Breves reflexões sobre a paralisação geral de 28 de abril de 2017

Breves reflexões sobre a paralisação geral de 28 de abril de 2017[1]

Leandro Pereira Morais[2]

 

Num momento e contexto de tumultos e cisão da sociedade brasileira, é importante, seja como cidadão, seja como professor de uma universidade pública, registrar alguns pontos.

Primeiro: este momento e contexto se caracterizam também pelo fato de que, como pensar, estudar e refletir exige mais tempo e dedicação (além de coragem e costume), dar opinião é mais simples, fácil e corriqueiro, sobretudo, numa sociedade e país que cada vez menos se lê em profundidade e cada vez mais, muitos são (des)informados pela mídia de massa e pelas falácias que rondam, por exemplo, em mensagens de whatsApp ou no facebook, para muitos tidas como verdades absolutas e incontestes. Pior ainda: tais mensagens se constituem para alguns como a única fonte de informação e de conhecimento e que, imediatamente, são replicadas em velocidade e proporção surpreendentes. Eis o processo de imbecilização da sociedade brasileira patrocinado pela mídia de massa e por alguns interesses escusos representados por um Governo, Congresso e Senado demasiadamente indignos.

 

Segundo: esta paralisação não se limita aos defensores de determinados partidos ou políticos (embora estes estejam também presentes), como alguns desinformados ingênuos ou oportunistas espúrios tentam nos fazer acreditar. Ou seja, tal paralisação, vista com desdém por alguns brasileiríssimos patrióticos que outrora vestiram suas camisetas verde e amarela (muitas da CBF) e conclamavam contra a corrupção em avenidas brasileiras, se refere (e, sobretudo quando feita de maneira pacífica, respeitosa e organizada) a algo muito mais nobre e complexo do que a simples defesa de políticos e-ou partidos corruptos. Ou sérias e importantes instituições tais como o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA) etc que se manifestaram contra as Reformas Trabalhista e Previdenciária aos moldes que vêm sendo feitas, estão defendendo um ou outro político ou partido? Refere-se a uma disputa por interesses e de poder que, resumidamente, podemos externar como a disputa entre o capital e o trabalho. Portanto, algumas questões que devem ser feitas são: a quem interessa essas Reformas e quem paga a conta?

 

Terceiro: em se tratando especificamente da Reforma da Previdência (PEC 287/2016), cabem as questões: a Previdência é deficitária ou não? E ela deve ser reformada? Em relação à primeira, há duas respostas (pelo bem ou pelo mal….): sim e não. Sim, no caso de se considerar apenas a diferença entre a contribuição e o dispêndio totais, ou seja, a diferença entre a soma do volume contribuído por todos que recolhemos ao INSS e a soma do que o INSS direciona aos pensionistas e aposentados. Em outros termos, a partir de uma visão estritamente contábil e direta, há o déficit na Previdência Social. No entanto, a partir da Constituição de 1988, criou-se o Orçamento da Seguridade Social – OSS[3] (composto pelas áreas de Saúde, Previdência e Assistência Social), construído sob a égide da cidadania e da solidariedade social. Afinal, vale lembrar que somos um país com passado colonial e escravocrata, com marcas ainda profundas de exclusão social, pobreza, miséria etc. O OSS é financiado, constitucionalmente, pelo PIS, COFINS, CSLL etc e gera um caixa superavitário quando se deduz o valor que é destinado à Previdência Social. Logo, com base numa perspectiva constitucional e social mais abrangente, a Previdência Social não é deficitária. Mesmo com os desvios indevidos que fazem com o OSS a partir das Desvinculações das Receitas da União, a famigerada DRU, que funciona como uma espécie de Robin Hood às avessas, pois tira recursos do social para transferir aos detentores da dívida pública brasileira.

