Vanessa Maria de Castro e Magda de Lima Lúcio
Foi com perplexidade que recebemos a notícia de que o STF solicitou à Presidenta, Sra. Dilma Roussef, esclarecimentos sobre os motivos de denominar o impeachment de golpe.
A sensação que se tem é que o Brasil vem inovando em muitas teses e propostas jurídicas e a inauguração teve lugar, com a tese do domínio de fato. Criou-se quase que um hábito da condenação sem provas.
Como membros da academia sabemos o limite entre a teoria, a verdade dos fatos e a realidade, assim como ela se apresenta. Por isso o tratamento metodológico é o trunfo para conferir acuidade aos temas tratados.
Passemos então aos fatos: uma cidadã brasileira, democrática e legalmente investida da maior autoridade do país, foi retirada de seu cargo mediante uma série de procedimentos “técnicos”, donde o senso comum lê como “neutros” e apolíticos, culminando com a apreciação do pedido de afastamento pelo Congresso Nacional.
Essa apreciação foi notoriamente eivada por questões de todas as ordens e naturezas, sejam técnicas, políticas, jurídicas ou outras. No fim o que se pretendia era implementar um projeto de nação que por quatro vezes foi derrotado nas urnas.
Ao utilizar reiteradamente o argumento de ter sido vítima de um golpe a Presidenta expressou e expressa um sentimento compartilhado por brasileiras e brasileiros, e por cidadãos de diversos países. Denuncia ainda que seu projeto de governo, apresentado ao Congresso, como presidenta eleita em 2014, como manda a Constituição, não tem sido executado. Seja por sabotagem, por “emboladas técnicas”, ou outros estratagemas, diuturnamente urdidos pelos derrotados, democraticamente, e seus aliados.
O boicote ao governo Dilma, sincronizado e sistêmico, realizado pelo Congresso Nacional, teve como protagonistas os mesmos do show de horrores de 17 de abril, dia que será devidamente lembrado como o dia do escárnio à população e à democracia brasileira.
Por entender que sofreu um golpe a Presidenta Dilma deixou evidente que não compactua com a ocupação do espaço da política pela lógica dos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei.
Não existiu uma lógica de defesa da sociedade e da Nação nos discursos proferidos em 17 de abril, pelo contrário, se ouviu discursos de cunho privado – em defesa da família, da religão e odes ao machismo e evocação à violência, imperaram nos discursos entusiasmados dos “nobres parlamentares”.
18 de abril foi o dia da ressaca. Uma ressaca moral se fez ressoar em solo brasileiro. As máscaras caíram e o rei ficou nu perante a todas e todos. O povo não se sentiu representado por aqueles que usaram a tribuna e “vomitaram” palavras de escárnio à Presidenta eleita.
A Presidenta é mulher, trabalhadora, divorciada, mãe e avó, mestre em economia. Essas características reunidas representam um ponto totalmente fora da curva em relação aos donos da política brasileira que, por seu turno, são em sua maioria homens brancos, com pouquíssima escolaridade e muitíssimo dinheiro.
A baixa escolaridade sempre causou espécie quando se trata da análise do perfil dos políticos brasileiros. Neste sentido, fazer política no Brasil é algo que se aprende no almoço de domingo, é algo de família. Um legado, passado de pai para filho. A memória do Brasil Colônia ecoa a todo instante nos plenários do Congresso Nacional: “nobre colega”, “nobre deputado ou “nobre senador”.
O machismo e o preconceito contra a mulher na política é personificado, com toda veemência, pelos conservadores, na figura da Presidenta Dilma Roussef. Não houve por parte do STF nenhum pronunciamento quando a Presidenta eleita foi vilmente humilhada em sua condição de mulher, não precisamos aqui repetir todas as palavras de baixo calão contidas nos cartazes, faixas e panfletos misóginos,espalhados por todo país, relacionados à figura da Presidenta. Não se viu solidariedade dos homens e mulheres que ocuparam tribunas e espaços públicos durante ou depois desses acontecimentos. Pelo contrário.
O Brasil se embruteceu, o Brasil não soube respeitar uma mulher na Presidência da República e ao desrespeitar a mulher, o cargo foi vilipendiado. E o Brasil assistiu, com esparsas demonstrações contrárias, toda a força da misoginia e da brutalidade do masculino contra o feminino.
Esse Brasil adoentado, brutalizado, misógino e feminicida não sossegou até criar o estratagema perfeito: a retirada “dela”, a mulher, Presidenta de seu cargo.
O ministério masculino, branco e rico do presidente em exercício aborda de forma única o que seria legalidade, progresso e unificação nacional. Os homens do poder estão satisfeitos e recebem em seus gabinetes, com sorrisos largos, machistas e misóginos, cúmplices da retirada da Presidenta de seu cargo.
É difícil acreditar que somente em duas semanas tantas vezes o Brasil adoentado, se deparou com um Brasil envergonhado. O presidente sem voto, do governo ilegítimo, está açoitado por diversas gravações de seus auxiliares mais próximos. As gravações revelam o que se dizia em diversos jornais e veículos de comunicação alternativos à mídia convencional: era preciso barrar a operação Lava Jato, a qualquer custo.
