‘Com Temer, estamos assistindo ao impeachment do processo civilizatório’

Gabriel Brito e Valéria Nader | No Correio da Cidadania 

O governo interino de Michel Temer continua a tentar emplacar suas medidas econômicas, em meio à recessão e desemprego que se prolongam. Enquanto o novo presidente do Banco Central avalia a política inflacionária e a redução dos juros como motores da estabilidade do tripé macroeconômico, o Correio da Cidadania entrevista o economista e professor da Unicamp Eduardo Fagnani, que fez severas análises das pretensões do novo governo, a seu ver bastante calcadas em vontades políticas e ideológicas.

“Na gestão macroeconômica, há o reforço das políticas de austeridade que fracassaram na Europa pós-crise de 2008, cujo propósito não é o crescimento e o bem estar social, mas preservar a riqueza financeira. Diversos dispositivos para turbinar o ‘tripé macroeconômico’ (câmbio flutuante, superávit fiscal e regime de metas de inflação) estão tramitando no Congresso Nacional (dentre outras, autonomia jurídica para o Banco Central e a criação de uma Autoridade Fiscal Independente, por exemplo)”.

Em suas respostas, Fagnani destrincha os principais pontos das propostas fiscais e orçamentárias, em especial por meio da ampliação da Desvinculação de Receitas da União, a retirar recursos de áreas sociais. Assim, mantém a análise política ao lado do debate econômico, posto que as medidas a serem tocadas pelo ministro da Fazenda Henrique Meirelles se concentram nos pilares que conformam a renda do trabalhador médio e os serviços que acessa.

“Mais grave é a Proposta de Emenda à Constituição PEC 241/16, que congela gastos públicos por 20 anos. Chamada de ‘Novo Regime Fiscal’, a PEC limita as despesas primárias da União aos gastos do ano anterior corrigidos pela inflação. Estudos realizados por especialistas apontam que, se for adotada essa PEC, em dez anos haverá redução de gastos superiores a 40% em áreas como saúde, educação e previdência”, apontou.

Pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho da Unicamp, com especialidade em questões previdenciárias, Fagnani volta a ressaltar que a dupla Temer-Meirelles, antes de qualquer recuperação da economia e do emprego, visa apenas satisfazer os anseios do mundo financeiro. Dessa forma, coloca outros elementos na mesa da discussão de eventuais mudanças no regime de previdência.

“Somos um dos países mais desiguais do planeta e seremos campeões mundiais em exigências para aposentadoria. A experiência de países desenvolvidos revela que a reforma da Previdência tem por objetivo aperfeiçoar o sistema para enfrentar as transformações demográficas. A reforma Temer-Meirelles não considera a questão social e não tem por objetivo aperfeiçoar o sistema”, resumiu, sem dar trégua ao caráter das ideias liberais que voltaram a hegemonizar o debate público.

A entrevista completa com Eduardo Fagnani pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Passados quase dois meses do mandato provisório de Michel Temer, qual avaliação geral, política e econômica, você faz desse governo e das propostas até aqui apresentadas?

Eduardo Fagnani: O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Em pleno século 21, sequer foi capaz de enfrentar suas desigualdades históricas. Nos últimos dez anos, enquanto o assassinato de mulheres brancas caiu 10%, o assassinato de mulheres negras subiu 54%, por exemplo. Nosso estágio civilizatório é rudimentar. Somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo (uma morte é registrada a cada 28 horas), por exemplo.

A construção de uma sociedade menos desigual e minimamente civilizada requer que aperfeiçoemos nossa democracia; que reforcemos o papel do Estado (não há, na história econômica do capitalismo, nenhum caso de país que se tenha desenvolvido sem o concurso expressivo do próprio Estado nacional); políticas sociais universais que assegurem o acesso a serviços sociais básicos e ampliem a cidadania; requer também que se consolidem e preservem-se direitos sindicais e trabalhistas; e requer uma gestão macroeconômica voltada para criar um ambiente favorável à redução continuada das desigualdades.

