Francisco em Santa Cruz de la Sierra

Frederico Mazzucchelli

O discurso do Papa Francisco em Santa Cruz de la Sierra, em 09/07/15 passou praticamente despercebido pela grande imprensa. O destaque foi apenas discreto e a repercussão mínima. Rotulado como “anticapitalista”, o discurso suscita indagações pertinentes.

Será o Papa um denunciante banal?

É manifesta a preocupação do Papa com o destino dos deserdados e excluídos: “reconhecemos que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas em sua dignidade”. Os “mais elementares direitos econômicos, sociais e culturais” são negados “a milhares de milhões de irmãos”. Para o Sumo Pontífice, um sistema que promove tamanhas “situações de injustiça (de) que padecem os excluídos de todo o mundo (…) atenta contra o projeto de Jesus”.

Não é possível contrariar os fatos. Salta a olhos vistos a gravidade da situação social por todo o mundo. Não se trata apenas dos desempregados, subempregados, despossuídos ou precariamente ocupados da Bolívia, a quem o Papa dirigiu suas palavras. Nos Estados Unidos (sim, nos Estados Unidos!), na América Latina, na Europa Central e do Leste, na Europa Ocidental, na Ásia ou na África é flagrante a degradação das condições de vida por todo o mundo. Quer na Colômbia, na República Dominicana, na Jamaica, na Irlanda, na Grécia, em Portugal, na Eslováquia, na Espanha, na Bósnia, na Hungria, na Sérvia, na Letônia, na Turquia, no Irã, na Jordânia – para mencionar apenas alguns países – as taxas de desemprego são superiores a dez por cento e, em certos casos, superiores até a vinte por cento. O drama dos africanos que morrem no Mediterrâneo buscando chegar à Europa é uma ofensa aos mais elementares sentimentos humanitários. É importante sublinhar que se assiste, hoje, à marcha de um processo regressivo. Existe uma indiscutível deterioração das condições de vida, emprego e trabalho por todo o mundo. É essencial repudiar a constatação simplista, cínica e resignada de que “sempre foi assim”. Não é verdade: a piora das condições de emprego e trabalho é correlata às transformações da economia capitalista a partir da desorganização dos anos 1970. O colapso das normas de cooperação e solidariedade forjadas no pós-guerra (o chamado “consenso keynesiano”) e a reentronização da lógica pura e dura dos mercados produziram impactos avassaladores sobre o equilíbrio das sociedades. A recente crise de 2007-8, cujos efeitos ainda não foram dissipados, tornou o quadro social apenas mais deprimente.

Não, o Papa não é um denunciante banal!

Será o Papa um ambientalista retrógrado, contrário à marcha inexorável do progresso?

Segundo Francisco, não só os homens são vitimados pela “economia que exclui e mata”. A mesma economia que lança milhões de trabalhadores ao desamparo e à pobreza, também “destrói a Mãe Terra”: “reconhecemos que as coisas não andam bem quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob ameaça constante”.

Não é necessário nenhum esforço especial para perceber que existe uma tensão permanente entre a preservação do meio ambiente e a expansão da agricultura, da pecuária, da infraestrutura ou da indústria. Os indicadores de crescimento (taxa de variação do PIB; milhões de veículos automotivos produzidos; milhões de metros quadrados construídos; milhões de hectares plantados) não forçosamente captam a melhoria das condições gerais de vida das populações. Podem até significar o seu contrário. As violências perpetradas ao meio ambiente, digamos, nos últimos duzentos anos foram assustadoras. Qual foi o impacto ambiental da Revolução Industrial na Inglaterra? O quê sucedeu com os lagos, os rios, as florestas, o solo e o ar dos EUA a partir da expansão frenética posterior à Guerra de Secessão? O quê ocorreu na URSS durante a “industrialização forçada” de Stalin? O quê ainda hoje ocorre na China? A formação da consciência é sempre uma resposta a situações intoleráveis. Não é diferente com a consciência ambiental: foram necessários séculos de predação e destruição para que as sociedades reagissem à mutilação da natureza. A “economia justa” advogada pelo Papa pressupõe o aprimoramento do ser humano “em harmonia com a natureza”.

Não, o Papa não é um ambientalista retrógrado!

Será o Papa um discípulo disfarçado de Marx ou de Keynes?

