Fabrício Augusto de Oliveira*
Introdução
Em tempos de recessão e de dinheiro curto para que o Estado cumpra suas funções, não têm faltado propostas, de diversos conteúdos, para dar uma solução para essa situação e propiciar ao país encontrar uma porta de saída para a crise.
Começando pelo ajuste esquizofrênico do ex-ministro do ajuste fiscal, que não entendeu o poder de destruição da recessão sobre as receitas públicas e que agora amarga uma derrota fragorosa de sua estratégia, seguiram-se outras propostas da ortodoxia e do oportunismo político, caso da “Agenda Brasil”, do Senado Federal, e do documento “Uma Ponte para o Futuro”, do PMDB, como tábuas de salvação financeira do Estado brasileiro. Dentre essas, cabe destacar a de Mansueto, Lisboa e Pessôa (2015); e dentre as que apontam uma alternativa que não busca sacrificar as políticas sociais, a de Salto e Marconi (2015).
A proposta Mansueto, Lisboa e Pessôa: libertar o Estado do ônus das políticas sociais
Em artigo na Folha de S.Paulo, de 19 de julho, Mansueto Almeida, Marcos de Lima Lisboa e Samuel Pessôa (2015) identificam a origem destes desequilíbrios na Constituição de 1988, que teria sido generosa com os gastos sociais – previdência, saúde, educação, etc. – e com a vinculação de receitas para o seu financiamento, o que garantiu, desde então, uma trajetória contínua de crescimento dos gastos públicos, sem a correspondente adequação de suas fontes de financiamento.
Para eles, não há salvação para o país, se não pôr em marcha uma extensa agenda de reformas para enfrentar – e reverter – uma despesa que cresce acima da receita, o que significa pôr um ponto final nas ditas aposentadorias precoces, instituindo uma idade mínima para a aposentadoria e ampliando o tempo de contribuição como critério para receber esse benefício, e também em benefícios com critérios de acesso elevado e incompatíveis com o nosso estágio de desenvolvimento, revisando as vinculações atualmente existentes, que estariam na raiz deste desequilíbrio.
Não deixa de ser maneira estranha e socialmente injusta de resolver a questão previdenciária para onde os olhos da ortodoxia se voltam, apontando-a como principal fonte de desequilíbrios fiscais. Não contemplada na Constituição de 1988, a aposentadoria por idade passou a existir desde a aprovação da Emenda Constitucional n° 20, de 15/12/1998, sendo a idade mínima 65 anos para os homens e 60 para as mulheres, combinada com o “tempo de contribuição” de 35 e 30 anos, respectivamente, para estes grupos, tendo sido estabelecido o tempo mínimo de contribuição em 15 anos (180 contribuições) para obtenção do benefício.
A possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição (35/30 anos) foi mantida na EC 20, juntamente com a da aposentadoria por idade, visando a compensar os trabalhadores que começam a trabalhar mais cedo, mas a instituição do “Fator Previdenciário”, em 1999, pela Lei 9.876, de 28 de novembro, desestimulou as aposentadorias por este critério. Isso porque, calculado em função da idade, da expectativa de sobrevida e do tempo de contribuição ao se aposentar, o valor do benefício passou a conhecer considerável redução em função principalmente da idade do beneficiário.
Tanto isso é verdade, que Fagnani, em trabalho de 2007 sobre o tema, apontava que “a taxa de incremento anual das aposentadorias por tempo de serviço declinou de 10,2% para 2,1% entre o período anterior à instituição deste fator (1991-1998) e posterior ao ano de 1999”; que essas, na atualidade, não representam mais do que 20% do fluxo anual de aposentadorias, com tendência de queda; e que, se continuam a assombrar seus críticos, isso se deve mais ao fato de esses críticos confundirem seu estoque, ou seja, sua participação no total das aposentadorias, resultante das regras anteriores, do que propriamente de seu crescimento líquido anual.