Entretanto, no governo Temer, todos esses pressupostos estão sendo aviltados. A começar pela democracia, que parece ser um corpo estranho ao capitalismo brasileiro (menos de 50 anos de democracia, e interrompidos, em mais de 500 anos de história). O último ciclo democrático, inaugurado em 1988, começou agora a ser dizimado. Em vez de fortalecer o Estado, o objetivo de Temer é “privatizar tudo o que for preciso” na infraestrutura econômica e na área social.

A cidadania social também parece ser corpo estranho ao capitalismo brasileiro, que não tolera sequer conquistas marginais de direitos fundamentais. Em vez de consolidar os direitos sociais conquistados em 1988, o objetivo é destruir o que ainda restou do Estado Social e implantar o Estado Mínimo. Nesse particular, os ideólogos liberais tiveram êxito ao induzir um “consenso” segundo o qual o ajuste fiscal requereria a revisão do “pacto social da redemocratização”. Argumentam que os gastos “obrigatórios” (previdência social, assistência social, saúde, educação, seguro-desemprego) têm crescido num ritmo que compromete as metas fiscais. Estão dizendo que as demandas sociais da democracia não cabem no PIB. Não escrevem uma linha sequer sobre gastos com juros, por exemplo. Mas decretam a necessidade de interditar a cidadania social inaugurada pela Carta de 1988. No caso dos direitos sindicais e trabalhistas, os retrocessos nos levam de volta para o início do século 20 (fim da regra de valorização do salário mínimo; prevalência do “negociado sobre o legislado”; e terceirização sem limite, que leva à precarização das relações de trabalho, por exemplo).

Na gestão macroeconômica, há o reforço das políticas de austeridade que fracassaram na Europa pós-crise de 2008, cujo propósito não é o crescimento e o bem estar social, mas preservar a riqueza financeira. Diversos dispositivos para turbinar o “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, superávit fiscal e regime de metas de inflação) estão tramitando no Congresso Nacional (dentre outras, autonomia jurídica para o Banco Central e a criação de uma Autoridade Fiscal Independente, por exemplo).

O reforço do “tripé” é incompatível com o crescimento, geração de empregos e ampliação da cidadania. Recentemente, um professor de Oxford afirmou que “não é nenhum exagero dizer que austeridade mata”. O próprio papa Francisco, referindo-se a políticas de austeridade, também sentenciou que “esta economia mata”. A austeridade econômica é desacreditada inclusive por setores do establishment internacional. Expressões como “estagnação secular” e “nova mediocridade” passaram a ser utilizadas por órgãos como o FMI e Banco Mundial para sinalizar os riscos do baixo crescimento associado à “explosão da desigualdade”. Na semana passada, três economistas do FMI alertaram que “em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura”. E apontam que cortes de gastos do governo, privatização, livre comércio e abertura de capital podem ter custos significativos em termos de maior desigualdade. Mas aqui, a “equipe econômica dos sonhos” (dos detentores da riqueza?), na contramão do mundo, vai aprofundar ainda mais a gestão ortodoxa.

Em suma, com Temer, estamos assistindo ao impeachment do processo civilizatório. Todos os instrumentos necessários para o desenvolvimento econômico e social estão sendo destruídos. O golpe contra a democracia representa oportunidade histórica para aprofundar radicalmente a agenda liberal conservadora – projeto que foi derrotado pelo voto popular nas últimas quatro eleições.

Correio da Cidadania: Estão sendo anunciadas diversas medidas de cortes de gastos públicos, que impactarão áreas sociais. Qual é a extensão real, a seu ver, do déficit público? E como enxerga, primeiramente, as novas regras que estabelecem que despesas de um ano não possam ser maiores do que a inflação do ano anterior, ao lado da desvinculação das despesas com saúde e educação como uma proporção da receita? São medidas de fato necessárias para controlar o déficit fiscal?