De acordo com as ponderações de Francisco, o sistema, que “impõe a lógica do lucro a todo custo” é aquele em que “o dinheiro reina ao invés de servir”. É, em uma palavra, o capitalismo, livre de qualquer disciplina e regulação. Para o Papa, é esse o mal maior que explica as mazelas contemporâneas: “Está-se a castigar a terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. (…) Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, [e] faz lutar povo contra povo (…).”

Marx demonstrou à saciedade que a busca frenética da valorização, liberta da tutela da sociedade, produz consequências dramáticas para os homens e a natureza. Keynes, em várias passagens, referiu-se à “morbidez repugnante” do “amor ao dinheiro”. A crítica ao desejo ilimitado pelo dinheiro é comum a ambos os autores, certamente os críticos mais perspicazes e contundentes do capitalismo: para Marx esta é uma característica determinante e constitutiva do regime do capital, que tem na fórmula D-D’ (dinheiro que engendra mais dinheiro) a sua razão suprema. Para Keynes, o “love of money” é uma patologia, uma aberração, que deveria ser extirpada através da tributação progressiva e da “eutanásia do rentista”. Entretanto, não é necessário ser um seguidor fiel de Marx ou de Keynes para perceber os efeitos dissolventes que a lógica exclusiva do lucro monetário exerce sobre a vida social. Quantos romancistas ou pensadores já não abordaram esta questão? Francisco enfatiza o dado crucial: quando o dinheiro se converte no altar dos homens as consequências tendem a ser dramáticas para as sociedades e para a natureza.

Não, o Papa não é um discípulo disfarçado de Marx ou de Keynes! Entretanto, sua percepção sobre a corrosão que a “ambição desenfreada de dinheiro” exerce sobre as sociedades é convergente com as observações críticas desses dois notáveis autores.

Será o Papa um “populista” que não se dá conta que o “Estado deve caber no PIB”?

Já se mencionou que, segundo Francisco, “os seres humanos e a natureza não devem estar ao serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra. (…)”. A economia almejada pelo Papa não é a economia que idolatra o dinheiro, mas sim a economia voltada ao bem estar dos homens: “Uma economia verdadeiramente comunitária – poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração cristã – deve garantir aos povos dignidade, ‘prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos’. Isto envolve [não apenas] os ‘3 T’ [Terra; Trabalho; Teto], mas também [o] acesso à educação, à saúde, à inovação, às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e à recreação . Uma economia justa deve criar as condições para que cada pessoa possa gozar duma infância sem privações, desenvolver seus talentos durante a juventude, trabalhar com plenos direitos durante os anos de atividade e ter acesso a uma aposentadoria digna na velhice. É uma economia onde o ser humano, em harmonia com a natureza, estrutura todo o sistema de produção e distribuição de tal modo que as capacidades e necessidades de cada um encontrem um apoio adequado no ser social. (…)

Esta economia não é apenas desejável e necessária, mas também possível. Não é uma utopia, nem uma fantasia. É uma perspectiva extremamente realista. Podemos consegui-la. Os recursos disponíveis no mundo, fruto do trabalho intergeracional dos povos e dos dons da criação, são mais que suficientes para o desenvolvimento integral de ‘todos os homens e do homem todo’”.

Cabe, de início, uma observação: a economia imaginada pelo Papa em tudo se assemelha àquela idealizada por Keynes em 1930 [“Possibilidades Econômicas de Nossos Netos”]: “O problema econômico (…) o problema da necessidade, da pobreza e da luta econômica entre as classes e as nações, não é senão uma espantosa confusão, uma transitória e desnecessária confusão. (…) O mundo ocidental já tem os recursos e a técnica (…) capazes de reduzir o problema econômico (…) a uma posição de importância secundária. (…) Não está distante o dia (…) em que a arena do coração e da razão deverá ser ocupada, ou reocupada, por nossos problemas reais: os problemas da vida e das relações humanas, da criação, do comportamento e da religião. (…) Não superestimemos a importância do problema econômico e nem sacrifiquemos a suas supostas necessidades outras questões de maior significado e permanência. A economia deve ser uma questão reservada aos especialistas, como a odontologia. Seria estupendo se os economistas pudessem ser considerados pessoas modestas e competentes como os dentistas.” Tais palavras podem parecer delirantes. O chamado “problema econômico” – o grilhão da necessidade, a luta cotidiana pela sobrevivência, a busca desesperada pelo dinheiro – continua a infernizar os homens. Não se deve perder de vista, contudo, que a humanidade tem, sim, condições técnicas de superar o tormento da escassez. Alguém em sã consciência pode duvidar, por exemplo, que a humanidade já de há muito dispõe dos recursos e da técnica necessários para eliminar a fome do planeta? Para eliminar o analfabetismo? Para eliminar as doenças elementares? Para o provimento universal da água potável? Para eliminar o déficit de habitações? Para garantir o acesso de todos à educação formal? Certamente, este não é um problema técnico. E nem, tão pouco – embora possa parecer o contrário – um problema de falta de recursos. O problema é unicamente político: são os interesses das classes dirigentes e o egoísmo das nações dominantes que impedem o real enfrentamento das questões básicas da condição humana.

