As Consequências das Renúncias Tributárias no Financiamento da Seguridade Social no Brasil

Evilasio Salvador | Artigo publicado na edição 19 da revista Política Social e Desenvolvimento
Economista. Mestre e Doutor em Política Social. Professor da Universidade de Brasília (UnB) no Departamento de Serviço Social e no Programa de Pós-Graduação em Política Social.

Introdução

Uma das questões pouco estudadas sobre o sistema tributário brasileiro refere-se às renúncias tributárias, que são relevantes para a compreensão do custeio do fundo público, isto é, o chamado financiamento indireto da política pública. Para tanto, é necessária a análise das renúncias tributárias, permitindo assim identificar a transferência indireta e extraorçamentária de recursos para o setor privado da economia. Além disso, trata-se de um instrumento de “socorro” às empresas em momentos de crise do capitalismo.

Por detrás das chamadas desonerações tributárias e dos incentivos fiscais encontra-se um conjunto de medidas legais de financiamento público não orçamentário de políticas públicas (econômicas e sociais), constituindo-se em renúncias tributárias do fundo público, geralmente em benefício das empresas.

Trata-se dos chamados gastos tributários, que são desonerações equivalentes a gastos indiretos de natureza tributária. Portanto, são renúncias que são consideradas exceções à regra do marco legal tributário, mas presentes no código tributário com o objetivo de aliviar a carga tributária de uma classe específica de contribuintes, de um setor econômico ou de uma região.

Este artigo faz uma breve análise dos gastos tributários e das suas implicações sobre as políticas sociais, com ênfase sobre as políticas de seguridade social (previdência, saúde e assistência social) e de educação no período de 2011 a 2014, correspondente ao primeiro mandato do governo da presidenta Dilma Rousseff.

Implicações das desonerações tributárias no financiamento da seguridade social e da educação no orçamento federal

No Brasil, do ponto de vista legal, o “Demonstrativo de Gastos Tributários”, além de atender à obrigação constitucional, é um requisito exigido também pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (Lei Complementar nº 101/2000). A LRF determina que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) será acompanhado de documento a que se refere o § 6º do art. 165 da CF, bem como das medidas de compensação de renúncias de receita e do aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado.

Apesar de haver relativo consenso na literatura internacional sobre os objetivos dos gastos tributários, o mesmo não pode ser dito sobre os caminhos metodológicos adotados para apuração de tais gastos (BEGHIN; CHAVES; RIBEIRO, 2010). Para fins deste texto, adota-se o conceito de gasto tributário usado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB).

De acordo com a RFB (2013), são necessários dois passos para identificar os gastos tributários: a) determinar todas as desonerações tributárias, tendo-se como base um sistema tributário de referência; e b) avaliar, utilizando-se um conjunto de critérios definidos, quais desonerações são gastos indiretos e passíveis de ser substituídas por gastos diretos, vinculados a programas de governo.

Com isso, o conceito de gastos tributários para a RFB (2013, p. 10) diz respeito aos “gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema tributário, visando a atender objetivos econômicos e sociais”. Esses gastos “são explicitados na norma que referencia o tributo, constituindo-se uma exceção ao sistema tributário de referência, reduzindo a arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte”.

Além disso, segundo a RFB (2013, p. 10), os gastos tributários “têm caráter compensatório, quando o governo não atende adequadamente a população dos serviços de sua responsabilidade; ou, têm caráter incentivador, quando o governo tem a intenção de desenvolver determinado setor ou região”.

Além do relatório “Demonstrativo dos Gastos Tributários”, que acompanha anualmente o Ploa, a RFB vem editando o documento intitulado “Demonstrativo dos Gastos Tributários: Estimativas das Bases Efetivas”.

Este novo documento objetiva responder, ao menos em parte, a uma das críticas que feitas aos relatórios de gastos tributários que acompanham o Ploa, que se tratava de uma estimativa das renúncias, não existindo acompanhamento posterior, da efetivação e nem dos efeitos econômicos e sociais esperados (BEGHIN; CHAVES; RIBEIRO, 2010). Com isso, para atender tanto à demanda dos órgãos de controle quanto às organizações representativas da sociedade por informações sobre a realização dos gastos tributários, a Receita Federal já publicou quatro relatórios com os gastos tributários efetivos ocorridos no período de 2006 a 2012.2

A diferença metodológica entre os dois documentos diz respeito ao fato de que o “Demonstrativo dos Gastos Tributários” que acompanha o Ploa apresenta as projeções desses gastos com informações disponíveis até o mês de agosto3 do ano anterior do orçamento que será votado pelo Congresso Nacional.

