Amélia Cohn* | Publicado no Le Monde Diplomatique Brasil (edição 107, 8 de junho)
“Há cinquenta maneiras de ser mais generoso com os pobres e gastar menos”. Essa afirmação de Ricardo Paes de Barros, um dos colaboradores do programa de governo do presidente interino Temer, é emblemática da concepção que hora se tenta implantar sobre o combate às desigualdades sociais e à pobreza no Brasil. Reagir contra o golpe de que a democracia brasileira foi vítima não se limita a protestar ou se indignar, mas sim buscar entender a lógica que instrui a atual equipe vexatória que ocupa o poder. A pergunta que se apresenta é: qual a concepção de projeto para o Brasil que está aí reinando? A de uma sociedade mais democrática e igualitária? Ou a de um país que “precisa voltar a gerar lucro”, custe a quem custar (isto é, aos pobres e trabalhadores)?
Se hoje há “cinquenta maneiras de ser mais generoso com os pobres”, uma a mais é a que vigorou nos últimos treze anos nos governos do PT, com muito mais acertos do que erros. E qual foi ela? A de pensar a desigualdade de renda e social como um fator que impede não só o crescimento econômico, mas a construção de uma sociedade mais igualitária e justa. Generosidade não significa justiça social. Significa desprezo a um segmento significativo de nossa sociedade, daqueles que foram relegados historicamente pelas nossas políticas sociais e portanto pela sociedade até 2002, e objeto de iniciativas tímidas aqui e ali no período da redemocratização do país e nos governos Fernando Henrique Cardoso.
Generosidade significa aí sim, ao contrário do discurso dos técnicos modernos, avançados, com familiaridade em estudos e métodos estritamente econométricos sobre pobreza e desigualdade social, a opção por políticas de alívio imediato da pobreza dos segmentos “em situação de urgência econômica”, como essa visão costuma classificá-los. E isso nada mais é do que o velho e bom assistencialismo, que nega qualquer visão desses sujeitos sociais como cidadãos com direitos iguais. A cidadania – tida como a alienação política e social que se resume à luta contra a corrupção, combatida de forma discricionária e oportunista – é para as elites e a velha classe média. Porque aí a disputa é por exclusividade de espaços sociais até então sob o conforto do seu monopólio.
Poucos anos após a implementação do Programa Bolsa Família, do qual a disputa da paternidade leva a apropriações indevidas por parte de técnicos e estudiosos do tema, enquanto sobre a sua maternidade ninguém fala, embora tenha sido uma construção coletiva sua concepção e implantação, uma beneficiária afirma em carta ao Lula, então presidente: “Uma ajuda ela se acaba; o que necessito é de um emprego que garanta minha vida”[1]. Hoje, em 2016, dez anos depois, revela-se certíssima essa sua afirmação! Nada mais preconceituoso e enviesado por uma concepção elitista sobre a pobreza, do que afirmar que os pobres não querem trabalhar, querem, como se dizia antigamente “se encostar na caixa”, e hoje, como afirma um dos atuais ministros interinos, “Bolsa Família não pode ser um projeto de vida”. Isto nada mais é do que a expressão do desconhecimento emprenhado de certezas e preconceitos sobre o que é a pobreza, a situação de vida dos pobres e suas inexistentes oportunidades de inserção social no mercado via trabalho.
Seria de se esperar que uma nova equipe de governo minimamente equilibrada e com status de dirigentes responsáveis da nação, mesmo que interina, entrasse tendo já alternativas não para “cortes cirúrgicos” dos programas sociais, mas sim de como aperfeiçoar e ampliar os programas em vigência. Claro está que a prioridade da atual equipe interina de governo veio com outra missão: quebrar os avanços dos direitos sociais e trabalhistas garantidos na Constituição de 1988, em nome da primazia e independência desse próprio governo da área econômica, pois o “país precisa voltar a dar lucro”, nas palavras de Temer.