Eduardo Fagnani: A crise financeira internacional de 2008 abalou a confiança, destruiu riqueza, paralisou o crédito e levou à contração da atividade em quase todo o planeta. A crise global do capitalismo, associada aos equívocos domésticos, bem como ao fim de um ciclo de expansão ancorado parcialmente no mercado interno, desaceleraram gradativamente a economia ao longo do primeiro governo de Dilma Rousseff. Mas, para os economistas liberais brasileiros, o mundo viajava em “céu de brigadeiro” e os problemas econômicos eram exclusivamente fruto do “excesso de intervenção do Estado”. O “terrorismo” econômico intensificou-se com a proximidade das eleições de 2014. Com o apoio dos meios de comunicação, criou-se um cenário de “crise terminal”. O principal argumento estava relacionado ao déficit primário de 0,6% do PIB ocorrido em 2014. Essa construção ideológica não leva em conta que entre 2002 e 2013 a relação dívida líquida/PIB reduziu-se quase à metade (de 60% para 33% do PIB); e que o Brasil foi um dos poucos países do mundo que gerou expressivos superávits primários (em média, cerca de 3% do PIB ao ano).

Os países desenvolvidos e alguns emergentes incorreram em expressivos déficits primários durante o período 2009-2014. Nos casos dos EUA, Japão, Inglaterra e Índia, por exemplo, o déficit primário anual médio nessa quadra atingiu, respectivamente, -7%, -8,6%, -5,8% e -3,6% do PIB. Nos países mais duramente afetados pela crise de 2008 (Irlanda, Portugal, Espanha e Grécia, por exemplo), os patamares são dramaticamente superiores. Se um país que gerou superávit fiscal por mais de uma década e, num único ano, apresentou déficit primário de apenas 0,6% do PIB, está em “crise terminal” e imerso em dramática “irresponsabilidade fiscal”, o que dizer de países que desde 2009 apresentam déficits primários elevadíssimos (EUA, Japão, Canadá, Reino Unido, Portugal, Irlanda, Espanha, Grécia e Índia, por exemplo)? Qual o problema de haver déficit primário de cerca de 1% ou 2% do PIB ao ano, por exemplo, durante um curto período, para enfrentar e superar o final de um ciclo econômico, sem perder a perspectiva do longo prazo?

O fato grave é que, num contexto em que a comunicação do governo Dilma optou por não disputar ideias, não enfrentar o debate e sequer defendeu as suas ações, a narrativa liberal passou a ser hegemônica junto à opinião pública. O próprio governo alterou a sua rota e cometeu “haraquiri” após a vitória eleitoral, ao ceder às pressões do mercado, adotar o projeto derrotado nas urnas e colocar no Ministério da Fazenda um dos porta-vozes do “terrorismo econômico”. O atual funcionário do FMI fez seu serviço, colocando o país, que não estava em crise severa, numa grave recessão.

O governo Temer vai duplicar a aposta de Joaquim Levy. Vende a ilusão de que sem ajuste fiscal nada será possível (baixar juros, crescer, criar emprego etc.). Como disse o professor Pedro Rossi, da Unicamp, para os liberais brasileiros o ajuste fiscal (das contas primárias, que exclui as despesas financeiras) transformou-se numa espécie de Posto Ipiranga. Essa centralidade equivocada não é técnica nem é neutra. Ela serve de justificativa para destruir o Estado Social e implantar o Estado Mínimo liberal. “Não há alternativas”, voltam a sentenciar, a não ser ampliar as severas restrições ao gasto social que estão em curso.