E, também importante, que “a idade média geral das aposentadorias (somadas as por idade e por tempo de contribuição) atingiu, no Brasil, 60,8 anos, ultrapassando a verificada em países como a Bélgica, França e praticamente se equiparando à média de 22 países que foram pesquisados sobre essa questão”, à época, e que representam, atualmente, 65% do total de seu fluxo anual.
Em 2007, quando o trabalho de Fagnani foi elaborado, o fato é que as regras de aposentadoria no Brasil apresentavam-se mais restritivas do que as existentes em muitos países desenvolvidos, quer em termos de idade exigida para a aposentadoria, quer em tempo de contribuição. A crise do subprime nos Estados Unidos, seguida da crise da dívida soberana europeia, a partir de 2010, que levaram os governos destes países a um forte e crescente endividamento para salvar o capital do colapso, mudou essa realidade, ao obrigá-los, com o esforço realizado, a implementar políticas de austeridade e reformas no campo do welfare. Seu objetivo era claro: reduzir os gastos nas áreas sociais e, com isso, os desequilíbrios das contas públicas, transferindo o ônus causado pelos desvarios cometidos pelo capital, com a especulação financeira desenfreada, para a sociedade, visando a restabelecer as regras do novo consenso macroeconômico.
Entre as reformas que foram realizadas em vários destes países para enfrentar o dilúvio dessas crises, a da previdência ganhou cuidados especiais, com as regras das aposentadorias tornando-se mais restritivas e mais rígidas, mas, mesmo assim, não se pode dizer que tenham se distanciado muito das vigentes no Brasil.
Em termos da idade mínima para a aposentadoria, a do Brasil continuou superior à da Suécia (64 anos), da Noruega, Holanda, Portugal e Alemanha (63), da Dinamarca (62 para ser atingida em 2022) e da França (62 a ser atingida em 2018). Ficou praticamente equivalente às da Inglaterra, Japão, Espanha e Itália (65 anos) e pouco inferior à dos Estados Unidos (66) e Grécia (67). Na questão do tempo de contribuição, o exigido no Brasil apresenta-se inferior a de outros países, como a França (41 anos na atualidade), Alemanha (45 anos), Grécia (40 anos), mas equivalente ao da Espanha (35) e inferior ao da Inglaterra (30 anos), para ficar com alguns exemplos.1
Considerando, no entanto, o contexto socioeconômico do Brasil vis-à-vis o destes países, em termos de PIB per capita, expectativa de vida, grau de desigualdades sociais, etc., não se deve considerar a argumentação de autores como Tafner (2007), que afirmava, em 2007, “ser o Brasil o país que possui regras menos restritivas para a concessão de aposentadorias programadas”, ou seja, de ser extremamente generoso nessa política.
Qualquer reforma da previdência que não levar em conta a especificidade deste contexto e padronizar regras de aposentadoria sem considerar as desigualdades existentes, desvinculando também a correção dos valores da aposentadoria dos reajustes do salário mínimo, como estes autores defendem, estará condenada a lançar no inferno da miséria, na velhice, a população de mais baixa renda.
O fato é que a intenção destes autores, de modo geral, de ampliar a idade de aposentadoria (para 70 anos?), que está implícita nessa visão, não encontra paralelo na experiência internacional. Isso, num país cuja expectativa de vida anda na casa dos 71,3 para os homens e 78,6 para as mulheres (dados de 2013), significa praticamente reduzir a fruição deste benefício a um período muito breve, depois de uma contribuição que pode chegar a mais de 50 anos para boa parte dos trabalhadores.2
A questão do fator previdenciário com o qual se garante a redução deste valor da aposentadoria, e contra o qual sempre lutaram os sindicatos e os movimentos trabalhistas, foi colocada em xeque neste ano com a aprovação, pelo Congresso, de sua substituição pela fórmula simples 85/95, que soma a idade com o tempo de contribuição, sendo a primeira para as mulheres e a segunda para os homens. Por meio da Medida Provisória 676, de 18 de junho, essa fórmula foi, no entanto, substituída por uma fórmula progressiva, opcional ao fator previdenciário, que assim foi mantido no sistema, que aumenta essa soma a partir de 2017 até que atinja 90/100 em 2022. Como isso, em 2022, deixará de haver a possibilidade de aposentadoria para os homens antes de 65 anos com 35 de contribuição e, para as mulheres, antes de 60 com 30, respectivamente.
