gastadores”. Eles é que têm de ser punidos.
O governo Temer/Cunha não engana ninguém. Ele não veio simplesmente para tirar Dilma Rousseff do poder.
Ele veio para tirar os pobres do orçamento.