A ampliação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) de 20% para 30%, recém-aprovada pelo Congresso, alastrou a captura de recursos que a Constituição atrelava ao financiamento da Seguridade Social e da Educação. Em breve, outras mudanças constitucionais que visam acabar com a vinculação de recursos fiscais para Saúde e Educação serão enviadas para o Congresso. Mais grave é a Proposta de Emenda à Constituição PEC 241/16 que congela gastos públicos por 20 anos. Chamada de “Novo Regime Fiscal”, a PEC limita as despesas primárias da União aos gastos do ano anterior corrigidos pela inflação. Estudos realizados por especialistas apontam que, se for adotada essa PEC, em dez anos haverá redução de gastos superiores a 40% em áreas como saúde, educação e previdência.

O dito “Novo Regime Fiscal” desestrutura por completo o Estado Social. Se vier a ser aprovado e cumprido, inviabilizará a vinculação de recursos (educação e saúde) e o atrelamento do piso dos benefícios ao salário mínimo (Previdência e Assistência Social). Na renegociação das dívidas com os governos estaduais, o governo federal impôs o teto de gastos para estes entes federativos, o que também afetará essas áreas, dado o caráter cooperativo da gestão federativa em áreas como educação, saúde e assistência social.

Correio da Cidadania: Por que seria tão brutal o impacto nas áreas sociais, conforme os números apresentados aqui?

Eduardo Fagnani: Um corte brutal de gastos estimados em mais de 40% em dez anos desarticulará ainda mais as ações dos governos federal, estaduais e municipais em tais áreas. Eis um dos “cavalos de Troia” para impor o Estado Mínimo: políticas pobres dirigidas somente para os pobres definidos pelo establishment internacional (o indivíduo que ganha menos de um ou dois dólares por dia). O restante da população (os “não pobres”) que comprem serviços sociais no “mercado”. O propósito é desestruturar o Estado Social e impor o Estado Mínimo liberal.

Com o fim da vinculação de recursos para a educação, retrocederemos ao início dos anos 1930. Como se sabe, a Constituição de 1934 introduziu a obrigatoriedade de União, estados e municípios aplicarem percentuais mínimos das receitas de impostos em educação. Esse dispositivo foi excluído da Carta de 1937 e foi reincorporado na Constituição de 1946. O regime militar manteve a obrigatoriedade apenas para os municípios. Posteriormente, a Constituição de 1988 restabeleceu o mecanismo.

No caso da Saúde, voltaremos ao chamado “buraco negro” do financiamento do SUS vivido no início dos anos de 1990, quando o governo Itamar Franco decidiu utilizar integralmente as contribuições de empregados e empregadores sobre a folha de salários para cobrir os benefícios previdenciários. A subtração dessa base financeira vigente desde a ditadura comprometeu estruturalmente o início da implantação do SUS. Este ‘buraco negro’ permaneceu até 1996, quando o Congresso Nacional aprovou a Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF).

Mas, como se sabe, uma vez aprovada como contribuição “vinculada” ao SUS, a área econômica do governo FHC passou a utilizar a CPMF segundo as conveniências da gestão das contas públicas. Nesse cenário, ainda em meados dos anos 90, parlamentares ligados ao movimento sanitário apresentaram proposta de Emenda Constitucional que vinculava recursos à saúde. Após longa tramitação, somente em 2002 foi aprovada a Emenda Constitucional n. 29/2002 que estabeleceu vinculação dos orçamentos nos três entes federativos. Agora, querem enterrar essa emenda e restabelecer o “buraco negro”.

Correio da Cidadania: Outra medida que vem sendo defendida é a mudança no regime geral da Previdência, com aumento de idade mínima e desvinculação do reajuste das aposentadorias do ajuste do salário mínimo. Você poderia comentar quais são as medidas que estão sendo estudadas e qual a avaliação que faz sobre elas?