Apesar desse maior endurecimento nas regras deste benefício, outros adversários das chamadas, equivocadamente, “aposentadorias precoces”, como Paulo Tafner e Fábio Giambiagi, afirmam que “as medidas propostas pelo governo são generosas e lá na frente não vão resistir [e que] a única saída é a aprovação de aposentadoria apenas por idade”.3 De preferência, pode-se deduzir de seus argumentos, estabelecendo-se uma idade que não permita ao trabalhador usufruir deste benefício, mesmo tendo contribuído ao longo de toda a sua vida de trabalho para obtê-lo.
Além disso, o tamanho e a evolução do déficit da Previdência Social (RGPS) no qual a ortodoxia se apoia para projetar a “tragédia” financeira que se descortina para o seu financiamento futuro, reponta como uma questão encoberta por espessas nuvens, com seus números e resultados sendo manipulados para espelharem uma condição de insustentabilidade e justificar o pânico que se tem criado sobre sua inviabilidade atuarial nas condições atuais.
Isso porque, para os que assim procedem, visando a considerar sua excessiva generosidade e justificar a necessidade premente de uma reforma para evitar seu colapso financeiro, interessa apenas considerar, do lado das receitas, as contribuições que são feitas ao INSS, e do lado das despesas, todos os benefícios por ele pagos. Dessa equação, obtém-se um “déficit” em trajetória de progressivo crescimento que, para 2014, por exemplo, teria atingido 0,81% do PIB (R$ 57 bilhões) e que, pelos cálculos projetados por estes mesmos analistas, pode chegar, em 2018, a R$ 127 bilhões.
Esta não é, no entanto, uma conta realista, por não considerar, de um lado, que a Previdência Social é parte integrante da Seguridade Social e que, como tal, conta, constitucionalmente, com outras fontes de receitas para o seu financiamento, caso da Cofins, do PIS/Pasep, da CSLL e das receitas de concursos e prognósticos, que são devidamente desconsideradas neste cálculo. Em segundo, de que um nível elevado de benefícios, que o INSS paga, pertence à área da Assistência Social, sem a exigência correspondente de contrapartida de contribuições, devendo, por essa razão, terem a cobertura financeira da Seguridade.
Em trabalho recente (2015), a Associação dos Auditores Fiscal da Receita Federal do Brasil (Anfip), órgão insuspeito de técnicos da Receita Federal, confirmou ter sido a Seguridade Social, em 2014, superavitária em R$ 53,9 bilhões, e consequentemente, a Previdência Social que é parte dela integrante. Neste ano, as receitas de contribuições destinadas ao seu financiamento teriam somado R$ 670 bilhões – 56% de toda a arrecadação –, com um crescimento nominal de 5,45% e queda real de 0,8% em relação a 2013, devido à estagnação da economia, que derrubou as receitas de impostos.
O trabalho da Anfip, que não atende os interesses dos adversários das políticas sociais, representa uma importante contribuição que demonstra, de um lado, como o governo subtrai recursos da Seguridade Social, em montantes altamente expressivos, como, por outro, no caso específico do INSS, criam-se “fantasmas” para justificar as propostas conservadoras de reforma, visando à redução dos direitos sociais.
O fato é que, desde 1994, com a criação do Fundo Social de Emergência (FSE), rebatizado, em 1996, Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, posteriormente, Desvinculação das Receitas da União (DRU), o governo federal passou a subtrair expressivas receitas da Seguridade Social, visando a ampliar a disponibilidade de recursos “livres” no orçamento, seja para cobrir seus desequilíbrios ou para garantir a geração de superávits primários, de forma a pagar parte dos encargos da dívida e manter sob controle a relação dívida/PIB. As perdas causadas por este instrumento para a Seguridade se encontram dispostas na Tabela 1 e revelam, por exemplo, que, especificamente no ano de 2014, essas seriam mais do que suficientes para cobrir o suposto déficit previdenciário de R$ 57 bilhões, tal como divulgado.
