Fragmentação da luta política e agenda de desenvolvimento: contribuição ao debate proposto por E. Fagnani

Wladimir Pomar*

Sob o título “Fragmentação da luta política e agenda de desenvolvimento”, Eduardo Fagnani nos brindou com um texto de fôlego tendo por “objetivo ressaltar a importância da construção coletiva de um projeto de transformação que deveria servir como referência para a luta política no Brasil neste início do século 21”. E nos chamou para o debate, considerando, corretamente, que a “diversidade e a complexidade dos temas estruturais a serem enfrentados pressupõem a formulação de uma agenda de transformação que consolide os progressos recentes, mas caminhe muito além”.

Minhas observações começam por algumas considerações feitas por Fagnani quase ao final de seu texto. Primeiro, seu reconhecimento de que a perspectiva de uma “agenda de transformações” é “limitada pela correlação de forças amplamente favorável ao poder econômico”. Nessas condições, “falar em agenda de desenvolvimento” seria “pregar no deserto”. Segundo, sua conclusão de que, diante do bloqueio desse poder econômico na arena política, não seria possível, “sem pressão social”, que “os interesses do cidadão venham em primeiro lugar”.

Eu acredito, ao contrário, que falar em agenda de desenvolvimento é justamente necessidade imperiosa para gerar tal pressão social. Não temos pressão social, ou ela é fraca e dispersa, porque não temos classes sociais suficientemente fortes para exercê-la. Quando defendemos um desenvolvimento que tenha como coluna vertebral a industrialização, temos em vista principalmente a criação de uma forte fração industrial da classe dos trabalhadores assalariados. Ou seja, daquele setor da classe assalariada que, pelo tipo de organização de trabalho a que está submetido, apresenta melhores condições de se organizar e lutar.

Em vista dessa necessidade, podemos até fazer concessões a um desenvolvimento puramente capitalista, ou de “novo desenvolvimento”, desde que ele crie empregos, principalmente industriais. Isto, tendo em vista a criação de uma força social popular e democrática capaz de realizar a pressão necessária para impor uma agenda de desenvolvimento que não seja puramente capitalista. Este deve ser o primeiro ponto estratégico a considerar. E, como segundo ponto, construir, em articulação com as classes que compõem tal força social, uma pauta de reivindicações e lutas.

Fagnani aponta vários dos problemas com que nos defrontamos para criar aquela força social. No entanto, não faz correlação entre eles e os pontos estratégicos postos acima. E, às vezes, generaliza os problemas do capitalismo desenvolvido como se fossem globais e plenamente recorrentes no Brasil. Por exemplo, afirma que o “papel da democracia na representação dos interesses gerais da sociedade foi mitigado nas últimas quatro décadas da concorrência capitalista sob a hegemonia do capital financeiro e do pensamento neoliberal”.

No Brasil, isto só ocorreu em parte. Dos últimos 40 anos, mais de dez foram consumidos pela crise da ditadura e pela retirada estratégica da corporação militar. Os últimos cinco anos da década de 1980 foram de embates para evitar a hegemonia do capital financeiro e do pensamento neoliberal. Os dez anos da década de 1990 foram de hegemonia plena dessa dupla sinistra, embora ao final da década o pensamento neoliberal já estivesse em crise. Em 2002, ele foi derrotado politicamente. E, nos 12 anos mais recentes, a disputa entre o pensamento neoliberal e outros tipos de pensamento foi constante.

Portanto, talvez seja necessário encontrar explicações mais diversificadas para demonstrar que o “papel da democracia na representação dos interesses gerais da sociedade” tem-se mantido mitigado, apesar das conquistas populares e democráticas desde o final dos anos 1970. Nesse sentido, a generalização global que Fagnani faz sobre a política ter perdido meios e ferramentas para tutelar a economia, em virtude da “hegemonia dos mercados desregulados”, ajuda pouco.

Não foi em toda parte que “a política deixou de tutelar a economia”. Também não foi em toda parte que a “sociedade perdeu capacidade de conter o ímpeto desagregador das forças de mercado”. Não é em toda parte que existe “clara assimetria na representação política, em favor dos interesses do poder econômico”. Nem é em toda parte que a “esfera pública foi esvaziada ante os valores do individualismo e da meritocracia”. Nem todos os “Estados Nacionais foram enfraquecidos e perderam a capacidade de coordenar projetos de transformação”.

