Artigo 19 | Em defesa da assistência social pública, contra o desmonte da seguridade social

Ieda Maria Nobre de Castro (1)

No contexto conjuntural de um golpe político em curso no país, preocupa-nos a engenharia que o governo interino vem adotando para usurpar direitos de cidadania já inscritos na Constituição Federal e destruir todas as marcas deixadas pelos governos democráticos, legitimamente eleitos pela maioria do povo brasileiro. Não satisfeitos com a quebra das regras democráticas, o governo golpista procura, por meio de iniciativas engenhosas, impedir o acesso de milhões de brasileiros e brasileiras ao direito de serem protegidos pelo Estado.

É inegável que a seguridade social pública, conquista histórica pós-constituição federal de 1988, tem ganhado visibilidade nos governos democráticos instalados no país desde 2004. A conjugação de benefícios – em forma de compensações monetárias ou não, de caráter contributivo previstos na Previdência Social; mesmos os não contributivos inscritos na Assistência Social – juntamente com os serviços de caráter público e universais disponibilizados em forma de ações continuadas para atender as necessidades básicas do povo brasileiro, tem se configurado um padrão de proteção social essencial no enfrentamento à fome e à pobreza no país.

Nesse arranjo, vários sistemas de proteção social emergiram da pactuação entre os entes federados – União, Distrito Federal, estados e municípios – como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), Sistema Único de Saúde (SUS), sistema educacional, sistema habitacional, sistema previdenciário, sistema de segurança alimentar e tantos outros que, em seu conjunto, proporcionam um determinado padrão de bem estar público para cada cidadão e cidadã, em conformidade com suas necessidades.

O sistema específico de assistência social – SUAS – criado na última década, presente nos 5.565 municípios, vem garantindo que mais de 120 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade social ou em situação de abandono (idosos, pessoas com deficiência, população em situação de rua, mulheres, crianças, comunidades tradicionais, dentre tantos outros segmentos) em territórios urbanos e rurais, excluídas de outros sistemas protetivos, tenham acesso aos cuidados públicos do Estado, principalmente em situações de desamparo, assegurando-lhes acolhida, convívio e acesso à renda.

São 30 milhões de famílias – constituídas essencialmente por mulheres chefes de família – que, por meio de uma rede de serviços de assistência social, têm à sua disposição um suporte mínimo que as auxiliam na tarefa de cuidar e prover a si mesmo e aos demais membros de sua família.

Mais de 13 milhões de famílias brasileiras recebem complementação de renda por meio do Programa Bolsa Família e mais de 04 milhões de pessoas, entre idosos e deficientes, que não tem como prover o seu sustento ou dos membros de sua família, acessam a renda exclusivamente por meio do Benefício de Prestação Continuada, no valor de 01 Salário Mínimo.

Outras famílias, em situação de desamparo, vítimas de violência ou mesmo crianças e adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas encontram na rede de serviços da assistência social, composta por 10 mil unidades públicas estatais (CRAS, CREAS, CENTRO POP, CENTRO DIA, ABRIGOS, centros de convivência) e mais 16 mil entidades de assistência social, espalhadas em todo o país, o acesso a serviços de acolhida e convívio por equipes multiprofissionais que lhes prestam a devida atenção.

Trata-se de um sistema nacional, complexo, constituído ao mesmo tempo de serviços e benefícios, financiado por recursos públicos do governo federal, Distrito Federal, estados e municípios, com rede pública e privada, capaz de identificar vulnerabilidades sociais e riscos pessoais em cada lugar deste país, cuja regulação e coordenação compete ao governo central, exigindo uma sólida estrutura organizacional, profissionalizada e devidamente qualificada.

Numa sociedade desigual, assegurar a responsabilidade pública pela Assistência Social é um princípio fundante para a construção de um pacto civilizatório centrado na ética e solidariedade entre os povos. E, considerando, que desde 1988 ainda não conseguimos dar solidez a uma seguridade social pública capaz de promover pleno bem estar a todos os cidadãos e cidadãs, é urgente que a sociedade se mobilize para que pelo menos não se desmonte o que foi construído até aqui.

É preciso estar em alerta, pois como é do conhecimento de todos, desde que o governo interino do vice-presidente Michel Temer assumiu, de forma avassaladora, vem procurando eliminar da vida concreta e imaginária das pessoas qualquer marca do governo legitimamente eleito no último pleito com mais de 54 milhões de votos. E, em sua “arquitetura da destruição” (2), procura impor ideias, sem qualquer base legítima, na Cultura, nos Direitos Humanos, na Educação, na Saúde, no Desenvolvimento Agrário e nas políticas que procuram dar respostas à desproteção social e à insegurança alimentar de milhões de famílias em todo o país, sintetizadas no MINISTÉRIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME.