Essa é, no entanto, apenas parte da história ignorada pelos críticos do sistema. Especificamente em relação ao RGPS, a política de desoneração da folha de pagamentos, iniciada em 2011, drenou substanciais recursos do INSS que deveriam ter sido compensados com transferências do Tesouro Nacional para a Previdência, o que não ocorreu na mesma dimensão das perdas sofridas, aumentando o desequilíbrio do sistema. Segundo cálculos da Anfip (2015), em virtude disso os prejuízos financeiros causados ao INSS teriam chegado a R$ 15 bilhões entre 2012 e 2013 e a R$ 12 bilhões no ano de 2014. Trata-se de receitas também não consideradas nos cálculos feitos pelos nossos autores.
Mas há uma grande questão especificamente no caso do RGPS que também não pode ser desconsiderada na análise do sistema para identificar a fonte de seu desequilíbrio, mesmo deixando de lado o fato de ele pertencer à Seguridade e contar com fontes de receitas não restritas às contribuições previdenciárias: a diferença entre o subsistema urbano e o subsistema rural de benefícios, que são contabilizados nas despesas globais efetuadas pelo órgão do INSS.
Como se mostra no trabalho da Anfip (2015), no subsistema urbano, em que é mais predominante a formalização do trabalho, tem-se registrado um superávit apreciável, até mesmo por ter-se contado com uma forte expansão do emprego formal neste período, dado o maior crescimento econômico verificado: 0,39% do PIB em 2008; 0,58% em 2010; 1,13% em 2012; 1,14% em 2013; e 1,19% em 2014. Trata-se de superávits apreciáveis que não podem ser ignorados nessa avaliação sobre o sistema.
Já no subsistema rural, onde é baixa a alíquota da contribuição previdenciária e as contribuições são prejudicadas pela informalidade do trabalho, por sua isenção para o setor exportador e pelos elevados índices de sonegação, é onde se registra este desequilíbrio: em 2014, para receitas equivalentes, segundo o estudo da Anfip, a R$ 11,3 bilhões, registraram-se despesas de R$ 88,7 bilhões e, consequentemente, um déficit de R$ 77,4 bilhões, ou 1,4% do PIB. O sistema, tal como se encontra estruturado em termos de contribuições e benefícios, não pode, por essa razão, dispensar recursos da Seguridade Social, que os nossos autores teimam em negar e em deixar de considerá-la como integrante do rol das políticas sociais, pois isso enfraqueceria os argumentos que utilizam para condenar a previdência no Brasil.
No que diz respeito às demais políticas sociais, o mais importante na opinião de Mansueto, Lisboa e Pessoa (2015), seria desfazer a armadilha construída com a Constituição de 1988, demolindo o sistema de vinculações que assegura recursos para áreas sociais nobres, como a saúde e a educação, por exemplo, mas que enrijece excessivamente o orçamento e dificulta, por isso, o maior equilíbrio das contas do Estado e também a realização de ajustes fiscais bem sucedidos, quando necessários.
Iniciada, como já apontado, com a instituição do FSE, em 1994, criado para dar suporte fiscal ao Plano Real, e depois eternizada nas figuras do FEF e no da DRU, a demolição das vinculações tem encontrado apoio no meio de todos os economistas da ortodoxia, entre os quais se situa também Armínio Fraga (2015), para quem é necessário, para salvar o Brasil, “dar um fim a todos os sistemas de vinculações”. Ou seja, retirar da Constituição qualquer norma legal que garanta o financiamento das políticas sociais para que o capital não seja prejudicado em sua caminhada.