Embora seja verdade que foram forjadas “cultura e ideologia retrógradas em relação ao desenvolvimento”, em grandes áreas do mundo também foram forjadas cultura e ideologia progressistas em relação ao desenvolvimento. Na verdade, numa visão global, são a cultura e a ideologia progressistas em relação ao desenvolvimento que estão em ofensiva, apesar da resistência das nações de capitalismo desenvolvido. Nesse sentido, Hirsch transforma uma parte no todo ao dizer que foi estabelecido “um sistema mundial de Constitucionalismo neoliberal” que, na prática, “retirou de cada Estado a possibilidade da influência política democrática”. É preciso relativizar essas teses e estudar com mais atenção o que está acontecendo em vários países da Ásia, da África e da própria América Latina.

Fagnani também concorda com o historiador Perry Anderson, para quem o neoliberalismo “segue aprofundando seu poder no mundo”, confundindo o mundo de capitalismo avançado dos Estados Unidos e da Europa com o resto do mundo. E reduzindo à América do Sul e ao Brasil a “esperança que não existe em nenhum outro lugar do mundo hoje”, “de abrir frestas” no “fluxo da ideologia mundial dominante”. Se aceitarmos isso, teremos que nos desdobrar para explicar o surgimento do G20 e dos BRICS.

Penso que o próprio Fagnani se deu conta dessa contradição. O que o levou a alertar que, no caso brasileiro, também seria preciso considerar a “secular capacidade das elites, para preservarem o status quo social”, ressaltada por Celso Furtado. Para este autor, o Brasil é um país “em que a miséria de grande parte da população não encontra outra explicação que a resistência das classes dominantes a toda mudança capaz de pôr em risco seus privilégios”. Valeria a pena acrescentar às classes dominantes (latifundiários e burguesia) grande parte da pequena-burguesia. No golpe de 1964 foram essas classes que apelaram “às forças armadas” para desempenharem “o papel de gendarme do status quo social, cuja preservação passava a exigir a eliminação da democracia formal”.

Nesse sentido, não deveríamos nos espantar com a “fantástica capacidade de mimetização de comportamentos… para representar os interesses do poder hegemônico (econômico, político, midiático) em cada conjuntura”. Talvez seja necessário que nos espantemos com a fantástica incapacidade dos representantes dos interesses das classes populares (trabalhadores assalariados, camponeses sem-terra e com pouca-terra, e excluídos) em disputar aquela hegemonia e aproveitar com vantagem as divisões nas classes dominantes.

Tal incapacidade se reflete naquilo que Maria da Conceição Tavares classifica de “partidos… desengonçados”, ”movimentos sociais fracionados”, “sindicatos aquém do espaço que lhes cabe”. E no que Fagnani chama de “partidos progressistas” com “perspectiva de transformação” esvaziada, “submetidos à mercantilização do voto”, e “dependentes das bancadas particularistas”.

Por um lado, segundo ele, o “imperativo da conciliação de interesses políticos antagônicos limita a ação dos governos do Partido dos Trabalhadores na articulação das demandas da sociedade identificadas com suas bandeiras históricas”. Por outro, “os partidos da esquerda radical desconsideram a correlação de forças e adotam posturas paralisantes, na medida em que a utopia socialista posterga iniciativas de transformação social para o futuro pós-capitalista”.

Creio que Fagnani descartou, aí, a oportunidade de uma crítica mais consistente sobre a ação e a postura de parcelas do PT. O “imperativo de conciliação de interesses políticos antagônicos” não existe, ou não deveria existir. O que existe, e deve existir, é o “imperativo de conciliação de interesses políticos” momentaneamente comuns. Por exemplo, a aliança com setores políticos burgueses para derrotar o neoliberalismo escrachado de FHC e companhia tem sido um “imperativo” nas eleições desde 2002.