O maior legado dos governos legitimamente eleitos encontra-se exatamente nesse ministério que, assumindo sua função de coordenação nacional da Política Nacional de Assistência Social, estruturada no sistema público de assistência social – SUAS – e do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN – conjugou ações de integração entre benefícios de transferência de renda e serviços públicos, promovendo a erradicação da fome, redução da pobreza e eliminação do trabalho infantil entre crianças com menos de 14 anos.

Destaque-se, ainda, que no exercício de suas finalidades públicas e legais, o MDS opera os recursos da seguridade social destinados ao custeio dos benefícios e serviços de proteção socioassistencial, de caráter não contributivo, portanto, despesas que integram a função 08 – ASSISTËNCIA SOCIAL, não podendo ser desviados para outras finalidades como despesas com desenvolvimento agrário e/ou gestão de benefícios previdenciários.

O MDS, na condição de órgão gestor nacional, compartilha sua responsabilidade com Distrito Federal, estados e municípios, adotando o cadastro único de programas sociais como principal instrumento de identificação das necessidades básicas (condições de moradia, escolaridade, empregabilidade, composição familiar e outras vulnerabilidades) em cada localidade e em todos os municípios brasileiros. Hoje, pelo menos 60% das vulnerabilidades sociais são identificadas por meio do Cadastro Único.

Neste caso, o cadastro não se limita à concessão de benefícios de transferência de renda, mas se constitui numa ferramenta, hoje sob a gestão municipal, que ilumina os planejamentos locais, permitindo que se organize serviços públicos de acordo com as necessidades locais, em cada território de vulnerabilidade onde se localiza um Centro de Referência de Assistência Social – CRAS.

É importante reafirmar a importância dos CRAS, unidades públicas estatais, situados em locais de maior vulnerabilidade urbana ou rural que oferece, por meio de assistentes sociais, psicólogos, educadores, dentre outros, apoio e suporte às famílias, principalmente mulheres na sua função de prover e cuidar dos membros da família. Do mesmo modo, os Centros de Referência Especializados de Assistência social (CREAS), são unidades públicas estatais destinadas a proteger em situações de violência doméstica e outras violações de direito, bem como garantir às crianças e adolescentes em conflito com a lei, a cumprirem com dignidade e o devido acompanhamento as medidas socioeducativas em meio aberto.

Enfim, as políticas sociais que o MDS coordena são municipalizadas, fundadas em pactos republicanos com competências e atribuições bem definidas entre os entes federados. É, portanto, um órgão que trata de sistemas complexos, que operam serviços e benefícios do campo da seguridade social, não se confundindo, portanto, com a Previdência ou a Saúde. Sua finalidade específica é dar materialidade à Assistência Social como direito, não contributiva e de natureza distributiva, conforme prevê a CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

Nesse contexto, preocupa-nos os arranjos que o presidente interino vem propondo para a pasta, alterando seu desenho para dar conta de outras políticas setoriais, distorcendo, inclusive, suas funções previstas constitucionalmente.

Desmembrar as funções da previdência social, trazendo para o MDS as agências do INSS é um claro anúncio de desmonte da seguridade social brasileira. Quando, na Constituição Federal, a sociedade civil se organizou para inscrever o direito à seguridade social no Brasil, a intenção era criar um patamar básico de proteção social, que envolvesse benefícios de natureza contributiva, como o é a previdência pública e privada, serviços universais de atenção à saúde, benefícios e serviços assistenciais de natureza não contributiva para segmentos que estivessem fora da cobertura da previdência social – pessoas com deficiência e idosos com dificuldade de assegurar seu próprio sustento e de sua família, o caso da ASSISTÊNCIA SOCIAL.

Extinguir o Ministério da Previdência Social, por si, já se coloca como a destruição do sistema previdenciário brasileiro, que exige um órgão gestor estratégico que planeje e administre o conjunto de arranjos previdenciários existentes no Brasil. Levar a receita da previdência para o Ministério da Fazenda, em si, já se constitui uma afronta aos trabalhadores e empresas brasileiras contribuintes do sistema previdenciário público. Alocar as agências do INSS na estrutura do MDS é restringir essas unidades a meros operadores de benefícios da previdência do Regime geral, ignorando seu potencial estratégico sobre principais riscos sociais do mundo do trabalho que levam à desproteção dos trabalhadores brasileiros.

Admitir que as 1.500 agências do INSS funcionem como unidades para atendimento do Bolsa Família, sendo mais eficiente que as 10 mil unidades de CRAS, CREAS e outras unidades da assistência social, é criar uma artimanha indecorosa para conter o acesso de milhões de famílias à complementação da renda familiar, como já anunciado pelo próprio governo na sua intenção de focalizar o Bolsa Família a apenas 5% das famílias mais pobres, excluindo 10 milhões de famílias.

