O conjunto da obra sinaliza que a certeza de retrocesso – em um sentido amplo, geral e irrestrito – é a única definição mais segura para o governo Temer.
Paulo Kliass * | Publicado no site Carta Maior
Com o foco das atenções voltadas para o verdadeiro novelão mexicano em que se transformou o processo do golpeachment nos últimos dias, Michel Temer acabou obtendo uma relativa folga na cobertura da imprensa para aquilo que pretende se constituir no primeiro formato de sua equipe de governo.
Como toda etapa de especulação e ensaios a respeito de nomes e propostas, há que se ter um pouco de cautela nas conclusões apressadas. De qualquer modo, parece pouco provável algum recuo na definição daquele que vai ser o verdadeiro comandante da política de governo do golpismo. Com o aprofundamento da crise econômica e a obsessão em resolver de forma “radical” o problema das contas públicas, o status de Henrique Meirelles à frente do Ministério da Fazenda deverá ser bastante qualificado.
A grande aposta do financismo e das grandes corporações empresariais reside na indicação do ex-presidente internacional do Bank of Boston, deputado federal eleito pelo PSDB/GO em 2012 e Presidente do Banco Central prestigiado e “imexível” durante os 8 anos dos dois mandatos presidenciais de Lula. Meirelles representa a vontade de implementar a totalidade da agenda liberal, com a possibilidade de fazer terra arrasada do pouco que ainda restou de um Estado de Bem Estar Social em nossas terras.
A continuidade do superávit primário.
Tendo em vista a efetiva fragilidade da situação fiscal e o desejo de solucioná-la sob a ótica da ortodoxia financista, o mote deverá ser a busca incansável por cortes, mais cortes e ainda mais cortes no orçamento público. Aliás, diga-se de passagem, nada muito diferente daquilo que vinha sendo praticado de forma disciplinada por Joaquim Levy e por Nelson Barbosa. A possibilidade de algum recuo oficial nessa busca obstinada por resultados no superávit primário será afastada por um bom tempo. Afinal, se nem mesmo durante 13 anos de governos dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores isso foi feito, por que imaginar que Temer moverá alguma palha nessa direção? É sempre bom lembrar que desde 2003 até hoje foram destinados nada mais nada menos do que R$ 3,5 trilhões do orçamento federal para o pagamento de juros da dívida pública.
Assim é razoável supor que continuaremos a observar uma formidável sangria de recursos públicos destinados ao sistema financeiro, com o surrado argumento de que o governo não pode gastar mais do que arrecada. E a nova/velha administração da Fazenda manterá a lógica de cortes nas despesas de natureza social e nos investimentos, ao tempo em que dará sequência às despesas com juros e serviços da dívida, que estão atualmente em patamar superior a R$520 bi anuais. Mas isso pouco importa, pois o mais importante será a recuperação das expectativas, seja lá o que isso signifique em um quadro de deterioração das políticas públicas de inclusão e de recrudescimento das desigualdades sociais e econômicas.
O conjunto da obra sinaliza que a certeza de retrocesso – em um sentido amplo, geral e irrestrito – é a única definição mais segura para o governo Temer. A narrativa a orientar os meses que passará à frente da Presidência da República se resume ao lema que o conservadorismo tenta espalhar aos quatro ventos. O novo mantra do velho golpismo oferece um suposto refinamento na argumentação, ao elaborar que o pacto social definido na Constituição não caberia mais na realidade atual de nosso Orçamento. Nada mais enganoso! Afinal, tudo se resume a uma definição de prioridades. Se a intenção é assegurar os ganhos do rentismo parasita, aí a realidade de hoje não mais é a mesma da bonança proporcionada pelo “boom“ das “commodities”, tal como se observou no primeiro mandato de Lula. Mas se o esforço caminhar por uma diminuição do peso da dimensão financeira, aí as políticas sociais não precisariam sofrer nenhuma redução.
De retrocesso em retrocesso.
É verdade que o jogo de pressões e contrapressões dos interessados em influenciar e participar da equipe do vice-presidente termina por expor feridas, divergências e oferecer algumas indefinições em seu próprio campo.. A sanha que Temer pegou emprestado de Dilma em reduzir o número de ministérios é um exemplo típico. De início, fez anunciar que iria extinguir o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Parte da estrutura e das atribuições da pasta iria para o Ministério do Planejamento e as funções de relações comerciais internacionais ficariam com o Itamaraty. As entidades patronais fizeram seu “lobby” contra a medida e Temer recuou. É provável que quase nada mude nesse assunto.