Em consequência, o SUS é demasiado grande, o Bolsa Família é demasiado generoso, a educação necessita de cortes de “gastos” e se possível deixar de ser gratuita, sem falar nos direitos trabalhistas, que impedem que os empresários possam usufruir de lucros e voltar a investir produtivamente. Como se isto fosse automático. Portanto, a conta que orienta a equipe interina é a do ajuste fiscal, claro que sem onerar o capital. Daí que a solução é o corte nos gastos sociais e nos direitos sociais e trabalhistas.
Em primeiro lugar, recursos na área social, para um projeto de nação e de sociedade, não são gastos; são investimentos. Há pouco tempo atrás se falava do “apagão” de mão de obra qualificada para a atividade econômica do país, coisa que a crise deixou pra lá, como se ela fosse daqui para frente estrutural – talvez seja o que queiram os atuais donos do poder, retomando aqui de forma extremamente oportuna Raymundo Faoro.
Em segundo lugar, olvida-se que investimentos na área social têm retorno econômico, além do social, claro, dado seu efeito multiplicador. Não só põem em funcionamento as linhas de produção daquilo que demandam de infraestrutura, como, no caso do PBF, por exemplo, dinamizam a economia local via aumento do consumo.
Em terceiro lugar, borra-se do cenário o impulso dado nesses últimos anos à pequena produção – agrária, industrial e comercial – incentivado por programas sociais específicos, de investimento no “empreendedorismo”, por mais ambíguo que seja esse processo. Em contrapartida, miram-se os direitos trabalhistas, já tão combatidos pela nova ordem de que não há mais trabalhadores, mas “colaboradores”.
Em consequência, para fins da aparência, fundem-se sem critérios ministérios em nome da economia de recursos por parte do Estado. Ciência e Tecnologia não é mais um impulso essencial ao desenvolvimento do país, mas mais uma função “gastadora” de recursos, pois o inexistente projeto de nação e de sociedade dos governantes interinos não contempla a sociedade do conhecimento. A fusão de ministérios responde ainda a efeitos imediatos junto à opinião pública, desconhecendo-se que a máquina estatal com seus recursos humanos não pode ser borrada sem mais, e que a junção de distintos quadros, com suas hierarquias e seu acúmulo de conhecimento sobre o funcionamento das distintas dinâmicas das políticas setoriais não se fundem sem mais. Isso porque esses quadros trazem consigo não só um saber, como interesses incrustados seja de natureza corporativa, seja de natureza da defesa conhecimento específico em suas respectivas áreas.
Essa fusão é para fins de aparência, pois na essência ela expressa e significa muito mais do que aparentam ser para o público em geral. Se a aparência é não fracionar a ação pública respondendo a interesses políticos mesquinhos (coisa que a própria escolha do corpo de ministros interinos desmente, pois traduz o fisiologismo mais clássico e rasteiro), sua essência é a divisão entre ministérios receptores de recursos de um lado (Ministério da Fazenda, incorporando a parte rica da previdência social) e ministérios “gastadores” de outro (o INSS sendo incorporado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário). Claro está que um dos maiores orçamentos do Estado fica no âmbito da Fazenda, disponível para capitalização, desvinculação desses recursos, investimentos estatais, etc. E que do outro lado, o do “gasto”, ficará à mercê dos “cortes cirúrgicos”. Lembra a estória de dois amigos que compraram uma vaca, e quando um deles reclama que ela só dá despesa, o outro responde: “não tenho culpa que você ficou com a metade da frente, e eu a de trás”…
Além de se ter claro que esses cortes cirúrgicos serão feitos sem anestesia prévia do paciente, isto é, dos portadores de direitos sociais segundo a constituição vigente (ainda), e dos beneficiários dos programas sociais, há que se indagar, como devem fazer os bons cirurgiões, quem fará o diagnóstico prévio. Estes diagnósticos (no plural, porque anuncia-se que toda a área social passará por um severo exame que não tem nada de preventivo, mas sim de intervenção imediata e direta de cortes) serão feitos por instituições públicas nacionais, como as universidades públicas que possuem know how de sobra para tanto, ou por empresas privadas nacionais e internacionais de avaliação já moldadas pela fórmula custo/efetividade tão ao gosto das instituições de financiamento multilaterais? Não pensem que esta seja uma questão de pouca monta. Dou testemunho de minha experiência, negociando com o Banco Mundial em 2003/2004 o financiamento para o PBF: nos documentos sucessivamente apresentados por aquela instituição para se firmar o convênio já vinham registradas reiteradamente – quase como falha técnica da programação do computador – as empresas que fariam a avaliação do programa. Não foi fácil convencer seus técnicos de que as avaliações seriam feitas por universidades e centros de pesquisa públicos nacionais.