Eduardo Fagnani: Somos um dos países mais desiguais do planeta e seremos campeões mundiais em exigências para aposentadoria. Entre as medidas ensaiadas está a desvinculação do reajuste dos benefícios ao piso do salário mínimo. Revisitaremos práticas da ditadura militar, quando o governo corrigia os benefícios previdenciários abaixo da inflação, o que corroía sistematicamente o poder de compra dos aposentados. Para enfrentar essa injustiça, os constituintes de 1988 instituíram a exigência de que nenhum benefício seria inferior ao piso do salário mínimo. Com a reforma Temer-Meirelles, os reajustes da Previdência voltarão a ser corrigidos pela inflação ou por um índice arbitrário fixado pela área econômica, que certamente será inferior à inflação. Em poucos anos, o poder de compra dos aposentados pode regredir significativamente. Como consequência, os gastos da Previdência serão reduzidos e recapturados para a gestão da dívida pública.

Outro item da reforma Temer-Meirelles é exigir para todos os tipos de aposentadoria a idade mínima de 65 anos e 35 anos de contribuição. Essa regra se aplicaria às mulheres – que, atualmente se aposentam com 60 anos de idade – e para a previdência rural – que, hoje, exige idade mínima de 60/55 anos (homem/mulher). A visão fiscalista não considera a especificidade da inserção da mulher na sociedade e no mercado de trabalho, nem as enormes heterogeneidades da zona rural brasileira. Como se sabe, mais de 70% da pobreza extrema está situada na zona rural do Nordeste. Temer-Meirelles querem aplicar àquela zona rural nordestina o mesmo padrão de idade que é exigido hoje na Dinamarca.

Também existe a intenção de transformar a Previdência Rural em benefício assistencial, com a intenção de fixar o valor desse benefício abaixo do piso do salário mínimo e sem regras definidas para a correção monetária. O mesmo deve acontecer com um benefício da assistência social, o Benefício de Prestação Continuada, que atende 4 milhões de famílias cuja renda familiar per capita é inferior a ¼ de salário mínimo.

A reforma Temer-Meirelles parece não respeitar sequer os direitos adquiridos. O ministro da Fazenda e da Previdência afirmou que direito adquirido seria “um conceito impreciso”, sinalizando que seria necessário incluir na reforma os contribuintes que já estão no mercado de trabalho.

Correio da Cidadania: Como encara os argumentos, inclusive de alguns setores progressistas, que de fato veem um problema explosivo à frente com respeito às contas da Previdência, em face do envelhecimento da população do Brasil, que já se faz evidente?

Eduardo Fagnani: A experiência de países desenvolvidos revela que a reforma da Previdência tem por objetivo aperfeiçoar o sistema para enfrentar as transformações demográficas. Nesses países, os direitos adquiridos são preservados. O acréscimo na idade para a aposentadoria é gradual ou passa a valer para as novas gerações que estão entrando no mercado de trabalho. Em algumas nações, a idade de 67 anos será implantada num horizonte temporal mais amplo.

Na Alemanha, por exemplo, a idade mínima para se aposentar será gradualmente aumentada de 65 para 67 anos até 2029. Seguindo a experiência internacional, o Brasil também deve promover mudanças graduais no sistema de pensões para ajustar-se ao envelhecimento da população.

É preciso alertar, no entanto, que reconhecer a necessidade de reformas não implica aceitar o fatalismo demográfico muito difundido pelos idealizadores da reforma. Por outro lado, os ajustes devem ser fruto de amplo debate entre trabalhadores, empresários e governos, sempre com o objetivo de buscar aperfeiçoar o sistema. Nesse processo, não se pode perder de vista o fato de que a Previdência Social é um dos pilares da proteção social brasileira. Ela beneficia direta e indiretamente mais de 90 milhões de pessoas (uma família com três membros) e tem efeitos importantes na redução da pobreza e da desigualdade social.

Entretanto, a reforma Temer-Meirelles não considera a questão social e não tem por objetivo aperfeiçoar o sistema. O propósito, unicamente fiscalista, é destruir o legado de 1988, para recapturar cerca de 8% do PIB conquistado pelos movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980.

