Eduardo Fagnani*
O objetivo de construir uma sociedade justa requer, dentre tantos desafios, a preservação da inclusão social ocorrida nos últimos anos e a defesa dos direitos de cidadania assegurados pela Constituição Federal de 1988, marco do processo civilizatório nacional.
Não obstante, ambos os desafios estão ameaçados. A estagnação da economia corrói os avanços sociais recentes, enfraquece o governo democraticamente eleito e amplifica a crise política e o eco das ações antidemocráticas.
Por outro lado, a recessão é funcional para o aprofundamento do projeto liberal, pois não deixa outra saída a não ser a severa alteração da estrutura dos gastos governamentais exigida há décadas pelo mercado.
Nos últimos meses ganhou robustez a visão de que a estabilização da dívida pública requereria a mudança no “contrato social da redemocratização”. Essa visão adquiriu novos contornos com a explicitação do documento “Uma Ponte para o Futuro”, divulgado pela Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB.
Dado este cenário, a Revista Política Social e Desenvolvimento dedica-se a enfrentar a seguinte questão: “As demandas sociais da democracia não cabem no orçamento?”.
Na Revista 27, iniciamos este debate. Nesta Revista 28 damos sequência, primeiramente com o artigo de Luciana Jaccoud “A desigualdade e a política social no debate sobre reforma fiscal”. A autora critica o diagnóstico liberal de que a crise econômica derivaria do desajuste fiscal provocado pelos gastos com direitos sociais acolhidos pela Constituição Federal. Esta perspectiva reafirma a responsabilidade do Estado brasileiro no enfrentamento da pobreza, negando, contudo, a continuidade e estruturação do sistema de proteção social tal como vem sendo desenvolvido desde a Constituição democrática de 1988. “O argumento é tão simples como atraente, e tão limitado como insuficiente”, sentencia. Para a autora, a larga e longa experiência internacional demonstra que as políticas sociais operam frente a casos e situações sociais específicas, como também são parte orgânica de uma trajetória de desenvolvimento – ou seja, crescimento socialmente não predatório. Contudo, nesta “nova-velha” agenda liberal brasileira, os temas da desigualdade e da equidade não são contemplados. “Uma agenda de reformas se impõe”. Porém, não é a agenda do “constrangimento das generosas possibilidades que nos delegou a proteção social desenhada pela Constituição de 1988”, afirma Jaccoud.
Em “A Previdência social não tem déficit”, Eduardo Fagnani aponta que, em flagrante confronto com a Constituição da República, desde os anos de 1990, setores da sociedade esforçam-se para “comprovar” a inviabilidade financeira da Previdência, para justificar nova etapa de retrocesso nesses direitos. A recorrente recusa em não reconhecer o que reza a Constituição Federal conduz ao falso argumento de que haveria “déficit” sempre que a contribuição dos empregados e empregadores para a previdência social seja insuficiente para bancar o conjunto dos benefícios rurais e urbanos. A parcela que cabe ao estado no sistema tripartite não é considerada como fonte de receita, sendo contabilizada como o suposto “déficit” ou “rombo”.
Além disso não se considera que a Previdência Social é parte da Seguridade Social (artigo 194); e, que, para financiar a Seguridade Social, os constituintes de 1988 criaram o Orçamento da Seguridade Social (artigo 195) um conjunto de fontes próprias, exclusivas e dotadas de uma pluralidade de incidência. Eles estabeleceram no Brasil o mecanismo de financiamento tripartite clássico (trabalhador, empresa e governo, através de impostos) dos regimes de Welfare State. Todavia, desde 1989, o Ministério da Previdência Social, ao arrepio da Carta, não contabiliza a contribuição do governo para o financiamento da Previdência Social. Daí decorre o suposto “rombo”. Ainda segundo o autor, estudos revelam que o Orçamento da Seguridade Social sempre foi superavitário. “Portanto, à luz da Constituição da República, não há como se falar em déficit na Previdência Social. Na verdade, sobram recursos que são utilizados em finalidades não previstas na lei”, afirma.
Em “Seguridade Social, financiamento e crise do Sistema Único de Saúde (SUS)”, Jairnilson Silva Paim, aponta que a instabilidade e a insuficiência do financiamento impostas ao SUS pelos diversos governos do pós 1988 inviabilizaram, até o presente, a construção de um sistema universal de saúde a partir da concepção de Seguridade Social expressa na Constituição da República. A estrutura tributária iníqua, o exorbitante pagamento de juros da dívida pública, as modificações da legislação desde a Emenda Constitucional 29 de 2001 e as desonerações fiscais são determinantes fundamentais do subfinanciamento do SUS. O agravamento da crise econômica e as dificuldades políticas desde o processo eleitoral de 2014 reforçam um cenário ainda mais pessimista, onde prevalecem os interesses dos empresários da saúde. Segundo o autor, “está em curso uma subversão do projeto constitucional para a saúde”.
Finalmente, Tiago Oliveira e Alexandre Ferraz , em “Programa Seguro-desemprego: qual a reforma necessária?“, reafirmam que a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo capítulo no processo histórico de construção de um sistema de proteção social e de garantia de renda no Brasil. A Carta reconheceu o seguro-desemprego como direito social do trabalhador submetido a situação de desemprego involuntário, ao tempo que estabeleceu as fontes de seu financiamento. O programa atua como estabilizador automático dos ciclos econômicos, ao repor uma parcela da renda do trabalhador demitido; permite a especialização da mão de obra, a retenção de competências e o aumento da produtividade do trabalho; e influencia o estabelecimento de um piso salarial no mercado de trabalho, dificultando abertura muito expressiva do leque salarial.
Não obstante, desde o final de 2014 o Seguro-Desemprego também foi vítima do ataque ideológico proposto pelos liberais que passaram a responsabilizá-lo pelo desarranjo fiscal. Este artigo se contrapõe a essa visão que não aprofunda a análise das reais causas do crescimento das despesas com o programa. As recentes restrições nas regras de acesso tiveram como mote apenas preocupações de ordem fiscal de curto-prazo. Elas não enfrentam a aparente “contradição entre baixas taxas de desemprego e crescimento dos gastos com o seguro-desemprego”. Segundo os autores, em síntese, “foi o aumento do universo potencial de beneficiários que pressionou os gastos do programa, e não uma ocorrência generalizada de fraudes, hipótese muito aventada, mas que carece de maiores evidências factuais”. Por outro lado, o desequilíbrio financeiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) reside, fundamentalmente, na perda de receitas a partir de 1994 por conta da criação do Fundo Social de Emergência (FSE), que depois se transformaria na Desvinculação de Receitas da União (DRU). Ademais, o FAT também vem perdendo expressivas somas de recursos devido às desonerações fiscais que atingem diretamente a arrecadação proveniente da sua principal fonte de financiamento.
Boa leitura!
Clique aqui para ler a versão digital da edição
Clique aqui para baixar o PDF
* Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social (www.plataformapoliticasocial.com).