Que fique claro, desde já, que a proposta desse governo interino não consiste numa política neoliberal de “bom coração” (Veríssimo). Trata-se de uma proposta de governo que concebe que pode até ser “generoso” com os pobres, mas desde que eles voltem para o seu lugar, e que não venham contaminar os espaços daqueles que sempre tiveram o monopólio, como universidades públicas, acesso ao consumo, o acesso absurdo a viagens aéreas, ao lazer, à educação, à saúde, à cultura, e, fundamentalmente, aos direitos sociais. Os governos do PT terem tirado o Brasil do mapa mundial da fome não é fato que mereça atenção.
As declarações iniciais dos novos/velhos ministros são elucidativas do que vem por aí: o equilíbrio das finanças públicas não virá por meio de cortes dos privilégios de quem ocupa cargos nos três poderes da República (nem falar da bolsa-moradia dos juízes! nem da frequente troca das frotas de luxo e verbas de gabinete dos legisladores, tão castos e austeros em seus gastos e comportamento), o que seria cortar primeiro nos diretamente envolvidos, e assim baseados na moral judaico cristã dar o exemplo, para depois atingir os “outros”, mas vão diretamente aos “outros”. Vamos a dois exemplos: Programa Bolsa Família e o SUS.
O Programa Bolsa Família já foi examinado e analisado exaustivamente, tanto por especialistas nacionais como internacionais. Tanto que ganhou prêmio mundial da mais alta expressão como o melhor programa de transferência condicionada de renda. No entanto, o que se busca agora é fazer uma nova avaliação (por quem???) para nele se fazer um corte cirúrgico, de preferência que focalize na faixa dos 5% mais pobres do país, pois com isto estar-se-ia expressando a generosidade dos mandantes interinos. Mas se esqueceram de alguns fatos fundamentais: o PBF “gasta” somente 0,5% do PIB, e é internacionalmente reconhecido como o programa de menor custo administrativo dentre os existentes; e que apesar disso, sua focalização apresenta pouco mais de 1% de desvio, o que está muitíssimo abaixo da média internacional.
Mas raciocinar dessa forma significa pensar o PBF de outra forma, como vinha sendo estruturado desde 2003, que não a atual. Aí está o pulo do gato! As políticas sociais e de combate à pobreza não serão mais políticas norteadas pelo direito universal da cidadania e de inserção social, mas políticas pontuais para aqueles que não conseguem fontes de subsistência próprias. Estes estão em situação de “urgência social”, portanto objeto de medidas estatais pontuais e efêmeras. Daí não se extrai a cidadania, pois esta necessita, tal como o mercado, de regras estáveis e de longa permanência, pois como já é sabido pela população de baixa renda com suas condições de vida drásticas, “uma ajuda ela se acaba”, e isso não possibilita que construam projetos de vida.
Se generosidade não significa – pelo contrário, é o oposto de – justiça social, porque dessa perspectiva reproduz-se a subalternidade (o patrão é generoso, pois deixou de dar chibatadas), a outra face das políticas sociais como a de transferência condicionada de renda consiste em acentuar a dimensão da condicionalidade. O IDF, idealizado por Ricardo Paes de Barros, implica uma série de variáveis familiares que teriam que ser monitoradas minuciosamente para que se eleja ou não uma família como potencial beneficiária adequada do PBF, ou como “desvio” da focalização. Isso significa, quer se queira quer não, domesticar os pobres, discipliná-los como beneficiários objetos da generosidade do Estado, e não como cidadãos potenciais sujeitos autônomos da sua trajetória e destino. Na atual conjuntura, sujeitos sociais autônomos é tudo o que não se quer; tanto que o horizonte é criminalizá-los, já que os “direitos são relativos”, nas palavras de outro ministro interino.