Com essas mudanças, poderiam ser removidos os entulhos de um Estado intervencionista que entregou mais do que podia, sem se preocupar com as limitações dos fundos que tinha à sua disposição para essa finalidade, abrindo-se, assim, o caminho para se realizar as reformas de que tanto o país necessita – tributária, institucional, uniformização das regras de incentivos para os diversos setores, redução da burocracia estatal etc. –, reduzindo os custos e o peso do próprio Estado. Neste caso, rasgando-se a Constituição de 1988, o crescimento poderia retornar de forma mais sustentável no longo prazo.
A facilidade do pensamento conservador em oferecer fórmulas milagrosas para a solução dos problemas financeiros do Estado se deve ao fato de que consegue abstrair, em suas propostas, o personagem que mais necessita do Estado: a população de menor poder aquisitivo e a do grupo da pobreza, às vezes apoiando-se num sofisticado approach teórico para justificar essa exclusão. O que é compreensível, por serem seus integrantes, de uma maneira geral, funcionários do capital e das grandes riquezas, que temem ver escapar de suas mãos parte das fortunas acumuladas.
Não é por outra razão que estes autores nem de longe se preocupam – e nem os mencionam no artigo considerado – com os pesados gastos financeiros do Estado com o pagamento dos juros da dívida. Estes sim, os principais responsáveis pelo grande e progressivo desequilíbrio das contas públicas, devido às muitas vezes desnecessárias elevadas e exorbitantes taxas de juros mantidas para combater uma suposta inflação de demanda, de acordo com o modelo de metas inflacionárias.
A Tabela 2 não deixa dúvidas sobre a grande responsabilidade do componente financeiro da dívida no desequilíbrio das contas do setor público. Como se pode perceber, com a exceção dos dois últimos anos, 2014 e 2015, a grande responsabilidade pelos desequilíbrios das contas do setor público, foram os juros nominais incidentes sobre a dívida do governo, tendo os superávits primários obtidos, contribuído, inclusive, para a redução do déficit nominal, que garante e expansão do estoque da dívida, entre 2006 e 2013. Apenas em 2014 e 2015, devido à renúncia de receitas que foi realizada, com a redução e desoneração de alguns tributos para alguns setores importantes para estimular a demanda, visando a garantir um crescimento mínimo da economia, e com a queda das receitas provocadas pela desaceleração e a entrada em recessão da economia, foi que o governo incorreu, depois de muitos anos mantendo-se superavitário em suas contas primárias, em déficit neste conceito.
Comparado, no entanto, à carga de juros nominais decorrentes da remuneração da dívida pública, o déficit primário, em 2014, correspondeu a menos de 10% do déficit nominal gerado no ano e, em 2015, no acumulado dos últimos doze meses encerrados em julho, também praticamente a 10% de todo o déficit nominal. Sobre isso, no entanto, nossos autores mantêm-se silentes, jogando toda a responsabilidade do desequilíbrio sobre os gastos primários sociais do Estado. Tudo se passa, nessa visão, como se o componente financeiro do déficit não tivesse a menor responsabilidade na trajetória de crescimento da relação dívida bruta/PIB e que apenas a incapacidade de o governo controlar melhor suas despesas primárias respondesse pela sua deterioração.
Por essa mesma razão, estes mesmos economistas não ousam, em nenhum momento, propor o aumento de impostos, seja sobre a renda ou o patrimônio, para as pessoas mais ricas do país, as quais muito pouco contribuem para o financiamento do Estado. Dados recentes divulgados pela Receita Federal sobre o Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF) revelam que a maior carga deste imposto, que também não passa de 12% sobre os rendimentos totais, recai sobre a classe média, que recebe de 20 a 40 salários mínimos, com renda média anual de R$ 226 mil. Os que se encontram no topo da pirâmide, com renda média anual de R$ 4,2 milhões (privilegiados que não passam de 71.440 contribuintes), arcam com uma carga de modestos 6,5%. Os mesmos privilegiados (0,27% do total dos contribuintes) que, detendo 22% de todos os bens e direitos declarados à Receita, são também praticamente isentos de impostos cobrados sobre o patrimônio.