No entanto, não pode haver qualquer “imperativo de conciliação de interesses políticos” com a oligopolização familiar da mídia brasileira. A rigor, nada deveria impedir o partido e o governo de lutarem franca e abertamente pela democratização dos meios de comunicação. Os interesses políticos, neste caso, são antagônicos e deveriam ser tratados como tais. Se não são tratados dessa forma pode significar que, dentro do PT e do governo, existam forças que confundem as alianças táticas (imperativo de conciliação de interesses políticos momentaneamente comuns) com a subordinação do partido e do governo a interesses conflitantes. É esse engano que limita aquela “articulação das demandas da sociedade identificadas” com as bandeiras históricas do PT.
Quanto aos partidos de ultraesquerda, seu pecado não consiste apenas em “desconsiderar a correlação de forças”. Por um lado, eles consideram que a correlação de forças está madura para a revolução socialista. Por outro, imaginam que a revolução socialista tem o condão de aniquilar e substituir o modo de produção capitalista. Desprezam o fato de que o capitalismo, pelo menos no Brasil, ainda não realizou todas as tarefas históricas que permitam sua superação por um novo modo de produção, circulação e distribuição. Desdenham, pois, o socialismo como processo de transição em que pelo menos dois modos de produção conviverão em unidade e luta.

Em continuidade, Fagnani tem razão em apontar as “privatizações”, a “reestruturação produtiva” e a “estagnação econômica” como fatores que levaram os sindicatos a sofrerem “duros golpes e derrotas” e serem “forçados a adotar pautas defensivas”. E que “parte importante destes sindicatos foi capturada pela atuação do governo nos últimos anos. Isto limitou uma postura mais agressiva” e a possibilidade de o movimento sindical recuperar “sua capacidade de protagonizar os debates sobre os grandes temas nacionais e defender um projeto alternativo de sociedade”.
Também talvez seja necessário dizer que outra parte importante dos sindicatos não foi capturada pela atuação do governo, mas sim pela ação direta das instituições burguesas. Em ambos os casos, houve ampliação considerável do peleguismo sindical. Essas duas vertentes – subordinação ao governo e subordinação à burguesia – só começaram a ser questionadas à medida que ocorreu o que Fagnani chama de “recuperação da atividade econômica e do mercado de trabalho”. Acrescente-se: e em que os trabalhadores começaram a lutar, mesmo à revelia e/ou contra as direções sindicais.

Fagnani deduz disso tudo que o “enredo que acomete os partidos políticos e os sindicatos interfere na ação do movimento social em seu conjunto”. No entanto, seria necessário aduzir que isso ocorre nem tanto pela “ausência da ação mobilizadora dos partidos”, nem pela “fragmentação das pautas de luta política em torno de questões muito específicas”. Na verdade, estamos diante de uma nova geração da classe de trabalhadores assalariados. Uma nova geração oriunda principalmente das famílias pobres camponesas jogadas no caos urbano durante a modernização dos latifúndios e da industrialização do “milagre” militar. Famílias que, ao invés de se tornarem trabalhadoras assalariadas, viveram mais de 25 anos na situação de “excluídas” do mercado de trabalho.

Seria pedir demais que essas camadas populares excluídas, transformadas em assalariadas pela política de crescimento iniciada no governo Lula, apreendessem rapidamente a natureza exploradora do capital e conformassem uma classe trabalhadora combativa e organizada. Ou atendessem à ação mobilizadora dos partidos. Elas têm o direito de aprender, pela própria experiência, a lutar por aquilo que Fagnani chama de “temas setoriais ou específicos”.

Assim, são pelo menos dois os problemas dos partidos progressistas, em especial do PT. O primeiro foi seu apartamento dessas bases da sociedade, desconhecendo seus temas setoriais ou específicos, e não vivenciando a experiência de descobri-los e lutar por sua solução. O segundo, ao qual Fagnani deu atenção, é que tais partidos também ficaram ausentes de um “projeto de transformação”.
Desse modo, quando começaram a pipocar greves operárias, em especial em municípios ou estados em que o PT era governo, o partido não quis se meter. E, em geral, criticou os militantes que se incorporaram aos movimentos, em especial quando estes se chocaram com direções sindicais pelegas. E, quando as manifestações de junho de 2013 irromperam, grande parte das direções do PT foi simplesmente apanhada de surpresa.

Fagnani procura explicar as “motivações dos protestos populares de 2013 – amplificados pela violência policial” – por “dois vetores”. O primeiro seria a “crise da política e da democracia”. Existiria “convergência de opiniões” quanto ao fato de o “sistema representativo” estar “monopolizado pelos partidos”, “envelhecido e burocratizado”. Os cidadãos não se sentiriam “representados”. A crise, portanto, afetaria “todos os partidos políticos e o poder legislativo dos três entes federativos”.

No entanto, talvez seja conveniente analisar melhor essa “convergência de opiniões” sobre a “crise da política e da democracia”. Existe uma forte “convergência de opiniões” na grande mídia e no meio empresarial quanto à ampliação do sistema representativo através de um sistema participativo. Diante disso, fazem de tudo para desqualificar e criminalizar a política e reclamam de democracia em demasia. Penso que não fazemos parte dessa “convergência de opiniões”.

