Formação em saúde: problemas e tendências

Mario Roberto Dal Poz, Thereza Christina Varella e Maria Ruth dos Santos | Baixe texto original no site Saúde Amanhã

Introdução

A centralidade dos recursos humanos para a implementação de sistemas de saúde vem sendo cada vez mais reafirmada por estudiosos deste campo. Estudos baseados em evidências mostram que a possibilidade de superação da dramática situação de saúde de uma parcela significativa da população mundial está associada à disponibilidade de uma relação mínima de recursos humanos por número de habitantes (OMS, 2007).

No Brasil, estudos do índice de escassez de médicos no país vêm induzindo políticas públicas de alocação de profissionais para superação das desigualdades na distribuição regional e microrregional. Estima-se que em torno de 7% dos municípios brasileiros não contam com médicos residindo em seus limites, e em torno de 25% contam com a razão de um médico para mais de 3.000 habitantes Do ponto de vista regional, observa-se que as regiões Norte e Nordeste, com 8% e 28% da população do país, concentravam no mesmo período, 4,3% e 18,2% dos médicos, respectivamente, enquanto o Sudeste, com 42% da população, concentrava 60% dos médicos (CAMPOS, MACHADO & GIRARDI, 2009)

Contudo, ações mais coordenadas entre a organização dos sistemas de saúde e as instituições de ensino superior necessitam ser implementadas para prover serviços com profissionais qualificados e em quantidade suficiente atendendo a diversidade e superando as graves desigualdades do país em relação aos indicadores de saúde. Ressalte-se ainda, que não se opera serviços com uma única categoria profissional, mas ao contrário verifica-se a exigência de um número cada vez mais diversificado de profissões para atender a complexidade do trabalho em saúde, ditadas pelas transformações tecnológicas e exigências do mundo contemporâneo.

Do ponto de vista da organização da rede de serviços pode-se estabelecer, seguindo critérios sócios culturais, um grupo de profissões nucleares (médicos, enfermeiros, dentistas e farmacêuticos) que sustentam grande parte das atribuições do sistema de atenção à saúde e possuem representação no imaginário social. Outras, em processo de consolidação de seu campo de atribuições, mesmo que regulamentadas, tanto pelo setor educacional, quanto pelos órgãos disciplinares do trabalho, ainda disputam o controle de nichos de atuação (fisioterapeuta e fisiatra, psicólogo e psiquiatra/psicanalista, nutricionista e médicos/ nutrólogos, a título de exemplo).

A saúde tem uma forte presença de profissões regulamentadas, compondo em conjunto de14 profissões no Brasil, o que não se observa em nenhum outro setor da economia. Tal regulamentação vai desde a formação, o conteúdo, o exercício profissional, a prática, com implicações diretas para a gestão dos serviços e do sistema de saúde.

Formação em Saúde: cenário de incertezas?

O processo de formação da medicina tem relação com as amplas mudanças experimentadas pela profissão nas últimas décadas, em função de avanços tecnológicos e da maneira como o conhecimento é disseminado, influenciando a formação, o mercado de trabalho, a demanda por cursos e por profissionais e a regulação do exercício profissional.

O Brasil tem um parque importante e consolidado de instituições formadoras em saúde e forma um contingente expressivo de pessoas, para um mercado de trabalho bastante largo. No caso da medicina, os 206 cursos em funcionamento no país em 2012 foram responsáveis por mais de 16.000 concluintes, por exemplo. No entanto, persiste o antigo problema da crônica desigualdade na distribuição geográfica que, no caso dos médicos, tem se acelerado em função de determinadas circunstâncias econômicas e sociais, como a globalização, a criação de um mercado global para certas profissões, a organização e estruturação de modelos técnicos assistenciais, etc.

A Enfermagem, que tem no cuidado integral ao ser humano, nas dimensões individual e coletiva o cerne da profissão, tem agregado cada vez mais uma diversidade de conhecimentos, habilidades e atitudes para atuar em áreas como a atenção, a gestão, o ensino, a pesquisa, o controle social e as especialidades, dentre outras, aumentando igualmente a responsabilidade dos profissionais para com a sociedade.

Esta profissão teve um crescimento exponencial na última década, fundamentalmente a partir da abertura de escolas privadas. Essa oferta educacional aparentemente excessiva, sem planejamento e com queda da qualidade, vem influenciando no rebaixamento de salários, na ocorrência de subemprego, com possibilidades de desemprego. Há indicações de reconfiguração de currículos da enfermagem voltados à formação de enfermeiros para atuarem na mudança do modelo de atenção a saúde dos indivíduos nos diferentes momentos do clico de vida, da família e da sociedade. Neste contexto, os processos formativos vêm se transformando, em especial na graduação, principalmente em decorrência dos processos de expansão do ensino privado, com o crescimento desordenado de escolas e cursos em todo o Brasil.

