Artigo 4 | Girando a roda para trás (se a roda seguir girando)

José Maurício Domingues e Lígia Bahia

 

A chegada do PMDB ao governo, com o vice-presidente Michel Temer tomando o lugar de Dilma Rousseff, nos obriga a uma análise dos dois documentos que o partido lançou para dar substância a sua trajetória e plano de futuro, não obstante a resolução final do processo de impeachment estar pendente ainda no Senado.

Dois traços se destacam nos dois documentos a serem aqui analisados. O social liberalismo, mais claro agora que aquele que povoou os governos do PT dos quais o PMDB participou; e, menos claro, mas igualmente importante, uma visão derivada da escolha da “public choice”, que de resto se articula com frequência a visões neoliberais, das quais o social liberalismo é uma extensão e refinamento.

O primeiro documento, “Uma ponte para o futuro”, de outubro de 2015, é muito direto e objetivo. Identificando uma crise fiscal e do estado profunda, ele se propõe a corrigi-la alterando políticas que imperaram nos governos do PT e mesmo nos do PSBD na década de 1990. Ele é claramente neoliberal; suas propostas incluem superávit fiscal e câmbio flutuante, reforma trabalhista e reforma previdenciária, melhoria do ambiente de negócios e privatização, além da desvinculação dos mínimos constitucionais na saúde e na educação, assim como o fim do vínculo dos benefícios sociais pagos pelo Estado com o salário mínimo.

A argumentação que envolve esses objetivos de modo geral dificilmente pode ser contestada de forma direta, se for  tomado  por suas próprias palavras. Defende-se no documento a autoridade democrática do parlamento e do executivo para negociarem um orçamento sem amarras em gastos previamente definidos pela Constituição, cujo resultado por outro lado seria impositivo. Em princípio pouco se poderia objetar a esta linha de raciocínio. Na prática a situação é outra, como se vê desde que se introduziu a DRU nos governos do PSDB, a qual é usada de diminuir desde então os gastos com a seguridade social. Ainda mais em momento de crise fiscal como a atual, a desvinculação total (e não apenas de 20% ou 25% como tramita no Congresso no momento) certamente trará consequências nefastas a serviços públicos cujo funcionamento é na melhor das hipóteses sofrível.  O mesmo se pode dizer quanto aos benefícios atrelados ao salário mínimo: no mundo ideal isso seria razoável, no real servirá, na atual conjuntura, simplesmente para comprimir precisamente os valores hoje pagos. Nos dois casos isso significará uma transferência de renda ao setor rentista, que se beneficia ele sim dos altos juros pagos pela rolagem da dívida do estado, situação para a qual o documento pouco aponta, a não uma visão genérica de melhoria no longo prazo.

Essas são metas, porém, de difícil aceitação por um congresso cujos membros terão de enfrentar ainda em 2016 as urnas das eleições para prefeito em todo o país, além da mobilização social que se avoluma, em particular caso direitos e benefícios sejam tocados. Vale notar ainda que em nenhum momento dos textos sugerem aumento da progressividade da estrutura de impostos, na verdade um dos nós graves do financiamento do Estado brasileiro, ao lado das altas e injustificadas taxas de juro que ele e a sociedade pagam ao setor financeiro.

No documento mais recente, “A travessia social”, de maio de 2016, complemento explícito a “Uma ponta para o futuro”, esses temas são repetidos, mas as questões do social liberalismo e da “public choice” se fazem mais claras. No primeiro caso, trata-se de argumentar a favor do suporte aos 40% mais pobres e, dentre esses, daqueles 5% ainda mais submetidos a uma situação de destituição. Meta em si louvável, acompanhando-se porém de uma torção que penaliza exatamente os setores menos vulneráveis, ao passo que os ricos seguem sem ter de fazer qualquer esforço suplementar, sequer por via de maior taxação. Isso é em particular verdadeiro no que tange aos trabalhadores do setor formal da economia e em especial aos trabalhadores sindicalizados – sobre os quais recairá o peso da autonomização do negociado quanto à jornada de trabalho e salário em relação ao legislado – e a classe média. No que se refere àqueles, reverter-se-ia a elevação razoável dos salários alcançada durante os governos do PT, dada a competição natural dos trabalhadores entre si em momento em que muitos braços se oferecem para poucas vagas e as greves se tornam muito difíceis, como sói acontecer em momentos de recessão, extremamente profunda neste momento. Isso afeta obviamente as classes médias também, assim como o farão mudanças na legislação previdenciária, de seguro desemprego, etc. Mas estes dois setores são efetivamente o alvo daquilo que o documento denuncia como “grupos de interesse organizados”, que têm, não está dito mas encontra-se implícito, a capacidade de extrair rendas (rent-seeking, dir-se-ia na teoria original) do Estado, a eles demasiado “sensível” (p. 11).