Mas tendo a achar que há uma “convergência de opiniões” sobre o fato de que o Brasil nunca viveu um período democrático tão longo quanto o atual. E que a crise da política seja uma crise da representação burguesa, do financiamento privado das campanhas eleitorais, e do uso do poder econômico para interferir nas decisões dos poderes do Estado. E que a crise da democracia seja a crise dos limites à participação popular e à presença e ação de conselhos populares que fiscalizem e controlem a ação dos órgãos do Estado.

Portanto, ao invés de uma “convergência de opiniões” geral, o que temos é uma divergência profunda e conflituosa entre a maior parte da burguesia, acompanhada por parcelas da pequena-burguesia, com a massa das classes populares e outras parcelas da pequena-burguesia. O fato de segmentos do PT e de alguns partidos progressistas terem aceito conviver placidamente com os sistemas partidário e de governo “envelhecidos e burocratizados” pode criar a impressão da “convergência de opiniões”. Mas não podem ser aceito pelos que, como Fagnani, pretendem mais democracia, tanto política, quanto econômica e social. O que impõe uma reforma democrática no próprio PT.

Fagnani aponta como segundo vetor das motivações dos protestos populares de 2013 “a crise… das políticas sociais universais e urbanas que atinge feições críticas nas grandes metrópoles”. Ainda segundo ele, a “insatisfação popular” sinalizaria que “os avanços… na inclusão de parcela significativa da população ao mercado de consumo, apesar de positivos, não são suficientes”. Seria preciso “ir além e promover a inclusão pela cidadania”. Esta pediria “direitos e não mercadoria”. Exigiria “serviços públicos de qualidade e não serviços regidos pelo lucro”, contestando “os dogmas do Estado Mínimo…”. E reforçaria “a visão de que o desenvolvimento requer os mesmos valores do Estado de Bem-Estar Social que foram formalmente inscritos na Carta de 1988”.

Quando fala de “Estado de Bem-Estar Social” inscrito na Carta de 1988, de que Estado realmente Fagnani está falando? De um Estado capitalista, capaz de fornecer “direitos e não mercadorias”, assim como “serviços públicos de qualidade… não regidos pelo lucro”? Algo que não existiu em parte alguma do mundo, nem na socialdemocracia europeia? Ou de um Estado socialista de tipo soviético, que tentou fazer isso e naufragou? Nessas condições, tomar como referência tal Estado hipotético talvez só confunda as coisas, ao invés de esclarecê-las.

Na prática, por um lado, a “insatisfação popular” quer direitos e mercadorias baratas e de qualidade. Por outro, também quer serviços públicos e privados de qualidade e baratos. O fato de que não tenha sido suficiente a inclusão de parcela significativa da população no mercado de consumo aponta, primeiro, para as mazelas herdadas do Estado Mínimo neoliberal. Elas reduziram a participação do Estado burguês (é isso que temos) no planejamento, na economia e nos serviços públicos, e privatizaram, de forma oligopólica, a maior parte das incumbências do Estado. E, segundo, aponta para o fato de que tais incumbências, ao invés de serem recuperadas pelo Estado, ainda continuam em mãos privadas oligopolizadas.

Em outras palavras, por um lado os governos liderados pelo PT, embora pudessem prever que a inclusão de massas consideráveis no mercado de consumo devesse levar ao surgimento de novas e maiores reivindicações, não conseguiram avançar em reformas que restituíssem ao Estado suas incumbências históricas. Por outro, desligado da vida cotidiana dessas grandes massas, o PT foi incapaz de captar as novas demandas sociais e foi apanhado de surpresa pelo que Fagnani chamou de “insatisfações latentes”. Em minha opinião, tais insatisfações eram naturalmente verificáveis e viriam à tona mais dia menos dia, mesmo que não ocorresse a violência policial.

De qualquer modo, concordo com Fagnani quanto ao fato dos protestos haverem, “em última instância”, reposto “o conflito redistributivo no centro do debate nacional”. Ou seja, a luta de classes voltou a emergir no cenário nacional, após mais de 25 anos de descenso, este causado tanto pela devastação neoliberal, quanto pelas esperanças de melhoria dos padrões de vida da população, suscitadas e prometidas pelo “projeto social-desenvolvimentista” do PT.