A proposta Salto/Marconi: uma reforma da gestão
Em contraposição a estes autores, Felipe Salto e Nelson Marconi (2015), também em artigo na Folha de S.Paulo, de 30 de agosto, argumentam que o ajuste pode ser feito sem cortar conquistas sociais importantes. Para eles, o caminho mais eficaz para retirar o Estado da atual crise e resgatar a solvência e a poupança do setor público, é a melhoria da gestão. No entanto, assim como ocorre no artigo de Mansueto, Lisboa e Pessoa, estes autores também ignoram o componente financeiro da dívida e seu papel no desequilíbrio das contas públicas, embora apontando soluções qualitativamente distintas para a realização de seu ajuste.
Salto e Marconi consideram, de um lado, que o governo compra mal, pagando, em média, 40 pontos percentuais acima do preço dos produtos consumidos pela administração pública em relação ao preço pago pelo setor privado pelos mesmos produtos. Pelos seus cálculos, se os preços dessas duas esferas convergissem, poderiam ser economizados, anualmente, 2,6% do PIB de recursos, considerando os três níveis de governo. Uma economia mais do que apreciável, especialmente em tempos de ajuste fiscal.
Da mesma maneira, apontam os vícios na construção da peça orçamentária, juntamente com a prática de postergação do pagamento de despesas para exercícios futuros, como canais de desperdícios, para o que, há tempos, o EBAPE, da FGV/Rio tem chamado a atenção, em estudos sobre este tema. No primeiro caso, diante da prática incrementalista dos gastos, os gestores bem-intencionados, que se preocupam com orçamentos mais realistas, terminam penalizados, enquanto os gastadores, beneficiados. No segundo, a prática de carregar os pagamentos para o futuro cobra um sobrepreço da administração pública, visando a compensar pelos atrasos, o setor privado.
Por último, constatam que o governo parece contratar em excesso – 310 mil só no Executivo Federal entre 1995 e 2015 -, o que tem garantido o crescimento da despesa com pessoal ativo, que atingiu 8,5% do PIB, em 2012, nos três níveis de governo. Na hipótese de se reduzir estes gastos, com a diminuição deste contingente, em 10%, projetam ser possível economizar, anualmente, 0,8% do PIB.
Para eles, com uma economia de 3,4% do PIB, melhorar a gestão, portanto, seria o caminho mais eficaz para realizar o ajuste e retomar o crescimento, sem se ter, de um lado, de se sacrificarem as políticas sociais, como sugerem Mansueto, Lisboa e Pessoa; e, de outro, contando com boas sobras de recursos, para se garantir investimentos públicos, essenciais para o crescimento. De quebra, com a redução deste desequilíbrio, seria possível ingressar numa trajetória de redução dos juros e da relação dívida/PIB, melhorando as expectativas dos investidores e das agências de risco sobre a capacidade de solvência do país.
Sem entrar no mérito dos resultados apresentados em termos de economia de recursos com a melhoria da gestão, embora bem mais promissora do que a dos primeiros autores, à medida que procura preservar as políticas sociais e o financiamento do investimento público, mesmo apontando para reformas, na mesma linha dos autores anteriores, como a da previdência, a proposta de Salto e Marconi deixa algumas interrogações no ar e apresenta, a nosso juízo, algumas dificuldades.
A primeira refere-se ao tempo para a realização das reformas sugeridas e à disposição do governo em fazê-lo. Mudanças dessas práticas contrariam inúmeros interesses incrustados nos aparelhos do Executivo e do Legislativo, que se opõem à perda de espaço no governo, à redução de cargos para atender sua clientela política e à falta de maior liberdade no orçamento para inscrever suas demandas. Contrariar esses interesses exige um governo com muita legitimidade, disposto a travar uma dura queda de braços com seus beneficiários, o que não parece ser o caso atual, iniciativa que também demanda tempo, enquanto a situação atual da economia exige pressa e rapidez para desobstruir os caminhos do crescimento.
