Fabrício Augusto de
Oliveira[1]
Bolsonaro anda convicto de que ao ser eleito presidente da República do Brasil, com o que não contava e cargo para o qual não nasceu, foi lhe confiada uma missão de Deus. Deve, no entanto, ter faltado à aula ou à pregação deste, ou mesmo se confundido de auditório, indo parar no de seu maior inimigo, quando foram tratados temas como tolerância, fraternidade, solidariedade, igualdade, entre outros que fazem parte da doutrina cristã.
O mais certo é que Bolsonaro tenha se confundido de auditório, assistido à pregação do inimigo de Deus e, sem capacidade de discernimento, tê-la tomado como se Dele fosse. De boa lábia, sutil, astuto e tinhoso, Lúcifer é capaz de penetrar na mente das pessoas, enganá-las, confundindo seus pensamentos, principalmente quando estes são fracos, e levá-las a trocar divino por diabólico, sublime por ignóbil, perfeito por imperfeito, superior por inferior, magnífico por vulgar e achar que está certo. Isso por não ter estudado bem a lição ou por que foi enganado por sua ignorância. Parece ser o caso do presidente.
Bolsonaro conseguiu a proeza de reunir uma equipe de auxiliares em seu governo que comunga as mesmas ideias, provavelmente por terem sido seus companheiros da viagem em que errou de auditório. Intolerância, vulgaridade, violência, sofismas, descaso com os pobres têm pautado o comportamento dos mesmos, seguindo os passos do comandante, sempre em nome dos bons costumes que enganosamente consideram sagrados. Não há lugar, aqui, para os que discordam deste pensamento, considerados verdadeiros inimigos das “boas” causas, como se não existissem diferenças entre os seres humanos e todos tivessem de se enquadrar na religiosidade, crenças e ideologia de Bolsonaro e de sua equipe. Ou do diabo.
Na área dos costumes, o que vale para essa trupe nada tem a ver com o mundo moderno e civilizado, onde desfilam casais gays, união de pretos e brancos, lutas pela igualdade de gêneros, iniciativas pró-aborto, considerando serem movimentos surgidos na onda do “marxismo cultural”, que nem os próprios marxistas sabem o que significa, para desestabilizar o sistema capitalista, à medida que a luta de classes perdeu força desde a queda do muro de Berlim. Para eles, as questões identitárias favoráveis ao livre-arbítrio devem ser combatidas a ferro e fogo para afastar o perigo que representam para a sociedade cristã. Para isso, escalaram uma ministra dos direitos humanos, a quem ninguém pode colocar defeitos nessa árdua e “nobre” missão para acabar com estes desvios e recuperar este rebanho para o “senhor”.
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, com uma visão política de extrema-direita, não abre mão de continuar identificando o nazismo com o comunismo, mas sem explicar por que foi principalmente a União Soviética que derrotou a Alemanha na 2ª Guerra Mundial e livrou o mundo deste regime totalitário. Da mesma forma, continua, na mesma toada do ex-ministro da educação, Ricardo Vélez, classificando o golpe de 1964 no Brasil como uma “reação democrática de força” e negando a existência de uma ditadura de 20 anos, que suprimiu os direitos individuais, a liberdade da imprensa e de expressão, fechou o Congresso Nacional, amordaçou o judiciário, proibiu a greve de trabalhadores, matou várias centenas de opositores, para ficar com alguns atentados contra o regime democrático. Não bastasse, tem ameaçado de demissão do ministério os embaixadores que não se enquadrarem na nova ideologia bolsonarista, o que tem provocado uma revoada de seus quadros mais experientes.
Na educação, quando pensamos que havíamos nos livrado da patética e neandertaleza figura do colombiano, Ricardo Vélez Rodriguez, que queria transformar o aprendizado na escola numa grande aula de moral, cívica e religiosa, e insuflar arroubos nacionalistas nos alunos, em seu lugar entra Abraham Weintraub, que faz parte do portfólio do guru de Bolsonaro, Olavo de Carvalho, declarando-se fiel à sua ideologia e inimigo do “marxismo cultural”, mas que pelo menos diz não seguir “ipsis litteris” as ideias do “grande mestre”. Se isso significa alguma coisa ainda é cedo para dizer. No meio-ambiente, onde foi colocado um ferrenho inimigo da preservação da natureza e da população indígena, nem há necessidade de gastar tempo para prever a tragédia que pode estar a caminho para o país e mesmo para o mundo. Tudo isso, sem falar no ministro do Turismo, que se encontra protegido, pelas denúncias que chegam à imprensa, na sombra de laranjais.
Na economia, comandada por um quadro formado na Escola de Chicago, para quem os pobres só atrapalham a estabilidade macroeconômica, o financista Paulo Guedes segue rigorosamente, mas de forma distorcida, a parábola cristã “de que deve ganhar mais quem mais possui”, construída com o objetivo de estimular o homem ao trabalho, entendendo que os que nada possuem não passam de “vagabundos” e não de desempregados.
Cada proposta que surge de sua área representa uma paulada na população colocada à margem do sistema por políticas econômicas excludentes e contrárias ao crescimento econômico. Tem sido, assim, com a reforma da previdência, pior para os pobres que a reforma remendada de Temer em 2018, embora vendida para a população como necessária para extinguir privilégios. Com a proposta de desvinculação de receitas para o financiamento das áreas sociais e de extinção do mecanismo de correção real do salário mínimo. E, tudo indica, com a proposta de reforma tributária que ainda será apresentada, mas que não deve ir além de mudanças na tributação indireta, mantendo reduzida a taxação sobre o capital e as camadas mais ricas.
Nem mesmo o anúncio apoteótico de concessão do 13º salário para os beneficiários do Programa Bolsa Família, uma medida demagógica, de cunho eleitoral, que tem o objetivo de ampliar a pequena base de apoio do governo Bolsonaro, pode ser levada a sério, porque acompanhada da decisão também já anunciada de que este benefício não será corrigido pela inflação neste ano. Ou seja, dá-se com uma mão para cair na graça deste segmento mais pobre da população e retira-se com a outra para não atrapalhar os objetivos fiscais do governo.
E tudo isso sendo feito sempre em nome de Deus, da família e
da pátria. Durma-se com uma turma dessa!
[1] Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede e O Beltrano, e autor, entre outros, do livro “Política econômica, estagnação e crise mundial, Brasil 1980-2010”.