Esse movimento é contraditório: em um primeiro momento a Lava Jato foi usada para destruir o governo Dilma; porém, agora, ela precisa ser desacreditada e destruída para que o governo em exercício possa salvar a própria pele, como ficou evidenciado nas gravações divulgadas durante a semana. Somente agora a população brasileira compreende o porquê do governo interino se autodenominar de salvação nacional, os governantes precisam se salvar.
O apoio das mídias convencionais ao golpe foi inconteste. O monopólio da mídia brasileira somente pode ser comparado à mídia em um estado ditatorial, pois em uma democracia não é possível tal concentração, este é um dos graves problemas no Brasil contemporâneo.
A população que apoiou o golpe está agora perdida, não consegue proferir um argumento coerente. Balbucia frases sem nexo ou sentido. Não quer ou não pode assumir que existe um grupo que precisa do golpe para continuar sua sina de usurpadores da nação brasileira. Esse grupo está envolvido com o mais profundo e longevo sistema de corrupção no Brasil.
O acusador agora é réu.
Voltemos à questão da palavra golpe. Por que a Presidenta é questionada juridicamente sobre o uso de uma palavra?
Ficamos muito assustadas e perplexas com esta atitude da Suprema Corte. Ao indagar à Presidenta o porquê de utilizar tal palavra, imaginamos o que pode ocorrer com os demais cidadãos ao utilizarem o vernáculo.
Depois de tudo que fizeram à Presidenta reeleita, com mais de 54 milhões de votos, lhe é questionado a condição de nomear o que lhe ocorreu. Talvez ela seja a única capaz de responder juridicamente e politicamente pelo cargo para o qual foi eleita, de Presidenta do Brasil. Cargo esse que foi afastada por intermédio de uma justificativa profundamente frágil.
Ela nomeou de Golpe, poderia ter dito outra palavra. Um Golpe, neste caso, consiste na retirada de forma “ilegal”, por parte de um órgão do Estado, da ordem constitucional legítima. Sim, a Presidenta entende que a retirada do seu cargo mesmo mediante a força da lei, foi ilegítima. Este é o sentimento da Presidenta e de uma parcela considerável da população brasileira.
Mas a Suprema Corte quer saber o porquê da Presidenta denominar o afastamento de golpe.
Quando a Presidenta vem a público e fala que sofreu um golpe, ela comunica que a democracia brasileira está em risco. Ao aceitar o golpe o Brasil abriu mão da democracia e talvez por isso, permitiu instaurar não um governo provisório, mas sim, um governo de cunho autoritário sem respaldo para representar o projeto que está sendo implantado na nação Isso sim deveria ser objeto de atenção da Suprema Corte.
Esta interpelação demonstra o autoritarismo do Brasil adoentado. Não se pode questionar o que se passou, nem aquela que foi difamada publicamente reiteradas vezes pelos grupos apoiadores do golpe. Deve sair em silêncio e assim permanecer até obter autorização para proferir algo? Ou antes de proferir algo deve consultar a Suprema Corte sobre conteúdo, forma e pertinência?
Mesmo diante de toda ambiguidade e complexidade do contexto, a Suprema Corte quer saber o porquê de a Presidenta se referir a um processo, com pinceladas de legitimidade, de golpe.
Mas reafirmamos que parte significativa da sociedade brasileira, da imprensa e dos organismos internacionais, de intelectuais e artistas, não hesitam em repetir: é golpe.
A Presidenta Dilma não precisa ter medo de falar sobre o que aconteceu na política brasileira a partir de 2014. Primeiro trata-se de um golpe contra ela, pessoalmente. Contra uma mulher. E em segundo, contra a jovem democracia brasileira. Após todos os feitos querem silenciar, querem obstar a Presidenta de se pronunciar, em outras, palavras, querem cercear sua liberdade de expressão.
Não reconhecemos o governo provisório, porque não nos sentimos respeitadas e respaldadas pelo voto dos deputados e senadores quando da admissibilidade do processo de impeachment.
A espinha dorsal da democracia brasileira foi duplamente quebrada pelos senhores deputados e senadores, e reiterada pela solicitação da Suprema Corte.
Ao tentar silenciar a Presidenta Dilma, as instituições praticam algo que é secular, intentam silenciar a nação, na medida em que tentam obstar a liberdade de pensamento e expressão, uma garantia constitucional.
Silenciar a nação hoje não é fácil e Dilma é a porta-voz ao denunciar o que ocorre internamente no Brasil.
A Democracia, por mais falha, é um bem maior que compartilhamos. O povo nas ruas, contra as declarações de membros do Congresso Nacional, do STF e de outras instituições, é a demonstração do descompasso entre os poderes instituídos e a sociedade brasileira. No mínimo, os membros destas instituições deveriam estranhar tamanho descontentamento, no entanto, ao que parece, preferem aprimorar e colocar em ação mecanismos que silenciam, desrespeitam e reafirmam o que os homens da política fizeram ao longo de séculos neste país: governar para si e para os seus, ou seja, para os homens ricos e brancos.