Já no relatório divulgado a partir das bases efetivas, os gastos tributários são atualizados, acompanhando as mudanças das variáveis econômicas em que foram baseadas as estimativas e projeções do relatório que acompanhou o Ploa, além de refletir a disponibilidade de novas fontes de informações e a necessidade de aprimoramentos na metodologia empregada nas estimativas e projeções (RFB, 2013).4

Em 2009, os gastos tributários efetivos (RFB, 2013) foram de R$ 160,4 bilhões em valores atualizados pelo IGP-DI para 2014. A partir de 2009, o governo federal tomou um conjunto de medidas para combater os efeitos da crise econômica mundial no Brasil. No cerne dessas medidas, encontram-se as renúncias tributárias para diversos setores econômicos.

A Tabela 1 apresenta os gastos tributários federais no período de 2010 a 2014, em valores deflacionados pelo Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), com base nos relatórios da RFB, sendo que os valores correspondentes aos anos de 2013 e 2014 referem-se à estimativa dessas despesas. Observa-se que os gastos tributários vêm subindo de forma considerável nos últimos anos. Cresceram cerca de duas vezes mais do que o orçamento da União entre os anos de 2011 e 2014.

Assim, em 2010, no último ano do governo do presidente Lula, os gastos tributários alcançaram R$ 184,4 bilhões, isto é, 3,6% do PIB. A partir do governo da presidenta Dilma, os gastos tributários evoluem de forma expressiva, saltando de 3,68% do PIB (2011) para 4,76% do PIB (2014), comprometendo 23,06% da arrecadação tributária federal (veja a Tabela 1).

Entre as medidas destacadas pela Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda (SPE, 2010) estão as desonerações no PAC. Essas ações foram complementadas por medidas temporárias relativas à política fiscal, por meio de uma série de desonerações tributárias temporárias para estimular as vendas e o consumo, além de outras renúncias históricas, que devem alcançar 4,76% do PIB em 2014. As iniciativas mais recentes começaram com a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para o setor automotivo ao final de 2008 e, ao longo de 2009, alcançaram outros setores econômicos: bens de consumo duráveis, material de construção, bens de capital, motocicletas, móveis e alguns itens alimentícios.

Em 2010, mais medidas de socorro ao capital privado no País foram tomadas, envolvendo a prorrogação da redução do IPI para a indústria automobilística e a redução do IPI dos eletrodomésticos da chamada linha branca (geladeiras, fogões, máquinas de lavar). Nessa mesma direção, o governo brasileiro lançou, em agosto de 2011, o plano “Brasil Maior”, sob o argumento de aumentar a competitividade da indústria nacional, a partir do incentivo à inovação tecnológica e à agregação de valor.

A chave-mestra do plano foi constituída pelas desonerações tributárias – como a redução de IPI sobre bens de investimento, redução gradual do prazo para devolução dos créditos do PIS-Pasep/Cofins sobre bens de capital e a desoneração da contribuição previdenciária incidente sobre a folha de pagamento para alguns segmentos econômicos (confecção, calçados, móveis e softwares) –, que serão compensadas no faturamento das empresas desses segmentos. Diante do agravamento da crise internacional, essas medidas foram ampliadas em 2012.5

Nos anos seguintes, o governo federal continuou ampliando a desoneração da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento para outros segmentos e prorrogou a redução de IPI sobre automóveis, dentre outras medidas.

Os dados da Tabela 1 estão organizados por tributos (impostos e contribuições sociais) e revelam que, nos últimos cinco anos, os gastos tributários cresceram 42,67% acima da inflação medida pelo IGP-DI. Chama a atenção que, enquanto as desonerações de impostos cresceram 16,48%, os gastos tributários advindos das contribuições sociais (Cofins,6 PIS,7 CSLL8 e contribuições previdenciárias9) que financiam a seguridade social tiveram uma evolução de 72,76% em termos reais.

Esta forma de apresentação dos dados é importante para se compreender o desenho institucional do financiamento das políticas sociais no Brasil definido pela CF de 1988, que passa pela existência de um orçamento específico para as políticas sociais que integram o sistema de seguridade social (previdência social, assistência social, saúde e seguro-desemprego) e por gastos mínimos obrigatórios por todos os entes da Federação em educação e saúde, sendo essencial, para tanto, a vinculação de recursos orçamentários para a realização dos direitos sociais.