 

Em relação à segunda questão, a Previdência deve ser reformada? Creio que sim!! Por que? Por 5 razões técnicas e políticas[4]. São elas: a) razões demográficas e a redução dos considerados ativos no mercado de trabalho e, por outro lado, aumento dos inativos, o que levará à queda na contribuição; b) razões tecnológicas, uma vez que com a crescente inserção de tecnologia no sistema produtivo de bens e de serviços, haverá uma redução das contribuições previdenciárias, visto que máquina não contribui ao INSS; c) razões atuariais, tendo em vista, por exemplo, os impactos do aumento da expectativa de vida no cômputo do tempo e valores de contribuição previdenciária; d) razões de justiça social, reconhecendo que há um tratamento heterogêneo para com determinadas categorias, como as dos políticos, juízes, militares etc; e) razões de eficiência arrecadatória, reconhecendo também que há brechas na capacidade de arrecadação (ainda que se reduzindo com os avanços nas relações entre a Receita Federal e o INSS, por exemplo), que culmina na existência de uma parcela de inadimplentes com a Previdência Social, muitos destes, curiosamente, que, por um lado, defendem a Reforma, mas por outro, esperam também que se caduquem o tempo para não acertar os débitos com o INSS quando, por exemplo, constroem suas mansões.

 

Logo, reconhecendo estes pontos, argumenta-se na necessidade de que a Reforma da Previdência constitui-se um tema de relevância para o país. Mas, isso não nos leva a autorizar e defender a criminosa Reforma que vem sendo realizada, por um pseudo Governo usurpador, apoiado por um Congresso indigno e alheio a um projeto de país, sem o mínimo de debate necessário para um tema como este. Tema que implica no nosso futuro e de nossos filhos e netos. Imagine, em um cenário positivo, um jovem brasileiro iniciando sua vida laboral aos 20 anos. Se tudo der certo, ele poderá entrar com o pleito de sua aposentadoria aos 69 anos! Em que pese que estamos vivendo mais e melhor, presume-se: i) que muitos não se aposentarão, embora tivessem contribuído e ii) que tal Reforma transformará a contribuição previdenciária em contribuição tributária e que servirá não para a aposentadoria, mas para o financiamento do governo que, certamente, será destinado ao pagamento dos juros da dívida pública.

 

Quarto: partindo de falsas premissas, como a modernização das relações de trabalho, bem como da promessa de se gerar mais empregos e, em nome de uma racionalidade corporativa de reduzir custos a qualquer custo, aprovaram também uma Reforma Trabalhista (PL6787/2016) que, dentre alguns aspectos, permite a terceirização generalizada e a prevalência do acordado sobre o legislado. Em que pese que ser empresário num país que privilegia o rentismo parasitário requer muito esforço e até mesmo fé, não podemos jogar nas costas do trabalhador o ônus da baixa competitividade e da falta de capacidade de geração de empregos no país. Diversos estudos internacionais mostram que, em comparação ao trabalhador assalariado formal, o trabalhador terceirizado trabalha mais, recebe menos, está mais exposto às inseguranças social, física e psicológica e que, dependendo do grau da terceirização (quarterização, quinterização etc…) permite a existência de práticas de trabalho análogas ao trabalho escravo, como em muitos casos amplamente conhecidos no setor têxtil, na construção civil, na mineração etc. Sem dizer que um trabalhador sem proteção social, trabalhista e previdenciária é um trabalhador mais vulnerável em diversos aspectos.

 

Desta forma, tal Reforma é um retrocesso, ao contrário do que propugnam, em nome da “modernização”, por permitir um retorno às práticas de trabalho do século XIX, em pleno século XXI. A respeito da prevalência do acordado sobre o legislado, é sabido como se dá o braço de ferro numa relação entre capital e trabalho. E é de se esperar que a individualização dos litígios entre os dois lados levará ao enfraquecimento do poder de decisão em relação ao trabalho, num contexto onde “aceita ou sai fora”, sobretudo em tempos de desemprego elevado. Logo, esta Reforma Trabalhista além do retrocesso, transformará o trabalho em uma mercadoria qualquer e descartável.