Assim, projeta-se a continuidade dos programas sociais, como o Bolsa Família (mas com focalização maior ainda, ao que parece, pois o documento não é de todo explícito, naqueles 5% mais miseráveis) e de um Minha Casa, Minha Vida revisto, a ampliação de aspectos do saneamento básico e da formação profissional, com a concentração do esforço educacional até o nível médio (em parte privatizado, segundo a lógica do Fies), com promessas vagas de melhoria no que toca ao transporte público e à saúde, calcadas no tema da gestão. Obviamente, ainda que este não seja o foco do documento, nada se diz sobre a universidade e a ciência e tecnologia, que tampouco haviam merecido menção no documento anterior, o que obviamente implica em, na melhor das hipóteses, poucos recursos ou mesmo penalização, o que o desaparecimento do ministério historicamente reservado ao tema já evidencia.

Do ponto de vista da lógica política, a continuidade é bastante grande com o que vem das décadas anteriores. Os governos de Fernando Henrique Cardoso baseavam-se em apoiar os setores da grande burguesia financeira e os novos conglomerados de telecomunicações. O “populismo” cambial do Plano Real garantia uma aliança difusa com os pobres, na linha do que o presidente outrora sociólogo havia teorizado em seu livro sobre desenvolvimento e dependência com Enzo Faletto. A própria burguesia industrial ficava mal nesse bloco de poder, mas alijados mesmo estavam os setores mais formalizados da economia, em particular os sindicatos, do ponto de vista político, e a classe média. Pelo menos a reforma agrária avançou um pouco. Os governos do PT trouxeram o sindicalismo para dentro do pacto e, aproveitando a onda de preços altos das commodities, ampliaram a rede de proteção social para os mais pobres, enorme parcela da população brasileira. A classe média continuou alijada do acordo – erro político gravíssimo do PT, como hoje se demonstra – e os setores burgueses que seriam privilegiados se alteraram, com destaque agora para as empreiteiras e em parte a burguesia industrial, sem prejuízo do capital financeiro, ao menos até o governo Dilma. A reforma agrária se paralisou.

Hoje o PMDB tenta voltar ao sistema de FHC: ricos e muito pobres contemplados, setores formais e organizados, incluindo a classe média – supostamente rent-seekers -, alijados. Por outro lado, nem um cheiro de reforma agrária passa por seu programa, uma vez que a força do agronegócio e da mineração está impondo nova rodada de concentração fundiária e penetração inclusive, de maneira extremamente violenta, em territórios indígenas.

Além disso, ponto importante, a política externa seria reorientada. Tanto nos documentos em tela como no pronunciamento do anunciado ministro das relações exteriores, José Serra, voltar às relações preferenciais com os Estados Unidos – implicando sobretudo acordos bilaterais de liberalização do comércio – é prioridade absoluta, voltando mais uma vez a uma visão presente nos governos de FHC, mas ainda mais hostil ideologicamente ao que parece às relações com a América Latina.

Este é um governo que busca assim reinventar a roda, girando-a para trás, ao menos do ponto de visto do que uma agenda que se possa considerar progressista compreende. Mas o faz em situação de extrema gravidade econômica e política, tendo como pano de fundo, como recente gravação do ministro então nomeado do planejamento, Romero Jucá evidenciou, bem como aquelas feitas a Renan Calheiros e José Sarney, o esforço de parar a Operação Lava-Jato. É muito difícil que dê certo, a começar pela sua percebida ilegitimidade política, oriunda da forma irregular e golpista como se constituiu. Mas certamente fará enorme esforço para implantar medidas que lhe garantam o beneplácito dos de cima, com ataques aos direitos sociais dos trabalhadores e aos interesses da classe média, boa parte da qual simplesmente comprou gato por lebre, como não tardará a descobrir, se é que o governo de Michel Temer conseguirá seguir adiante, sem falar da tragicomédia de erros em que parece se esmerar, a despeito das grandes cadeias de comunicação de massa, em especial a TV Globo, tentarem gerar um clima de agenda positiva, com a aprovação da nova meta fiscal destacada, como se isso em si garantisse quorum para muito mais complexas e politicamente difíceis mudanças constitucionais. Resistências populares certamente emergirão com força, em ano eleitoral, com um governo que dificilmente se fortalecerá nos próximos meses.