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Os gastos tributários incidentes sobre as contribuições sociais da seguridade social predominaram no conjunto de medidas adotadas pelo governo federal. Assim, estima-se que o acréscimo nos gastos tributários sobre as contribuições sociais da seguridade social, durante o primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff (de 2011 a 2014), seja R$ 60,6 bilhões a mais do que o ocorrido em 2010, o que equivale ao orçamento federal anual da Política de Assistência Social.

Os dados também revelam o acréscimo de R$ 16,7 bilhões nos gastos tributários dos impostos (Imposto sobre a Renda, IPI, IOF e ITR) no período de 2011 a 2014, o que reduz a base do cálculo mínimo dos recursos a serem aplicados na educação.

Destaca-se que os gastos tributários advindos da desoneração da folha de pagamento alcançaram o montante de R$ 24 bilhões em 2014, representando mais da metade das desonerações alocadas na função trabalho e 9,64% dos gastos tributários previstos no Ploa 2014 (RFB, 2013). Essas desonerações da folha de pagamento afetam diretamente o Orçamento da Seguridade Social (OSS), pois a Contribuição de Empregados e Empregadores, que integra a contribuição sobre a folha de pagamento, representa mais da metade do OSS (SALVADOR, 2010).

O governo federal incluiu no âmbito do plano “Brasil Maior”, lançado em agosto de 2011, a desoneração da folha de pagamento para alguns segmentos econômicos (confecção, calçados, móveis e softwares), que será compensada no faturamento desses segmentos. Diante do agravamento da crise econômica internacional, essas medidas foram ampliadas em 2012.

Em abril de 2012, ampliaram-se as desonerações tributárias por meio da substituição da contribuição previdenciária patronal sobre a folha de pagamento10 (20% do INSS) de 15 setores da indústria por uma alíquota entre 1,5% e 2,5% sobre o faturamento bruto das empresas. De acordo com o Ministério da Fazenda, somente esta renúncia é estimada em R$ 7,2 bilhões11. Isso ocorre porque a mudança de base da contribuição da folha de pagamento para uma alíquota sobre a receita bruta das empresas foi fixada em um patamar inferior à cobrada sobre a folha de pagamento. A desoneração da folha de pagamento foi sendo ampliada, alcançando, em janeiro de 2014, 56 segmentos da economia (dos setores de indústria, serviços, transportes, construção e comércio).12

As desonerações desses segmentos da economia estão consubstanciadas em quatro leis (12.546/2011, 12.715/2012, 12.794/2013 e 12.844/2013) originárias de medidas provisórias, sendo ainda que as medidas provisórias 601/2012 e 612/2013 tiveram seus prazos de vigência encerrados em 1º de agosto de 2014, sem a aprovação do Congresso Nacional. Essas medidas perderam a validade e, com isso, pelo menos 14 segmentos da economia não foram beneficiados pela desoneração da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento.

Nos termos das referidas leis, a contribuição patronal dos setores beneficiados passa a incidir sobre o faturamento, com dedução quando for o caso da parcela exportada. As empresas dos setores beneficiados passaram a contribuir sobre o seu faturamento – 1% da indústria, 1% do comércio, 2% dos serviços, 2% dos transportes – como contribuição patronal para a previdência social. Essa desoneração implica um volume significativo de recursos renunciados do OSS.

Essa renúncia deveria obrigar o governo a promover uma compensação no OSS equivalente à renúncia tributária realizada com recursos do Orçamento Fiscal, evitando assim prejuízos financeiros para o financiamento da seguridade social. Contudo, o governo não vem compensando adequadamente o caixa da previdência social com a perda das receitas decorrentes da desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento.

No primeiro ano de vigor das novas regras, houve um repasse da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) de R$ 1,79 bilhão referente à compensação da desoneração da folha de pagamento ocorrida em 2012, conforme o Ministério da Previdência Social (MPAS, 2014). Isso significa uma perda de recursos, pelos dados oficiais, de R$ 1,9 bilhão somente em 2012. Em 2013, o repasse de recursos ao caixa previdenciário pela STN começou a ser realizado somente em abril, assinalado como “arrecadação – Darfs/Compensação Lei nº 12.546” no fluxo de caixa da previdência social. O Informe da Previdência Social de janeiro de 2014 (págs. 28 e 29) registra um repasse de R$ 9 bilhões em 2013 nessa rubrica. Chama a atenção que o fluxo de caixa não faz menção à compensação das perdas decorrentes da Lei nº 12.715/2012 e que o valor repassado para todo o ano de 2013 fica abaixo da estimativa da renúncia feita pela RFB para o período de janeiro a novembro de 2013 (último dado disponível),13 de R$ 9,1 bilhões, faltando estimar as perdas de dezembro e do 13o salário.