O segundo, ao fato destes autores condicionarem a melhora da economia às reformas de gestão, o que, se deve ser contemplado e buscado como projeto de mais longo prazo, pode vir a acontecer somente depois que o dilúvio já tiver acabado de destruir suas bases. Há, no entanto, no nosso entendimento, caminhos mais rápidos que podem ser buscados para evitar essa catástrofe, os quais as propostas aqui consideradas sequer mencionam.
Uma proposta contemplando maior equilíbrio entre o social e o econômico
Como já apontado em vários trabalhos publicados como os de Orair e Gobetti (2015), Ana Luíza Matos de Oliveira (2015) e Reginaldo Moraes (2015), o Estado brasileiro dispõe, na atualidade, de um amplo campo inexplorado de tributação sobre a renda e o patrimônio para aumentar mais rapidamente sua arrecadação e diminuir seus desequilíbrios. Cálculos de Orair e Gobetti indicam uma arrecadação não inferior a R$ 50 bilhões apenas com o estabelecimento da cobrança do imposto de renda sobre os lucros e dividendos recebidos pelas pessoas mais ricas, dele isentas. Um silêncio sepulcral a respeito dessa possibilidade, como apontado anteriormente, tem sido norma não somente das propostas que nascem no seio do Executivo como das apresentadas pelos autores mencionados neste artigo, como se cobrar impostos dos mais ricos fosse um pecado capital.
Tão necessário para reduzir o desajuste atual é a que se refere, pelos números acima apresentados, à revisão da política de juros, cuja carga, nos últimos doze meses encerrados em julho, atingiu R$ 452 bilhões (7,92% do PIB), empurrando o déficit nominal para R$ 502 bilhões (8,81% do PIB), se não o maior, pelo menos um dos maiores do mundo, e a relação dívida/PIB, no conceito do Banco Central, para 64,6%.
Ao contrário do que ambas as propostas sugerem de ser necessário o ajuste de curto prazo, visando criar condições para a redução dos juros e da dívida, não se encontra nenhuma justificativa teórica para mantê-los nos níveis em que se encontram. Altas taxas de juros reais, caso do Brasil, só se justificam em caso de economia sobreaquecida, de seu desnivelamento, para baixo, em relação às taxas mantidas por outros países e por problemas no financiamento do balanço de pagamentos, questões que não se verificam, na conjuntura atual.
No quadro em que o país se encontra, os sinais de vida econômica, indicadores de um excesso de demanda que poderia ser combatido com o modelo “cego” do Banco Central, o de regime de metas inflacionárias, parece ter saído tanto do radar do setor produtivo quanto do da população, diante da profundidade e do avanço rápido da recessão, do aumento do desemprego, dos níveis de inadimplência e da queda dos rendimentos dos salários dos trabalhadores.
Além disso, o país ostenta uma taxa de juro real inigualável no restante do mundo, onde predominam, especialmente nos países desenvolvidos, taxas negativas, enquanto o seu déficit em conta-corrente, apesar de elevado (4,34% em julho) se encontra em queda devido à recessão e à forte contração das importações, sendo, em quase sua totalidade, financiado por investimentos externos diretos, ao que se somam consideráveis reservas externas de US$ 370 bilhões.
Complementarmente, diante das incertezas e instabilidade reinantes na economia mundial, especialmente depois que a economia chinesa passou a emitir sinais mais sérios de desarranjo, e da perda pelo Brasil do status de grau de investimento pela Standard & Poor’s (S&P), em virtude da recessão, da confissão de que não conseguirá economizar recursos, em 2016, para pagar uma parte mínima dos juros da dívida, e do déficit externo, mesmo que em queda, de mais de 4% do PIB, o estabelecimento de regras de controle dos capitais externos é mais do que necessário para impedir que essa “travessia” seja comprometida por excessivas turbulências.
Pouco adiantará enfrentar estes desafios, que não são pequenos, se, simultaneamente, não se estiver construindo as bases para um projeto nacional de desenvolvimento, com o qual os últimos governos não se preocuparam. Isso porque, inebriados com a política “mais fácil” do crescimento propiciado, até 2008, pelo desempenho da economia internacional e pelo “efeito-China” que se derramou sobre as exportações de commodities e, posteriormente, quando essa situação começou a se modificar, com as crises do subprime, da dívida soberana europeia e da própria economia chinesa, pela negligência em realizar as reformas necessárias para apoiá-lo em bases mais consistentes.
Políticas econômicas refratárias ao setor produtivo nacional, principalmente à indústria brasileira, tornaram-se norma, neste quadro, enquanto o Estado, fortalecido pelo aumento da arrecadação com o crescimento, mas ignorando o papel que lhe é atribuído no mundo capitalista e desconhecendo os limites de sua atuação, e também de seus recursos, colocou-se como onipotente e em condições de implementar uma política de conciliação entre as classes sociais, onde todas saem ganhando, preservando-se, com isso, os detentores da renda e a riqueza de arcar tanto com as políticas redistributivas como com os custos de sua atuação no apoio à acumulação, subsidiando empresas, por meio de empréstimos baratos, desonerações de tributos etc., como se os fundos para isso fossem ilimitados e inesgotáveis.
Um erro lamentável, de governantes tidos como progressistas, mas que não se descolaram do pensamento dominante e mantiveram em boa parte de sua administração, quadros conservadores no comando da política econômica, e que a esquerda, carente de políticas redistributivas no país, esquivou-se, também equivocadamente, de apontar criticamente, para não municiar o pensamento conservador de argumentos a elas contrários. Não poderia dar certo.
O fato é que essa realidade favorável da era Lula ficou para trás e não será apenas com voluntarismo que se vai resgatá-la. Por isso, se o Brasil pretende, de fato, criar condições para promover um real e sólido crescimento, será necessário combinar a realização de reformas estruturais – no campo tributário, da infraestrutura, educacional, da própria máquina estatal, da previdência, tecnologia, etc. –, coladas a um projeto negociado e efetivo de sociedade, com a implementação de políticas macroeconômicas consistentes voltadas para ressuscitar e fortalecer a indústria, construir a necessária infraestrutura econômica do país e tornar sustentáveis as políticas sociais necessárias para este objetivo.
Como não há “almoço grátis” em economia e seus custos terão de ser distribuídos para toda a sociedade, não há como manter a mesma política, onde todos saem ganhando, em particular os setores mais ricos e poderosos, e trabalhar/negociar para que essa distribuição seja feita de forma equitativa e justa socialmente, cobrando-se mais de quem mais possui. A melhoria da gestão, de acordo com as propostas de Salto e Marconi seria, neste caso, fundamental na estruturação e viabilização de um projeto dessa natureza.
Notas
1 As regras são variadas, com a exigência de idade mínima e de tempo de contribuição sendo diferente para aposentadorias antecipadas, parciais e integrais. Muitas das mudanças nos sistemas previdenciários realizadas nestes países ainda se encontram em curso e muitas ainda estão para ser concluídas. O que se pretende com esses exemplos, é apenas mostrar que, apesar de mais restritivas, as novas regras estabelecidas não se distanciam muito das existentes no Brasil.
2 De acordo com o IBGE, quatorze estados do Brasil, em 2013, de um total de 27, registraram expectativa de vida do homem ao nascer abaixo de 70 anos. Outros três, Amapá, Mato Grosso e Goiás, poucos décimos acima dos 70. Se elevada para 70 anos, os trabalhadores deste sexo destes estados não chegarão a usufruir do benefício da aposentadoria pelo qual pagaram ao longo de sua vida.
3 Folha de S.Paulo, 22 de junho de 2015, p. A-18.
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* – Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, colaborador do Brasil Debate e autor, entre outros, do livro “Política Econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”.