A constante inovação dos produtos e técnicas de tratamento odontológico, de clínicas e especializações, além da atuação em planejamento e execução de medidas de prevenção de doenças e promoção da saúde em sintonia com a equipe multiprofissional e interdisciplinar, vem exigindo que a formação dos cirurgiões-dentistas incorpore competências e habilidades específicas e integradas com as outras áreas, como a Medicina, Enfermagem, Farmácia, etc.

A Farmácia, em função das transformações na terapêutica e nos padrões de produção de medicamentos, dentre outros fatores, enfrenta no mundo, reformulações na formação, nos campos de atuação, no perfil profissional e nos parâmetros de regulação profissional. A formação do farmacêutico, cujo escopo central é o conhecimento profundo e atualizado dos medicamentos, desde os seus aspectos tecnológicos até os clínicos, vem sendo confrontada com a demanda tanto educacional como na pratica profissional, ao uso seguro e racional dos medicamentos, incorporando atividades relacionadas ao paciente ou estão orientadas para ele, no contexto do cuidado interdisciplinar e da equipe multiprofissional.

A Fisioterapia, embora neste contexto, seja uma das mais novas profissões, teve acelerada expansão pela criação de novos cursos e vagas, com privatização do ensino e concentração geográfica, particularmente, a partir da segunda metade da década de 1990. No entanto, esse incremento não vem resultando em maior acesso da população à assistência em fisioterapia. Quanto ao padrão de formação, as instituições de ensino conservaram e aprofundaram o modelo curativo-reabilitador com foco no domínio das técnicas de reabilitação, na perspectiva da atuação do trabalho liberal. No entanto, o perfil demográfico, epidemiológico e de necessidades assistenciais da população, estão a requerer reorientações, conforme instituído nas Diretrizes Curriculares Nacionais, na formação para a promoção da saúde e para o campo da saúde coletiva, prioritariamente, para atuação nos determinantes e condicionantes do processo saúde/doença.

Em função dos diversos fatores analisados e da instituição recente de programas como o “Mais Médicos”, pode-se ter como expectativa que o número de concluintes em Medicina vá se acelerar nas próximas duas décadas. No caso da Enfermagem, apesar do aumento desordenado de cursos nas últimas décadas é possível esperar uma tendência à estabilidade, no curto e médio prazo e até mesmo redução do número de concluintes para os próximos 15 anos, sendo mesmo possível uma redução do número de vagas no setor privado pela saturação do mercado de trabalho. Mais difícil é cogitar se a área de Odontologia seguirá crescendo no mesmo ritmo, ou mesmo se acompanhará o crescimento demográfico.

O processo de crescimento em resposta à expansão acelerada do mercado de trabalho da área de Farmácia se manterá inalterada ainda nas próximas década e meia? O número de concluintes em Fisioterapia deverá retomar o crescimento? Tal crescimento estará associado ao crescimento demográfico?

Algumas Considerações

No contexto em que se encontram as políticas públicas de saúde e de educação, a formação dos profissionais de saúde se afigura como uma das estratégias centrais para consolidar e defender os interesses da sociedade que realmente atendam às necessidades de saúde colocadas pela população usuária do sistema de saúde. Além disso, aumentam as exigências para que as instituições de ensino superior rompam com o modelo de ensino fragmentado, medicalizado, individualizado e com ênfase tecnicista, e se orientem para projetos de ensino voltados para a satisfação das necessidades sociais de saúde do país.

A tendência que se configura é de uma acentuada divisão entre poucas instituições de excelência acadêmica e tecnológica, situadas nos centros urbanos do eixo Sul e Sudeste e um grande número de instituições com dificuldade para atender aos padrões mínimos de exigência de qualificação para o ensino e incapazes de realizar pesquisa e extensão. Em tal cenário, se forem levados a termo os processos regulatórios baseados nos mecanismos avaliativos das instituições de ensino superior, poderá resultar numa reconfiguração da área, ou apenas em novos arranjos institucionais por conglomerados e consórcios para atender às pressões do mercado (DAL POZ, PIERANTONI, GIRARDI, 2013).

Referencias:

Bardin, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2010
Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 287/98, de 08 de outubro de 1998. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1998/Reso287.doc>. Acesso em 26 set. 2014.
Brasil. Lei nº 12.871 de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e no 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/Lei/L12871.htm>. Acesso em 26 set. 2014.
Brasil. Ministerio da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior. Disponível em <http://portal.inep.gov.br/superior-censosuperior>. Acesso em 26 set. 2014.
CAMPOS, F. E; MACHADO, M. H. & GIRARDI, S. N (2009). A fixação de profissionais de saúde em regiões de necessidades. Revista Divulgação em Saúde para Debate, n.44, p. 13-24.
DAL POZ, MR, PIERANTONI, C R, GIRARDI, S. Formação, Mercado de Trabalho e Regulação da Força de Trabalho em Saúde no Brasil In: A saúde no Brasil em 2030: prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde.1 ed.Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/ SAE, 2013, v.3, p. 187-237.
Organização Mundial da Saúde (OMS). Trabalhando juntos pela saúde: Relatório Mundial de Saúde 2006. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. (Série B. Textos Básicos de Saúde).