Canuto, Estado e empoderamento

Fabrício Augusto de Oliveira*

Em confusa entrevista transmitida pela Terra TV na internet, em março deste ano, o Conselheiro Sênior do Banco Mundial, Otaviano Canuto, afirma que a desigualdade “abre espaço para políticas populistas e nutre vendedores de ilusões”, ao mesmo tempo em que “inviabiliza o empoderamento da população de baixa renda”.

Não fica muito claro na entrevista para quem a crítica é endereçada, mas tratando-se de um economista brasileiro atualmente filiado à ortodoxia, seu alvo certamente é a política econômica que foi implementada no Brasil, especialmente a partir do Governo Lula, que acelerou a redução da desigualdade no país, mas que, ao fim e ao cabo, terminou, como consequência, abalando as peças centrais do modelo econômico de estabilização e conduzido à crise atual. Ou seja, as políticas redistributivas de renda realizadas pelo governo teriam ido, para ele, muito além do que permitiria o desempenho da economia e o aumento da produtividade do trabalho, e seriam responsáveis pelos desarranjos atuais do quadro macroeconômico. Por isso, rotula de populistas.

O Conselheiro Canuto tem uma estranha maneira de apontar o caminho que deveria ser seguido para evitar este desastre e para promover uma redução consistente da desigualdade. Estranho porque, apoiando-se em exemplos de sua própria vida, lembrou que, quando jovem e estudante, a desigualdade era mais acentuada e que os mais pobres pareciam conformados com essa situação e tinham um “olhar humilde” quando tratavam com as pessoas de estratos mais elevados de renda.

Com a redução das desigualdades e a melhoria das condições de vida das camadas de mais baixa renda, que ele reconhece ter melhorado muito a partir da década de 1990, essa camada da população passou a ostentar um “olhar mais altivo” e maior coragem para “olhar dentro dos olhos dos mais ricos”. Isso significa que com essa melhoria decorrente das políticas implementadas, os mais pobres passaram a se reconhecer como cidadãos, o que antes não ocorria.

Neste ponto aparece uma grande contradição na fala do Conselheiro. De um lado, condena as políticas redistributivas, taxando-as de populistas e municiadoras dos “vendedores de ilusões”, enquanto, de outro, aponta seus efeitos positivos para a tomada de consciência cidadã da população beneficiada, decorrentes dessas políticas.

O problema todo parece residir, segundo se entende de sua entrevista, no papel que o Estado desempenha neste processo, ao usurpar da população um papel que caberia apenas a ela. Essa melhoria, que considera benéfica, deveria, em sua visão, não ser resultado de políticas que considera “populistas”, mas da capacidade dos mais pobres de exercerem pressões coletivas por mudanças, ou, usando um termo mais sofisticado, do empoderamento da população dessa ação. Ou seja, esta seria uma seara onde o Estado não deveria meter seu bico.

O que o Conselheiro não explica é como pode se dar este salto do “olhar humilde” para o “olhar altivo”, sem a participação do Estado, melhorando, com a implementação de políticas dessa natureza, as condições de vida da população mais pobre, de forma a incluí-la na categoria de cidadãos.

Ora, se ele mesmo reconhece que, em seu tempo de vida “jovem”, o olhar dos pobres era “humilde”, mas que hoje se tornou “altivo”, devido à redução da desigualdade, dando-lhe melhores condições cidadãs, e condena, ao mesmo tempo, essas mesmas políticas pelo fato de o Estado ter retirado, dessas camadas da população, o empoderamento de suas ações, teria de ter apresentado, para isso, uma fórmula que permitiria aos mais fracos economicamente pressionar – e saírem vitoriosos nesse pleito – os mais fortes do sistema, ou seja, os que de fato dão as cartas, por mudanças que os favoreçam, contrariando, assim, a lógica do sistema.

Por vias tortas e argumentos falazes, Canuto pretende conseguir a proeza de, ao mesmo tempo, reconhecer a importância da redução das desigualdades – com o que até o mais empedernido conservador concordaria -, e condenar a ação do Estado na implementação de políticas voltadas para este objetivo, como se o sistema econômico capitalista possuísse, ele próprio, brechas ou mecanismos que propiciem uma melhor distribuição de renda, contrariando a lógica da acumulação, bastando os trabalhadores – ou os mais pobres – manifestarem seus desejos ou pressionarem os poderosos para aumentar sua fatia na montante da riqueza gerada. Uma visão romântica – e ingênua – que os socialistas do século XIX tinham a respeito das classes abonadas e privilegiadas do sistema.

Se o objetivo de Canuto na entrevista era o de criticar especificamente a política redistributiva que foi implementada no Brasil a partir dos Governos Lula e Dilma, o desta especialmente no primeiro mandato, não lhe faltariam argumentos para demonstrar que reside na ausência de um maior equilíbrio entre o econômico e o social, especialmente no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, prejudicado também pela crise da economia que se instalou no mundo a partir de 2007/2008, a maior causa das dificuldades atualmente enfrentadas pela economia brasileira.

Mas, ao jogar toda a responsabilidade dessa situação nas políticas redistributivas do Estado, em geral, que rotula de populistas, visando condenar sua ação, sem fazer a menor distinção entre os seus conteúdos, e atribuir poder à própria população para reverter essa situação, Canuto ignora a história do capitalismo e nega qualquer importância ao Estado no seu papel-chave de garantir a reprodução do sistema no longo prazo, reduzindo as desigualdades e atenuando as inevitáveis tensões sociais que são geradas pela busca desenfreada por lucros. Ou será que ele passou a acreditar que o Estado tenha se transformado, com essas políticas, em uma instituição comandada pelo trabalho, atuando contra o capital?

* – Fabrício Augusto de Oliveira é doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, colaborador do Brasil Debate e autor, entre outros, do livro “Politica econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”