Ao colocar a Previdência dentro do Ministério da Fazenda – fato inédito no mundo –, os detentores da riqueza deixam claro que não precisam mais de intermediários. Não há necessidade sequer de ministro da Previdência. A própria Fazenda vai completar o serviço que tentam fazer desde 1989. Trata-se aí de disputar recursos. O capital quer de volta a parcela capturada pela sociedade há trinta anos.

É paradoxal que a reforma da Previdência seja vendida como “solução” para os problemas fiscais de curto prazo. Se o objetivo for aperfeiçoar o sistema, ela somente terá impactos fiscais no longo prazo. Mas se o objetivo for obter efeitos imediatos, nesse caso deve-se prever radicalismo predatório e total desrespeito aos direitos adquiridos.

Correio da Cidadania: O que você poderia comentar também sobre a Previdência dos servidores públicos, no que diz respeito aos argumentos que vêm sendo arrolados para a sua reforma e o sentido que possuem momento atual?

Eduardo Fagnani: A Reforma da Previdência do Setor Público Federal já foi feita. Ela foi iniciada no Governo FHC (EC 20/1980); começou a ser regulamentada no início do governo Lula (PEC 41/2003); e foi aprovada no governo Dilma Rousseff (Lei 12.618/2012), com validade para os servidores que ingressarem no serviço público após a aprovação da lei que introduziu o “regime de capitalização” baseado na “contribuição definida”. As regras são exigentes, se se considera o quadro internacional (65 anos de idade e 35 anos de contribuição). Os efeitos na redução dos gastos serão sentidos daqui a 30 anos. O que mais eles querem fazer? Aumentar a exigência de idade para 67 anos? Também seremos campeões mundiais nesta categoria?

Correio da Cidadania: Diante da situação em que está o país, quais seriam as medidas econômicas mais adequadas, a seu ver, para combater e contornar o déficit fiscal e ao mesmo tempo enfrentar a crise econômica, de forma a começar a inverter a curva recessiva?

Eduardo Fagnani: A medida principal e mais eficaz é fazer crescer o Brasil, fazer crescer a economia. Com a economia em queda livre, é impossível ter êxito em algum ajuste fiscal. O declínio da arrecadação é sistematicamente superior ao corte das despesas. O crescimento da economia exige ampliação de investimentos e reforço do papel dos bancos públicos nos financiamentos de longo prazo. A ampliação do déficit no curto prazo seria compensada com o crescimento das receitas públicas no médio prazo. Mas, aqui, as tradicionais políticas anticíclicas passaram a ser criminalizadas. O “impeachment de Keynes”, ressaltado pelo Senador Lindbergh Faria (PT-RJ), está em marcha.

O crescimento econômico requer, pelo menos, tornar flexíveis os fundamentos doutrinários consubstanciados no tripé macroeconômico, seguindo-se a vasta experiência internacional. “Bandas” para a meta de superávit fiscal, excluir investimentos do cálculo da meta do superávit primário, ampliar o ano-calendário do Regime de Metas de Inflação, realizar o cálculo da inflação pelo núcleo de preços (proteção contra choques conjunturais de oferta), estabelecer duplo mandato do banco central (estabilidade de preços e emprego) e controle do câmbio são exemplos de medidas adotadas por diversos países, antes mesmo da crise financeira de 2008. Aqui, caminhamos na direção contrária. Temer-Meirelles querem aprofundar a gestão ortodoxa do tripé.

O crescimento e o ajuste fiscal também requerem redução da taxa de juros que transferiu para os detentores da riqueza R$ 500 bilhões em 2015 (equivalente a mais de 50 anos de gastos federais em saneamento, por exemplo). Não existem justificativas técnicas para que o Brasil (com dívida bruta de 66,2% do PIB) pague 8,5% de juros, enquanto que a Grécia, literalmente quebrada, com dívida bruta/PIB quase três vezes superior (197% do PIB), pague menos da metade (4,2% do PIB). Por que não impõem tetos para despesas com juros?