 

Quinto: também partindo de falsas premissas como a do Estado perdulário, corrupto e mal gestor, aprovou-se a PEC 241 (ou Emenda 55) , do teto de gastos públicos. Não desconhecendo a necessidade de mais lisura, transparência, direcionamento, eficácia e efetividade no uso dos recursos públicos, neste contexto onde o público e o privado selaram uma relação promíscua e anti republicana, tal aprovação implicará, ao longo dos 20 próximos anos, em reduzir o volume de recursos para áreas nobres e necessárias em nosso país, como saúde, educação, segurança, ciência etc. Sobre esta última, pouco falada, até mesmo a Revista Nature[5], em edição de 3 de abril de 2017, se espantou, ao anunciar que este governo reduzirá 44% dos gastos federais nesta área, conforme medida de 30 de março de 2017.

 

O que intriga é que se se aprovaram um teto dos gastos públicos (e, considerando estes como a soma entre os gastos primários e financeiros), por que nesta Emenda não se diz nada sobre os gastos com juros (conta nominal)? Para se ter uma ideia, em média, o governo federal gasta anualmente com juros e amortizações da dívida pública, cerca de 45% de todo o orçamento efetivamente executado. Tal quantia corresponde a 12 vezes o que normalmente se destinada à educação, 11 vezes aos gastos com saúde ou mais que o dobro com os gastos com a previdência social. Algo insustentável e incompreensível, para não se dizer criminoso. E isso não entra no teto? Sem dizer outras aberrações da medida que não considera o percentual de crescimento econômico e amarra por 20 anos o país num orçamento regressivo e perverso.

 

A questão que se coloca é: este é o país que queremos? Este é o país que defendemos? Que as decisões econômicas – parte de uma “Ciência” que não é neutra, nem tampouco exata, mas social, humana e política – não se desvinculam da ideologia (e até mesmo do ódio), já sabemos. Mas dai apoiar medidas que, na falácia da modernização, escondem interesses velados, nefastos e para uma minoria, não podemos aceitar. Indubitavelmente, estamos caminhando para um modelo de desenvolvimento sem um projeto de desenvolvimento e de um país-nação.

 

Creio que tais pontos nos ajudam a pensar se, de fato, todas estas medidas e Reformas catatônicas se dão em nome da modernização das relações de trabalho; da retomada do crescimento econômico e da geração do emprego; da redução da corrupção e do melhor uso dos recursos públicos ou se são partes de um processo de transformação de um Estado de Bem Estar Social para um Estado de Bem Estar Pessoal. Se estupidez e ignorância pagassem imposto, estes seriam importantes instrumentos tributários para se fazer superávit primário no Brasil.

 

Referências: 

[1] Parte de tais reflexões foi inspirada e usa de informações e de ideias oriundas de um rico debate realizado em 28.04.2017, no Auditório da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da UNESP de Araraquara, a partir das apresentações dos Professores Dr. Claudio Paiva, Dr. Valdemir Pires e Dr. Alexandre Rossi.

[2] Professor Doutor de Economia da UNESP – ARARAQUARA e Consultor – Colaborador da OIT-ONU.

[3] No Brasil, o vocábulo “seguridade social” passou a integrar os dicionários da língua portuguesa a partir de 1988. Porém, o termo é adotado, desde 1935, nos Estados Unidos e, desde a década de 1940, na Europa para designar uma miríade de programas e serviços sociais. Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a seguridade social é fundamental para a garantia do bem-estar da classe trabalhadora e de suas famílias, assim como de toda a coletividade. Para a organização, trata-se de um direito essencial do ser humano, importante para promover a paz e a inserção social. Informações adicionais, consultar: Salvador (2007). Quem financia e qual o destino dos recursos da seguridade social no Brasil? Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=or%C3%A7amento+da+seguridade+social&oq=or%C3%A7amento+da+seguridade+social&aqs=chrome..69i57j0l5.4401j0j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8#q=or%C3%A7amento+da+seguridade+social+e+formas+de+financiamento+do+setor

[4] Estas razões, bem como suas decorrências, foram trazidas pelo Prof. Dr. Valdemir Pires, em magistral palestra proferida em 28.04.2017, no Auditório da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da UNESP de Araraquara.

[5] Em artigo intitulado: “Brazilian scientists reeling as federal funds slashed by nearly half”. Disponível em: http://www.nature.com/news/brazilian-scientists-reeling-as-federal-funds-slashed-by-nearly-half-1.21766

 

Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas