Luiz Gonzaga Belluzzo
O neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”, escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, citando Michel Foucault, em artigo publicado no jornal Valor, 01-07-2014.
Segundo ele, “na arena global, as instituições financeiras estão cada vez mais acumpliciadas à política dos interesses. Necessitam do apoio de condições institucionais e legais construídas sob o domínio doutrinário e ideológico do establishment, para não falar escancarada cumplicidade financeira dos parlamentos e dos tribunais. Sem esses apoios cruciais não podem adestrar seus músculos na disputa pela partilha da riqueza em todos os rincões do planeta”.
Eis o artigo.
O mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas que pareciam murchar sob as inclemências da crise financeira. As aparências enganam, ensina o conselheiro Acácio. Depois da crise, os porta-vozes desse quase consenso, economistas e quetais, entre cautelosos e envergonhados, recolheram-se ao silêncio momentâneo. Passado o vendaval que ajudaram a semear e já agarrados aos salva-vidas lançados pela “famigerada” intervenção dos governos, os maganos voltaram a tonitruar seus dogmas enquanto, nas sombras da impunidade, entregam-se a tortuosas e acrobáticas manobras de reafirmação de seus poderes.
Nas últimas semanas, o mundo tomou conhecimento da vitória obtida contra a Argentina pelos “fundos abutres”, tambem conhecidos pela alcunha de hedge funds. A vitória foi lavrada pela decisão de um juiz de Nova York, mais tarde confirmada pala Suprema Corte, que recusou o recurso apresentado pelos advogados do país sul-americano.
A decisão da Justiça americana assombra o mundo dos vivos ou dos sobreviventes com o espectro do finado “Currency Board” do dr. Domingo Cavallo. Destilado das retortas dos alquimistas da finança internacional, o Plano Cavallo forjou um regime de conversibilidade plena com taxa de câmbio fixa. O peso era tão forte quanto o dólar, proclamava o então celebrado ministro da Economia argentina.
A derrocada dos preços dos títulos soberanos argentinos atraiu o que há de pior em Wall Street e adjacências. Acolitados pelos saberes do FMI e adjacências, os alquimistas do peso forte lançaram o país na trágica crise cambial e monetária de 2001/2002. Nuestros hermanos ainda pagam a conta do regime de conversibilidade que, entre outras façanhas, estimulou a emissão de dívida pública em moeda estrangeira e entregou mais uma vez a economia Argentina aos humores dos investidores internacionais.
Entre 2005 e 2010 a Argentina concertou com a maioria dos credores a reeetruturação de sua dívida. Foi efetuada uma troca de dívidas (“debt swap”), na verdade uma mudança nos termos em que a dívida deveria ser paga. 93% dos credores aceitaram a proposta do devedor. Mas, a derrocada dos preços dos títulos soberanos argentinos atraiu os picaretas da finança – o que há de pior em Wall Street e adjacências. A chusma de malfeitores entrou no mercado para comprar a gororoba apodrecida com descontos que chegavam a 80% do valor de face. É de se perguntar se esses espertalhões e trapaceiros da finança global estimaram corretamente os riscos de carregar papéis que o próprio mercado precificava de forma tão desdenhosa.
É óbvio que sabiam muito bem o que estavam fazendo: confiaram na Justiça americana. Agora todos os credores estão habilitados a receber o valor integral dos títulos soberanos da Argentina. O país tem US$ 30 bilhões de reservas e o valor da dívida vai a mais de US$ 100 bilhões.
Michel Foucault morreu há 30 anos. Um dos pensadores mais fecundos do século XX, Foucault, sabem seus admiradores e detratores, não é economista. Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o significado do intervencionismo neoliberal. Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”.
Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar, aquela que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para ele “a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é um sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da concorrência…Trata-se de fazer do mercado, da concorrência e, por consequência da empresa, o que poderíamos chamar de ‘poder enformador da sociedade”. Domingo Cavallo foi um perfeito intervencionista neoliberal. Já no Brasil, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, um luminar da finança atribuiu a enroscada da Argentina ao “intervencionismo” do governo atual.
As práticas e tramoias do neoliberalismo não se coadunam com os princípios do liberalismo clássico e sua imaginária concorrência perfeita protagonizada por um enxame de pequenas empresas sem poder de mercado.
A concorrência louvada pelos neoliberais admite a “centralização” da propriedade e o controle dos blocos de capital, comandado pela nova finança e suas inovações. Isto foi realizado mediante a escalada dos negócios de fusões e aquisições financiados com elevados índices de alavancagem e alentados pela forte capitalização das bolsas de valores nos anos 80, 90 e 2000, a despeito dos habituais escorregões de “ajustamento” de preços quando a decepção das expectativas dispersa a manada. (No que diz respeito ao crescimento e ao emprego, as economias desenvolvidas ainda apresentam desempenho medíocre, isso quando não resvalam para quedas no PIB. Mas os índices das bolsas de valores chegam aos píncaros da capitalização e devolvem com sobras a riqueza destruída na crise, embaladas pela liquidez injetada pelos Bancos Centrais.)
Na arena global, as instituições financeiras estão cada vez mais acumpliciadas à política dos interesses. Necessitam do apoio de condições institucionais e legais construídas sob o domínio doutrinário e ideológico do establishment, para não falar escancarada cumplicidade financeira dos parlamentos e dos tribunais. Sem esses apoios cruciais não podem adestrar seus músculos na disputa pela partilha da riqueza em todos os rincões do planeta. As forças da finança e da grande empresa dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar e operar em terceiros mercados: acordos de garantia de investimentos, patentes e, como o demonstra o caso argentino, estabelecimento de foros “adequados” para dirimir conflitos.