A última pérola veio no recente anúncio de criação de uma porta de saída para o Bolsa Família. Uma porta forjada na eliminação dos pobres. A ideia do governo interino é estimular financeiramente os municípios a excluírem beneficiários, pois quanto mais pobres forem excluídos do cadastro, mais recursos o munícipio vai receber.

Na contramão do que o governo Dilma vinha fazendo ao estimular financeiramente os municípios para fazerem buscas ativas das famílias ainda não localizadas e identificadas no cadastro e que se encontram em pobreza e miséria extrema, longe dos olhos da sociedade e da atenção do Estado. Se o governo legítimo buscou alargar a proteção social pública, o governo ilegítimo busca excluir os segmentos mais vulnerabilizados do acesso amplo aos seus direitos à assistência social pública.

Do mesmo modo, é inadmissível a incorporação das funções do desenvolvimento agrário ao MDS. A questão agrária no Brasil está relacionada ao modelo de apropriação da riqueza socialmente produzida e dos arranjos produtivos no meio rural que excluem e submetem à pobreza milhares de pequenos proprietários de terra que vivem basicamente da cultura econômica da subsistência. São pequenos produtores alijados da terra ou sem condições efetivas de produção, decorrentes, principalmente, da tradicional omissão do poder público no fomento, apoio e suporte para que esses grupos possam participar ativamente da produção.

Portanto, levar essa ação do Estado para dentro do MDS é restringir a questão agrária às vulnerabilidades condicionadas pela dificuldade de convívio no meio rural e de garantia de sustento por meio de atividade agrícola em arranjos familiares. É ignorar sua finalidade de construção de alternativas sustentáveis à ocupação e propriedade da terra no meio rural.

Como podemos ver, o governo provisório, de modo arbitrário, repete a estratégia megalomaníaca utilizada por Hitler, conhecida como a “arquitetura da destruição” para impor à sociedade o receituário neoliberal de redução do Estado e usurpação de direitos historicamente conquistados, expressa em uma série de desmontes:

  1. Desmonte na lógica da seguridade social, alterando regras no acesso aos benefícios, propondo desvinculação do valor dos benefícios previdenciários e assistenciais do salário mínimo;

  1. Desmonte do órgão gestor da assistência social, aglutinando no órgão gestor da Assistência Social em todo o país, outras ações (combate à droga, desenvolvimento agrário e operação de benefícios previdenciários), alheias aos objetivos da assistência social como mecanismo de proteção em todos os ciclos de vida; amparo social à criança; maternidade; descaracterizando-a como uma política setorial com ações, inclusive, comprometendo a sua eficiência como coordenador nacional da política de assistência social;

  1. Desmonte do Bolsa Família, ignorando seu potencial estratégico de promoção de vida digna para as famílias pobres, viabilizando seu acesso a outros serviços públicos que alargam  suas oportunidades. Diminuir sua cobertura é jogar milhões de famílias à  sua  própria sorte, retornando à condição de pobreza extrema que já havia sido superada;

  1. Desmonte do BPC, vez que o acesso ao benefício já é bastante limitado, pois exige que a família tenha uma renda per capita inferior a R$220,00. Desvincular do salário mínimo é comprometer a sobrevivência de milhões de pessoas e seus dependentes, que muitas vezes só tem essa renda para o sustento da família, visto que é incompatível com a renda do trabalho.

  1. Desmonte da rede pública de atendimento da assistência social, deslocando o cadastro único e a gestão dos benefícios de transferência de renda dos territórios onde vivem as famílias para as poucas agências do INSS.

Colocar a denúncia desses desmontes da rede de proteção social, bem como a defesa intransigente de políticas sociais sedimentadas na Constituição Federal de 1988 na ordem do dia é uma tarefa urgente para todos que reconhecem os direitos sociais como conquistas históricas do povo brasileiro.

É preciso reconhecer que a organização das políticas sociais em forma de sistemas públicos descentralizados e participativos, em contraposição à adoção de programas fragmentados e pontuais – formas clássicas de enfrentamento à pobreza no Brasil – trazem para a arena política o inequívoco dever do Estado, deslocando a assistência social do campo da filantropia para a obrigação pública estatal, encravando-a definitivamente no campo dos direitos sociais.

Esse é o sentido do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Um sistema que, estruturado em princípios democráticos, organiza um conjunto de atenções reclamáveis por cada cidadão e cidadã em situação de vulnerabilidade social e riscos pessoais e sociais condicionados pela pobreza, ciclo de vida, exclusão do mundo do trabalho, deficiência ou condição feminina em uma sociedade patriarcal, machista e desigual.

1- Secretária nacional de Assistência Social no 2º. Governo Dilma Rousseff, assistente social, doutora em Política Social pela UNB.

2 – “Arquitetura da Destruição” – título de documentário sueco, que retrata as estratégicas estéticas utilizadas por Hitler para difundir suas ideias nazistas.