A ignorância do ministro interino do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário sobre a pobreza, já destacada pela ministra Tereza Campello, vem carregada de preconceitos, extraídos do senso comum das classes altas sobre os pobres e a pobreza. Ignora que 75% dos beneficiários do PBF trabalham, e que 4 milhões deles já se desligaram espontaneamente do programa por terem superado o limite de renda estabelecido. É mais fácil e socialmente mais convincente para a sociedade a visão de que pobre não quer trabalhar, quer comer o peixe e não pescá-lo; que não se encontram mais empregadas no nordeste porque elas preferem o benefício, e não que o benefício lhes possibilita negar condições de trabalho e remuneração indignas (até porque na sua grande maioria certamente não são assalariadas). Não é nada bom para nossas elites que esse segmento social se rebele contra as condições indignas de vida e trabalho que sempre lhe foram impostas, em nome de um bem comum.
Mas com o ataque e o corte cirúrgico do PBF vem o enforcamento do SUAS, que se desenvolveu a partir de 2004 (sua formulação) e 2005 (sua implantação). A assistência social não poderá mais ser um direito, tal como consta na CF/1988, mas ela também será fatalmente um apêndice destinado aos pobres, se não uma área reservada às primeiras damas. Voltamos assim ao pré 1988: assistência social é ação de, tal como o bolsa família corre o risco de sê-lo, amenizar situações de urgência econômica e de carência social, normalmente atribuídas à ignorância das classes subalternas.
Quanto ao SUS, o que está em jogo é sua desestruturação e desconstrução, num setor – o da assistência médica – que concentra alta densidade de capital e de tecnologia, e que tem um retorno de sete a oito vezes do que foi investido, dadas as características da cadeia produtiva do complexo médico industrial da saúde. Embora esse processo não seja de hoje, com este governo as contradições tornam-se mais explícitas: apesar de seu crônico subfinanciamento, trata-se agora de alavancar ainda mais o setor privado da saúde, que vem se popularizando por meio de novos planos e seguros de saúde altamente precários, e que na realidade, por essa precariedade acabam onerando ainda mais o setor público estatal da saúde.
Talvez por ser o setor que mais avançou desde 1988 na sua nova institucionalidade enquanto SUS, e por contar com defensores organizados socialmente, levanta-se agora se ele não seria grande e abrangente demais para os “parcos” recursos do Estado. Joga-se o balão de ensaio para ver suas repercussões sociais. No entanto, seria otimismo pensar nisso como se fosse um balão de ensaio; na realidade trata-se de uma equipe de governo (não por acaso com exceção da área econômica) que além de interina, não veio com uma proposta de um projeto para o país, a não ser o de instituir um novo equilíbrio econômico aos moldes clássicos do neoliberalismo.
Em resumo, a lógica por trás dos balões de ensaio e medidas aparentemente incongruentes na área social está clara: acabou-se o ciclo de políticas sociais estruturantes, orientadas pelos direitos sociais. O que os interesses privados estavam conseguindo no varejo agora vêm por atacado. A capilaridade dos distintos programas sociais, grande avanço nos últimos governos, agora corre o sério risco de virar o feitiço contra os pobres: a disponibilidade de dados sobre os pobres e o acesso dos serviços públicos à esfera privada desses indivíduos podem se transformar em um instrumento de controle social do Estado sobre os mais pobres, um instrumento de culpabilização e castigo pelo não cumprimento das condicionalidades, originalmente pensadas como ferramenta de monitoramento das políticas públicas locais e não de punição das famílias. Isso porque não se trata só de desconhecimento dos governantes sobre a pobreza: eles acham que a conhecem porque dispõem de indicadores sobre ela, e que isso é suficiente. Trata-se sim de desprezo com relação aos pobres. Daí poderem até ser generosos, mas sem exageros.
[1] Cohn, A. Cartas ao Presidente Lula – Bolsa Família e direitos sociais. Editora Azougue. Rio de Janeiro. 2012, p. 58.
[1] Cohn, A. Cartas ao Presidente Lula – Bolsa Família e direitos sociais. Editora Azougue. Rio de Janeiro. 2012, p. 58
- Amélia Cohn, socióloga, pesquisadora sênior do CNPq