Ressalva-se, ainda, que há dúvidas sobre a metodologia de apuração da renúncia tributária. Um estudo detalhado (ZANGHELINI et al, 2013) sobre a desoneração da folha de pagamento de cada segmento econômico, publicado pela Anfip e pela Fundação Anfip, estima que – somente para ano de 2012 – a renúncia corresponderia, na realidade, a R$ 7,06 bilhões, isto é, R$ 3,96 bilhões a mais do que o previsto pela RFB e quase quatro vezes a mais que o valor repassado pela STN à Previdência Social. O estudo dessas entidades também destaca outros problemas decorrentes das novas legislações que desoneraram a folha de pagamento. Um deles diz respeito à quantificação dessas renúncias na velocidade que vem ocorrendo. Além disso, os cálculos são herméticos, não havendo, portanto, transparência necessária no processo (ZANGHELINI et al, 2013).

Convém destacar que a previdência social vem perdendo receitas não somente com a desoneração da folha de salários, conforme já analisado anteriormente, mas também com outras renúncias tributárias concedidas para alguns setores da economia, como as entidades filantrópicas (R$ 9,9 bilhões), a exportação da produção rural (R$ 4,6 bilhões) e o Simples Nacional – Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (R$ 17,6 bilhões) (RFB, 2013; ZANGHELINI et al, 2013). Esse conjunto de renúncias traz implicações importantes para o financiamento do RGPS, aumentando a necessidade de cobertura do sistema por parte do Tesouro Nacional.

Em particular, chama a atenção a imunidade concedida ao agronegócio exportador, o que aumenta a demanda de cobertura financeira do subsistema rural. Em 2005, essa renúncia foi da ordem de R$ 2,1 bilhões, sendo que, para 2014, o valor apresenta um crescimento de 119%. Tal situação implica a necessidade de maior solidariedade entre os trabalhadores urbanos e rurais (ANFIP, 2013).14

Os gastos tributários na função saúde evoluíram de R$ 20,6 bilhões, em 2010, para R$ 24,9 bilhões, em 2014 e representam 9,50% do montante dos gastos tributários de 2014 (SALVADOR, 2015). Uma parte importante das desonerações tributárias que dão origem aos gastos tributários na área de saúde está relacionada à dedução, no imposto de renda das pessoas físicas, de despesas com plano de saúde e serviços médicos e, no caso das pessoas jurídicas, de valores relativos à assistência médica, odontológica e farmacêutica prestada a empregados. Estas duas modalidades de renúncias na área de saúde totalizaram R$ 14,4 bilhões em 2014. Os gastos tributários na função saúde equivalem a, aproximadamente, 29% do total de recursos diretamente alocados pelo governo federal no orçamento da saúde em 2014.15

Na função assistência social, o crescimento do gasto tributário, no período de 2010 a 2014, foi de 20% acima da inflação, conforme Salvador (2015), representando, em 2014, 7,49% do montante dos gastos tributários federais. Nesta função social estão alocados os benefícios tributários concedidos às entidades filantrópicas e às entidades sem fins lucrativos (associação civil e filantrópica), que alcançaram R$ 13,2 bilhões, representando 5,3% do montante dos gastos tributários federais em 2014 (RFB, 2014). Apesar da criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que tem como uma das suas diretrizes centrais a primazia do Estado na execução da política de assistência social (COUTO, 2009), ainda são significativas as desonerações que originam os gastos tributários na função assistência social. Os gastos tributários na assistência social totalizaram R$ 19,7 bilhões, representando, aproximadamente, 30% do orçamento desta política social (SALVADOR, 2015).

Considerações finais

As medidas de desonerações tributárias adotadas para combater a crise afetaram ainda mais o financiamento do orçamento da seguridade social, enfraquecendo com isso as fontes tributárias das políticas de previdência social, saúde e assistência social, além das implicações para os estados e municípios no tocante ao financiamento das políticas de educação e saúde. As justificativas são de cunho econômico, mas deve-se assegurar que o OSS não perca recursos por conta das desonerações tributárias. Destaca-se, sobretudo, o expressivo acréscimo nos gastos tributários incidentes sobre as contribuições sociais, em particular aquelas incidentes na contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento.