É verdade que tal melhoria, como diz Fagnani, “ganhou maior centralidade na agenda governamental a partir de meados da década passada”. Houve “melhor conjugação entre objetivos econômicos e sociais”. “A economia cresceu e distribuiu renda, fato inédito da história recente”. No entanto, não há fatos empíricos que apontem que se tenha caminhado “no sentido da construção de um modelo econômico menos perverso que o padrão histórico”.

A economia continuou sob domínio oligopolista de grandes corporações nacionais e internacionais, impondo à população altos preços administrados. O governo avançou pouco na reestruturação de empresas estatais capazes de alavancar o crescimento e empurrar a burguesia a investir. A inércia da desindustrialização, imposta pelos governos neoliberais, manteve seu curso. O fosso entre a massa salarial e os lucros acumulados não se reduziu, apesar das mágicas de contabilidade que procuram apontar o contrário. A realidade brasileira continuou muito mais cinzenta do que gostaríamos.

Assim, não é por acaso que Fagnani reconhece a impossibilidade de aceitar a ideia da presença de um “novo padrão de desenvolvimento” e sugere olhar “com cuidado” a “visão” de que seriam “pós-neoliberais” os “governos progressistas eleitos em diversos países da América Latina”. Para ele, “foi aberta uma nova etapa de lutas contra a hegemonia do mercado”. Neste sentido, ironicamente coincidindo com os monopólios capitalistas, que têm horror à concorrência do mercado, embora teoricamente vivam arrotando sua excelência.

Em países como o Brasil, por estranho que possa parecer, ainda será necessário impor a concorrência do mercado aos capitais oligopolizados. Talvez por isso Fagnani sustente a “necessidade de se resgatarem as Reformas de Base propostas por João Goulart e interrompidas pelo golpe militar há 50 anos”. Isto é, “as reformas política, bancária, tributária, administrativa, educacional, urbana e agrária” ainda permanecem “na ordem do dia”. Reformas que não eram mais do que democrático-burguesas, no sentido de libertarem o capitalismo e o mercado nacionais das chamadas travas do imperialismo e do latifúndio de velho tipo.

Na verdade, a burguesia fez a sua “reforma agrária” conservadora. Modernizou os latifúndios, tornados agronegócio capitalista, gerido pelos latifundiários transformados em sua fração agrícola e agrária. Milhões de camponeses agregados, rendeiros, parceiros, foreiros, foram expulsos das terras que plantavam pelo pagamento da renda, e libertados de seus meios de produção para se tornarem assalariados dos projetos industriais dos capitais estrangeiros e nacionais. Incharam as cidades, mas não completaram sua metamorfose para proletários por causa das crises que se sucederam de meados dos anos 1970 até o início dos anos 2000.

Nesse período, enquanto o agronegócio floresceu, em grande parte na esteira da elevação da demanda internacional de commodities agrícolas, a indústria brasileira e sua força de trabalho, incluindo a maior parte das empresas estatais, mergulharam num processo de privatização, desorganização, fragmentação, devastação e desnacionalização. O termo “desenvolvimento” se tornou um conceito maldito. Por um lado, devido ao keynesianismo militarista e ditatorial, gerador de crescimento econômico com miséria social. Por outro, devido à sua desqualificação pelo neoliberalismo.

Como diz Fagnani, o debate sobre o desenvolvimento foi “interditado por mais de duas décadas”. Mas retornou, segundo ele, “estruturado em duas correntes principais”: o “novo desenvolvimentismo” e o “social-desenvolvimentismo”. No caso do “novo desenvolvimentismo”, a questão social apareceria como objetivo a ser enfrentado, mas não seriam “apontados caminhos para o atendimento desses anseios”. Sua estratégia limitaria “essas possibilidades”, sendo uma constante “a omissão do papel do Estado como elemento crucial na redistribuição da renda”.

Fagnani concorda com Carneiro, que tal omissão transparece sobretudo “na distinção entre o investimento e o gasto corrente. O investimento teria importância maior para a sustentação do crescimento”. Não daria “a ênfase necessária ao gasto corrente e às transferências e a seu papel crucial na redistribuição da renda e, portanto, à aceleração do crescimento via ampliação do multiplicador”. Com base nessa avaliação crítica, o social-desenvolvimentismo decidiu “articular um projeto mais homogêneo e de escopo mais amplo”, tendo como “ideia chave” a definição do “social como eixo do desenvolvimento”.

Como? Fazendo com que o desenvolvimento das forças produtivas deixasse de ser “o principal objetivo a alcançar” e fosse “subordinado à meta de desenvolvimento social”. A “direção e intensidade do desenvolvimento do primeiro” ficariam “subordinadas às prioridades do segundo”. Em outras palavras, “a ampliação do consumo de massas fundada na redistribuição da renda seria o fator dinâmico primordial do crescimento”. Ancorada nas “políticas distributivas que acarretassem a melhoria progressiva da distribuição funcional da renda, ampliação dos rendimentos do trabalho acima da produtividade e ampliação do crédito”, a estratégia social-desenvolvimentista “permitiria superar o caráter subordinado dos segmentos produtores de bens de consumo no capitalismo”.

Como? Aproveitando, segundo Bielschowsky, o privilégio brasileiro “de possuir ao mesmo tempo três poderosas frentes de expansão”: “um amplo mercado interno de consumo de massa”; “uma forte demanda nacional e mundial por seus abundantes recursos naturais”; e “perspectivas favoráveis quanto à demanda estatal e privada por investimentos em infraestrutura (econômica e social)”. A “ênfase” continuaria no social, embora Fagnani reclame de que “questões como concentração da riqueza (rural e urbana), injustiça tributária e desigualdades (regionais e entre classes sociais) no acesso aos bens e serviços sociais básicos (como saúde, educação, saneamento, transporte de massa, alimentação e previdência social)” não mereçam “a mesma atenção”.

Não se pode negar que os governos Lula e Dilma tentaram levar adiante o social-desenvolvimentismo, tendo por base a “expansão do mercado interno de consumo de massas” e “a superação da persistente heterogeneidade estrutural”. O problema é que a expansão do mercado interno de consumo de massas bateu no teto da produção de alimentos e de bens de consumo corrente ou não duráveis. A burguesia não investiu nesses setores e eles não acompanharam o crescimento da demanda. As pressões inflacionárias resultantes colocaram à mostra as deficiências nas cadeias produtivas nacionais e o calcanhar de Aquiles do social-desenvolvimentismo.

No sistema capitalista (e o nosso país ainda vive o sistema capitalista), não é o consumo que determina a produção. Ao contrário, é a produção que cria a demanda, seja porque amplia a participação da população no emprego e, portanto, na renda, seja porque pode garantir que a oferta esteja sempre à frente da demanda. A ideia de inversão da prioridade do desenvolvimento das forças produtivas, ou dos investimentos na produção, para o desenvolvimento social, pode ser teoricamente interessante, mas cria uma contradição insolúvel.

O desenvolvimento social só pode ser realizado tendo por base a riqueza gerada pela produção. Não há exemplo histórico de que o atendimento de um mercado interno de baixa renda, como é a maior parte do mercado brasileiro, tenha levado o capital a investir para atender a população de baixa renda, se houver outros segmentos de maior rentabilidade. Para escapar do “novo desenvolvimentismo” puramente capitalista, sem cair na ilusão do “social-desenvolvimentismo”, a saída mais adequada consiste em elevar a capacidade de investimento do Estado e reconstruir empresas estatais.

Somente tendo em mãos esses poderosos instrumentos de intervenção, o Estado pode impulsionar o crescimento da economia, impor a concorrência ao mercado capitalista, e ter papel determinante no desenvolvimento social. Só com tais instrumentos o Estado pode recuperar sua capacidade de agir sobre a burguesia e sobre o caos do mercado, orientar o processo de investimento privado e de redistribuição de renda, e ter algum papel positivo ao lado do povo na luta de classes.

Porém, ao contrário do que gostaríamos Fagnani e todos nós, esse processo de desenvolvimento ainda não poderá “promover uma sociedade mais homogênea e igualitária”. Para chegar a tanto será necessário elevar o nível das forças produtivas a um estágio em que seja possível atender todos os membros da sociedade sem a necessidade de exigir deles o trabalho obrigatório da sobrevivência. Por algum tempo, se o Estado adotar a estratégia acima, apenas será possível “promover a redistribuição da renda” de forma menos desigual, baseado no grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas do país.