O ajuste fiscal pode ser obtido pela radical revisão da política de isenções fiscais para setores econômicos selecionados e famílias de alta renda. Essa política retira R$ 280 bilhões anuais dos cofres da União. Isso significa que anualmente o governo federal simplesmente abre mão de arrecadar 25% das suas receitas.

O combate ao déficit fiscal também requer fortalecer o Estado para combater a sonegação de impostos que, segundo estudos do Banco Mundial, atinge 14% do PIB (cerca de R$ 800 bilhões anuais deixam de ser arrecadados). Na mesma perspectiva, coloca-se a necessidade de cobrar a dívida ativa, cujo estoque supera a cifra de um trilhão de reais. Estudos recentes revelam que apenas 135 pessoas físicas e jurídicas devem mais de R$ 370 bilhões ao fisco.

Finalmente, o ajuste fiscal pode ser viabilizado mediante uma reforma tributária que incida sobre lucros, dividendos, heranças e patrimônio. Estudos realizados por Rodrigo Orair e Sergio Gobetti, pesquisadores do IPEA, revelam que 71 mil cidadãos, cujos rendimentos atingiram R$ 297,93 bilhões em 2013 (renda per capita de R$ 4,170 milhões por ano), pagaram de impostos apenas 6,51% de sua renda. Isto ocorre porque 65,8% da renda total são rendimentos considerados isentos e não tributáveis pela legislação brasileira do Imposto de Renda (IR), como é o caso dos lucros e dividendos, por exemplo.

Esse grupo de contribuintes, que representa 0,3% do total de contribuintes do IR (0,05% da população economicamente ativa), foi responsável por 14% de toda a renda declarada pelos contribuintes ao fisco (mais de 26 milhões de pessoas apresentaram declaração de imposto de renda no ano considerado).

Portanto, do ponto de vista técnico, existem alternativas. Mas a questão é política e reflete a correlação de forças favoráveis aos detentores da riqueza, dentro e fora do governo.

Correio da Cidadania: O que se pode esperar das medidas do governo como resposta à crise que continua a paralisar o país e provocar desemprego? Como enxerga a economia do país a curto e médio prazos?

Eduardo Fagnani: O objetivo não é crescer e gerar emprego. Isso é conversa para boi dormir. O objetivo é “colocar a inflação no centro da meta” pela manutenção das taxas de juros elevadas e pelo aprofundamento do ajuste fiscal (corte de despesas não financeiras). Isso limita o crescimento, aprofunda o desemprego e a queda da renda do trabalho. Por sua vez, a degradação do mercado de trabalho é funcional para combater a inflação. Desde 2013, diversos economistas liberais alertam sobre a dificuldade de reduzir a inflação com pleno emprego. Era preciso demitir, profetizavam.

Mas a recessão tem outras serventias. Desde 2015, ela tem sido eficaz para realimentar a crise política e insuflar as ações golpistas e antidemocráticas em curso. Ademais, ela é funcional para rebaixar os custos trabalhistas, liquidar em poucos anos o legado social dos governos petistas, construído por mais de uma década, criminalizar quaisquer políticas distributivas (declaradas “populistas”, “irresponsáveis” e “bolivarianas”) e, por consequência, todos os partidos políticos e movimentos de esquerda.

A recessão também é funcional para implantar o Estado Mínimo liberal, pois “não há alternativa” a não ser o severo corte de gastos “obrigatórios” nas políticas sociais universais, liquidando com a ordem social instituída pela Constituição de 1988, uma oportunidade para que os rentistas concluam, em poucos anos, o serviço que vêm tentando fazer desde a Assembleia Nacional Constituinte dos anos de 1980. Nessa linha, não se recomenda crescimento. Por que crescer? Talvez se observe algum esforço socialmente benéfico a partir do final de 2017, para tentar ganhar as eleições de 2018.