O chamado gasto tributário já compromete quase 1/5 das receitas públicas federais (ou seja, o equivalente a 4,76% do PIB) e afeta o financiamento das políticas de saúde e educação nos municípios brasileiros, devido ao fato de que os impostos desonerados (como o IR e o IPI) são a base da composição do FPE e do FPM. Como os municípios e os estados têm gastos obrigatórios com saúde e educação, as desonerações federais implicam restrições principalmente nos orçamentos municipais para os gastos sociais. Torna-se necessário que a incidência política das entidades da sociedade civil brasileira pressione o governo federal para assegurar a reposição de recursos por meio do orçamento fiscal, de forma que compensem as perdas no financiamento tanto da seguridade social e da educação em nível federal quanto dos recursos que compõem o FPE e o FPM.

A expansão dos gastos tributários e a acentuação da regressividade dos tributos possibilitam redirecionar em surdina o fundo público para o capital devido à própria opacidade de suas informações e à orientação do núcleo duro estatal de subtrair a economia do debate público. Neste caso, o controle social é negado tanto no seu sentido de acompanhamento quanto no de partilha de poder decisório (TEIXEIRA, 2012).

Convém ressaltar que a RFB, órgão responsável pela realização dos estudos dos gastos tributários que acompanham as peças orçamentárias no Brasil, é um dos mais blindados ao controle social. Não existe nenhum instrumento público ou instância oficial que garanta a relação da sociedade civil organizada com a Receita Federal. O órgão, por exemplo, não apresenta estudos que demonstrem a eficácia e a efetividade na concessão dos gastos tributários.

Destaca-se uma ausência de mérito conceitual das classificações feitas pela Receita Federal para os gastos tributários. Mas, seguramente, um aprofundamento de pesquisa suscitaria muitas questões. Uma certamente seria relacionada à ausência de gastos tributários alocados na função previdência social, em que pesem as inúmeras renúncias que são concedidas sobre os tributos exclusivos dessa política social. Outra ausência marcante nos relatórios da RFB é a não consideração, como gasto tributário, da isenção do IR sobre os lucros e dividendos distribuídos, assim como a não tributação das remessas dessas rendas para o exterior, que permanecem isentas da cobrança de IR desde 1996. Segundo dados de Introíni (2015)16 recentemente publicados, no ano de 2012 foram declarados R$ 207 bilhões de lucros e dividendos recebidos pelas pessoas físicas. O total de lucros e dividendos distribuídos – incluídas as pessoas físicas e jurídicas, exceto as optantes pelo Simples – foi de R$ 436 bilhões no mesmo ano. Se fosse aplicada uma alíquota de 25% sobre esse montante, o resultado seria uma arrecadação adicional superior a R$ 100 bilhões de imposto de renda. No que se refere à dedução dos “juros sobre capital próprio”, que nada mais são do que um eufemismo para lucros, um levantamento realizado em 87 empresas com grande volume de ações negociadas mostrou que somente elas pretendiam economizar pouco mais de R$ 25 bilhões pelo uso desse instrumento em 2014. O cálculo aproximado da renúncia fiscal do Tesouro foi de R$ 15 bilhões. A pergunta que se faz é a seguinte: por que tais recursos não são considerados como gastos tributários?

A atual conjuntura econômica e política do Brasil impõe inúmeros desafios à sociedade civil. O segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff (iniciado em 1º/01/2015) começou com o anúncio de um pesado ajuste fiscal, que impõe corte ou redução dos direitos sociais: seguro-desemprego, pensões, abono salarial, dentre outros, além do aumento das alíquotas de alguns impostos. Tal ajuste proposto é também resultado das escolhas econômicas feitas no mandato anterior da presidenta, que acarretaram perda de arrecadação de recursos sem os resultados esperados no crescimento econômico, em que pese o expressivo aumento dos gastos tributários, o que causou perdas de recursos para as políticas sociais.