Tal desenvolvimento inclui o nível técnico e cultural das forças de trabalho, contribuindo para reduzir ainda as desigualdades sociais, restringir o caos do mercado e resgatar a participação política da população. O que nos faz voltar à preliminar deste texto. Isto é, à necessidade de ter uma força social capaz de fazer pressão sobre as classes dominantes e suas instituições para democratizar ainda mais a política e democratizar a economia. Ou seja, ampliar os mecanismos de participação popular no Estado, romper o domínio dos oligopólios, e reforçar o papel do Estado para orientar o desenvolvimento num sentido cada vez mais social.

Sem a criação e mobilização dessa força social popular e democrática será difícil pensar no que Fleury chama de “resgate da democracia e da política”, e ter êxito na “agenda de desenvolvimento”. O PT, em especial, precisa fazer uma forte inflexão para se religar às camadas populares, participar ativamente das manifestações populares, reconquistar os sindicatos para defenderem os interesses dos trabalhadores, cobrar dos governantes, principalmente dos seus representantes, ações efetivas para oferecer serviços públicos de qualidade, incorporar os conselhos populares nos processos de decisão, e adotar como prioridade as demandas populares por transporte público, saúde, educação, saneamento e segurança.

A criação e mobilização de uma poderosa força social popular e democrática possibilitará impor ao Congresso a proibição do financiamento privado das campanhas, a votação em lista, a fidelidade partidária, o fim das coligações proporcionais, o funcionamento pleno dos conselhos populares e a democratização da mídia. Esses são os primeiros passos para uma reforma política mais profunda.

Além disso, com essa nova força social será possível, como quer Fagnani, avançar na libertação do Estado das amarras impostas pelo mercado (realmente existente), recuperar sua capacidade de planejamento e de coordenação de políticas estruturais de longo prazo, o que inclui sua capacidade de investimento e de redistribuição de renda. A capacidade de investimento é o vetor principal daquilo que Fagnani chama, com o auxílio de Cano, de “crescimento econômico baseado na indústria e manufatura” como “condição necessária para o desenvolvimento”.

Isto significa a superação do social-desenvolvimentismo e a adoção de um desenvolvimento comandado pelos instrumentos produtivos do Estado, tendo como prioridade o desenvolvimento das forças produtivas. Um desenvolvimento que reverta a regressão dos manufaturados na pauta exportadora, os déficits comerciais de produtos industriais de média a alta tecnologia, e a queda da participação da indústria de transformação no PIB. Um desenvolvimento que promova a geração de novos empregos, intensifique a redistribuição da renda, e atenda à elevação do poder de compra das camadas trabalhadoras e pobres da população mediante maior oferta de alimentos e bens industriais não duráveis, e o combate aos preços de monopólio praticados no mercado brasileiro.

A sustentabilidade desse padrão de desenvolvimento, cuja conceituação ainda está por ser feita, depende da articulação de algumas políticas estratégicas. Em primeiro lugar, de uma acertada combinação das duas revoluções industriais com a terceira revolução científica e tecnológica, que garanta a geração anual de novos empregos, paralelamente ao aumento da produtividade. Em segundo lugar, de uma política de atração de investimentos produtivos de acordo com um plano definido de adensamento das cadeias produtivas e de fortalecimento dos setores estatais e privados nacionais. Em terceiro lugar, de uma política clara de articulação do desenvolvimento econômico e social com a proteção e recuperação ambiental. E, em quarto lugar, de políticas de exportação e importação que saibam disputar tanto os mercados de matérias primas quanto de manufaturados e de tecnologias.

Fagnani frisa que mudanças estruturais desse tipo são “de difícil encaminhamento no curto prazo”. Elas caminhariam “no contrafluxo da ideologia dominante e da correlação de forças favorável ao poder econômico”. A “reação dos mercados” e o “terrorismo econômico” continuariam em marcha e têm forçado “o governo a recuar”.

Porém, se o “dilema” consiste em permitir ao governo “arbitrar entre a pressão das ruas e as pressões dos mercados”, vivemos um momento excepcional para fazer com que as ruas pressionem tanto o governo, quanto pressionem os mercados. Tudo depende de que o PT e seus candidatos coloquem, na presente campanha eleitoral, clara e didaticamente, para as ruas, as mudanças que pretendem introduzir para atender suas reivindicações e aspirações.

Se continuarem calados, ou falarem baixo, como tem acontecido nos últimos tempos, certamente serão atropelados pelo “contrafluxo” da mídia, dos mercados e do terrorismo do sistema financeiro. E o debate sobre a agenda do desenvolvimento terá que ser totalmente refeito.

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