Abaixo, entrementes, detalhamos alguns prontos de ambos os documentos que servem de base ao programa do que o PMDB pretende fazer no comando do Estado.

No que se refere à Previdência Social, anuncia-se a “grande reforma”, aquela que enfim resolveria a grande sangria causada pela recompensa “desmedida” aos aposentados.  Seus pilares explícitos seriam as alterações nos limites de idade e a desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo.  O pressuposto é que a Previdência é uma das responsáveis pelo déficit fiscal e é onerosa para empresários e ainda que o valor dos benefícios deva permanecer estável, desde que não haja inflação.   A acepção subjacente à proposta de correção dos “defeitos” da Previdência não é apenas a da desregulação do mercado de trabalho, trata-se sobretudo de atribuir à Previdência o caráter de política fiscal e não social. A extinção do Ministério da Previdência, o esquartejamento de suas atividades e atribuições, especialmente a passagem de funções da política previdenciária para o Ministério da Fazenda, evidenciam já na prática do governo Temer a primazia da racionalidade economicista sobre a do pilar principal da Seguridade Social da Constituição de 1988.  A alteração não é somente administrativa e sim de retrocesso histórico. Os riscos do trabalho assalariados deixariam de ser sociais, quando voltam a ser encarados como naturais, passíveis apenas de recompensas individualizadas.

Em relação à saúde ressalta-se a incoerência entre as intenções gerais de reduzir despesas, acabar com as vinculações constitucionais e com o orçamento impositivo e a apresentação do SUS como “uma das grandes políticas de inclusão social da história brasileira”.  Parcela considerável das propostas de Temer para a saúde foram plagiadas da plataforma eleitoral de Aécio Neves. Em ambos os programas consta: garantir o acesso de toda a população à estratégia de saúde da família, instituir o cartão de saúde, ampliar leitos de UTI, implantar redes de urgência e serviços para idosos e pacientes crônicos, aprimorar a gestão e rever formas atuais de pagamento, com a cobrança de desempenho dos prestadores hospitalares. A incompatibilidade entre a promessa de ampliação de coberturas e a restrição de recursos é respondida mais uma vez com uma bala de prata: as parcerias público-privadas.

Na prática, reitera-se o tripé:  subfinanciamento, privatização e organização ou reorganização de programas centralizados e voltados a suprir uma carência ou determinados eventos de uma parte de ciclos de vidas. Como sempre, nenhuma palavra sobre a real transferência de recursos públicos para o financiamento de planos privados de saúde. A equação resume-se a uma focalização de ações básicas para os pobres, deixando intocadas as mordidas no fundo público destinadas a conferir suporte para demanda e oferta privada de serviços de saúde.

As onze prioridades apresentadas pelo ministro interino da saúde são uma listagem de atividades e compromissos de alianças (especialmente com entidades médicas), desconectadas entre si. Nem com muita boa vontade se consegue divisar um sentido estratégico dessas ações com a melhoria das condições de vida e saúde. Misturar declarações para profissionais de saúde com medidas administrativas não resultou em programa de trabalho. Depreende-se ainda das declarações do Ministro interino que suas intenções são desregulamentar tudo que seja obstáculo à expansão dos nichos rentáveis de empresas privadas setoriais. Considerações sobre as desnecessárias exigências de coberturas para os planos privados e para a autorização de uso de medicamentos denotam má-vontade com o público e benevolência com o privado.

Certamente, não estamos diante de uma “sopa de letrinhas”, embora desarticulados e desatualizados, os discursos emitidos por um político tradicional buscam repercutir as ideias e proposições gerais do governo.  Esse sentido, o de ajuste do ajuste, possivelmente inspirou a recente também contraditória e anticonstitucional proposição de desvincular as receitas para saúde e educação, porém indexando-as à inflação.  Uma visão tão radicalmente reducionista da política social, deixando de lembrar sequer de sua importância como contrapartida à preservação de demandas em ciclos recessivos, exprime uma posição de força.  Resistir e lutar nessa conjuntura exigem  arriscar interpretações.