Um belo jogo de cena para “reduzir” o número de ministérios é a retirada de tal status da natureza jurídica da entidade. Simples assim. Pouca gente sabe que o Banco Central é considerado um ministério. Qual a razão? Lula havia concordado com a condição imposta por Meirelles em 2003 e conferiu a ele tal blindagem no cargo de Presidente do BC. História de não poder ser detido por qualquer decisão judicial, como ocorrera com outros dirigentes da instituição em gestões anteriores. Na condição de ministro, ganhou foro privilegiado na justiça e possibilidade de prisão apenas com autorização do STF.
E eis que a ironia da História nos prega outra peça: esse mesmo Meirelles agora patrocina o retorno ao desenho anterior. O Presidente do BC sob Temer provavelmente não terá a blindagem que Lula lhe outorgou. Outra indefinição nesse quesito refere-se ao desejo manifesto da nata da elite do financismo em obter a institucionalização jurídica da independência do BC. Temer lançou um balão de ensaio nessa direção para agradar ao círculo de Armínio Fraga e cia, mas parece que foi obrigado a recuar. Afinal, não é necessário mais um desgaste para aprovar essa medida polêmica, quando se tem assegurado pessoas como Ilan Goldfajn (Itaú) no comando do órgão que deveria regular e fiscalizar o sistema financeiro.
Previdência Social na mira.
A incansável busca pelo aniquilamento da Previdência Social deverá merecer atenção de todos. Como os financistas não se cansam de repetir, o principal nó a ser desatado na questão fiscal estaria nas despesas vinculadas e obrigatórias. E a importância social e econômica dos benefícios do INSS para nossa economia está bem traduzida em seu peso no total do Orçamento da União. Aos olhos sedentos por sangue dos liberalóides de plantão aquelas centenas de bilhões de reais são um prato cheio para realizar o (des)ajuste tão desejado.
A solução aventada por Temer é perfeita para a destruição do sistema. E ele ainda pega carona no absurdo cometido por Dilma, que foi a criação irracional, desnecessária e antifuncional do monstrengão que resultou da fusão do Ministério do Trabalho com o Ministério da Previdência Social. Pois o vice presidente pretende agora retirar a parcela de previdência social do MTPS e transferi-la diretamente para o quintal do Ministério da Fazenda. Não entendeu direito? Nem eu. Só sei que é um crime deixar sob a responsabilidade do ocupante das finanças o destino de milhões de famílias que se locupletam com a fortuna de um salário mínimo mensal e que seriam os principais responsáveis pela quebra do Estado brasileiro. É a raposa tomando conta do galinheiro. Aliás, tomara que essa seja apenas mais uma das indefinições de Temer e que ele recue também nessa tentativa de homicídio do Regime Geral da Previdência Social.
Depois de aparentar um recuo estratégico na controvertida possível indicação de um pastor fundamentalista para se ocupar do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Temer volta a uma ideia que havia sido abandonada. Não se trata aqui do sonho irresponsável – felizmente não concretizado – de Aloísio Mercadante, que gostaria de eliminar o MCTI para fundi-lo ao Ministério da Educação. A proposta que ganha espaço agora é de extinguir o MCTI para torná-lo um apêndice do Ministério das Comunicações. Uma loucura! Não bastasse essa cobiçada pasta continuar a ser um balcão de gerência dos interesses e negócios das grandes redes de TV e dos oligopólios das telecomunicações, o responsável por ela vai também poder se ocupar em suas horas vagas de assuntos relacionados a ciência, tecnologia e inovação.
O simbolismo da preocupação de Temer com a agenda social não poderia ser mais bem expresso por outras duas medidas em debate no grupo. Em primeiro lugar, a fusão do Ministério do Desenvolvimento Social (responsável pelo Bolsa Família e outros programas de inclusão) com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (responsável pela reforma agrária, que muito pouco avançou nos últimos anos, diga-se de passagem). Por outro lado, pretende promover a eliminação do ministério que se ocupa de direitos humanos/mulheres/igualdade racial e sua inclusão no Ministério da Justiça. Esse é o recado essencial da nova equipe dirigido a todos os que estamos preocupados com o retrocesso na pauta social.
O governo Temer ainda nem começou e já apresenta suas (in)definições. Porém, caso sejam levadas em conta as propostas que começam a ser ventiladas, ele conseguirá a façanha de promover a unificação do conjunto dos movimentos sociais na resistência à implementação do projeto golpista e antipopular.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.