Referências

ANFIP. Análise da Seguridade Social, 2012. Brasília: ANFIP; Fundação ANFIP, 2013.
BEGHIN, Nathalie; CHAVES, José; RIBEIRO, José. Gastos Tributários Sociais de Âmbito Federal: Uma Proposta de Dimensionamento. In: CASTRO, Jorge; SANTOS, Cláudio; RIBEIRO, José (orgs.). Tributação e Equidade no Brasil. Brasília: IPEA 2010, p. 375-408.
COUTO, Berenice. O Sistema Único de Assistência Social: Uma Nova Forma de Gestão da Assistência Social. In: MDS. Concepção e Gestão da Proteção Social não Contributiva no Brasil. Brasília: MDS, 2009, p. 205-218.
INTROÍNI, Paulo Gil. Tributação dos Ricos: O Debate Interditado. Teoria em Debate (on-line), 04.02.2015. Último acesso em: 08.02.2015. Link: <http://www.teoriaedebate.org.br/materias/economia/tributacao-dos-ricos-o-debate-interditado?page=0,0>.
MPAS. Informe da Previdência Social, volume 25, no 1, janeiro de 2014, p. 21.
SALVADOR, Evilasio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
SALVADOR, Evilasio. Renúncias Tributárias: os Impactos no Financiamento das Políticas Sociais no Brasil. Brasília: INESC, 2015.
RFB. Demonstrativo dos Gastos Tributários – PLOA 2014. Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2013.
RFB. Demonstrativo dos Gastos Tributários: Estimativas de Bases Efetivas – 2011. Série 2009 a 2013. Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2013.
TEIXEIRA, Sandra Oliveira. Participação e Controle Democrático sobre o Orçamento Público Federal em um Contexto de Crise do Capital. Tese (doutorado em Serviço Social) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2012.
ZANGHELINI, Airton et al. Desoneração da Folha de Pagamento: Oportunidade ou Ameaça? Brasília: ANFIP e Fundação ANFIP, 2013.

Notas

1 Este artigo é uma versão simplificada da publicação do INESC “Renúncias Tributárias: os Impactos no Financiamento das Políticas Sociais no Brasil” (SALVADOR, 2015).
2 Os relatórios estão disponíveis em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/Arrecadacao/RenunciaFiscal/DGTA/default.htm>. O relatório utilizado neste estudo é o mais atual: RFB. Demonstrativo dos Gastos Tributários: Estimativas das Bases Efetivas – 2011. Série 2009 a 2013. Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2013.
3 O projeto de lei que trata do orçamento anual deve ser enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional até o dia 31 de agosto.
4 RFB. Demonstrativo dos Gastos Tributários: Estimativas das Bases Efetivas – 2011. Série 2009 a 2013. Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2013.
5 Todas as medidas tomadas no governo brasileiro a partir de 2010 estão disponíveis em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/Arrecadacao/RenunciaFiscal/default.htm>.
6 COFINS: Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social.
7 PIS: Contribuição Social para o Programa de Integração Social.
8 CSLL: Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
9 O Relatório com o “Demonstrativo dos Gastos Tributários: Estimativas de Bases Efetivas – 2011. Série 2009 a 2013” é o primeiro publicado pela Receita Federal que inclui, juntamente com os gastos tributários, as renúncias previdenciárias.
10 Um detalhamento sobre a desoneração da folha de pagamento e os impactos para o financiamento da previdência social pode ser visto em ZANGHELINI, Airton et al. Desoneração da folha de pagamento: oportunidade ou ameaça? Brasília: ANFIP e Fundação ANFIP, 2013.
11 Acesse o link: <http://www.receita.fazenda.gov.br/automaticoSRFSinot/2012/04/05/2012_04_05_11_49_16_693391637.html>.
12 A lista dos segmentos beneficiados pela desoneração da folha de pagamento pode ser vista em: <http://www1.fazenda.gov.br/spe/publicacoes/conjuntura/bancodeslides/por_legislacao.pdf>.
13 Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/Arrecadacao/RenunciaFiscal/default.htm>.
14 ANFIP. Análise da Seguridade Social, 2012. Brasília: ANFIP; Fundação ANFIP, 2013.
15 Os dados do sistema Siga Brasil informam que o orçamento federal pago na área de saúde, em 2014, foi de R$ 86,3 bilhões.
16 INTROÍNI, Paulo Gil. Tributação dos Ricos: O Debate Interditado. Teoria em Debate (on-line), 04.02.2015. Último acesso em: 08.02.2015. Link: <http://www.teoriaedebate.org.br/materias/economia/tributacao-dos-ricos-o-debate-interditado?page=0,0>.