Uma questão correlata é que a “economia justa”, a “economia de inspiração cristã” advogada pelo Papa, pressupõe o financiamento adequado dos dispêndios públicos. É impossível garantir o acesso universal à educação, à saúde, à habitação, à “infância sem privações” e à “aposentadoria digna na velhice” sem a presença determinante do Estado. As condições sociais e políticas do pós-guerra, lembra o Professor Belluzzo1, impuseram “importantes transformações no papel do Estado” que resultaram no “surgimento de novos encargos e obrigações”. A consequência foi o aumento da carga tributária e da despesa pública. A exitosa implantação do Welfare State na Inglaterra fez-se acompanhar, obviamente, do aumento das receitas públicas. Os “Pagamentos aos Indivíduos” nos EUA, que representavam cerca de 1,0% do PIB em 1940, alcançaram uma proporção próxima a 10,0% em 1975; neste mesmo período, a carga tributária cresceu cerca de 70% 2. A elevação da carga tributária – e do dispêndio público – a partir da segunda metade do século XX foi o resultado de um consenso político decorrente da ampliação dos direitos sociais.

O espaço fiscal dos orçamentos públicos, convém recordar, é o locus onde desaguam os interesses conflitantes das sociedades. Os endinheirados vociferam contra os impostos; os despossuídos deles necessitam. A maré conservadora inaugurada por Thatcher e Reagan insiste em buscar a redução da carga tributária (sobretudo para os ricos) e anatematizar o gasto social (entendido como assistencialismo irresponsável). A “economia justa” do Papa, ao contrário, tem como premissa a elevação seletiva da carga tributária e a utilização criteriosa do dispêndio público.

Não, o Papa não é um “populista”! Ele sabe perfeitamente que, com uma tributação adequada é possível direcionar a despesa pública para objetivos sociais e comunitários, sem que se produzam desequilíbrios estruturais nas contas públicas.

Será o Papa um anti-imperialista tosco ou um cepalino tardio?

Segundo o Pontífice, “o colonialismo, novo e velho, que reduz os países pobres a meros fornecedores de matérias-primas e mão-de-obra barata, gera violência, miséria, emigrações forçadas e todos os males que vêm juntos (…) precisamente porque, ao pôr a periferia em função do centro, nega-lhes o direito a um desenvolvimento integral. (…) Digamos NÃO às velhas e novas formas de colonialismo.”

As formas de dominação se transformaram com o tempo. Até a eclosão da Primeira Guerra Mundial prevalecia a presunção de que a força das nações decorria da extensão de seus impérios. Com o final da conflagração ruíram o Império Germânico, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. O Império Russo se dissolveu com a revolução bolchevique de 1917 e o Tratado de Brest-Litovski. No entre-guerras, a Inglaterra e a França – senhoras da Liga das Nações – expandiram a amplitude dos respectivos domínios coloniais. Ao final da Segunda Guerra, as antigas colônias tornaram-se nações independentes. A Inglaterra e a França converteram-se em potências de segunda linha. A partir de então, a hegemonia norte-americana se impôs através da força de sua economia e de sua supremacia militar. Os países capitalistas passaram a gravitar em torno dos EUA. Entre os anos 1950 e 1970, a Europa Ocidental e o Japão se recuperaram e passaram a fazer frente aos EUA nos mercados mundiais. Foi este, também, o momento em que se deu a industrialização de parte da chamada periferia. A partir dos anos 1980 os interesses da alta finança passaram a ganhar destaque no interior das nações capitalistas. Ao mesmo tempo, as grandes corporações deslocaram parte relevante de suas plantas e processos produtivos para as regiões com abundância de mão-de-obra (Ásia, em particular). As formas de dominação tornaram-se mais sutis, envolvendo a tutela da política cambial, da política fiscal e da política monetária. Os países com moedas não-conversíveis ficaram a mercê dos ataques especulativos dos grandes capitais internacionais. O raio de ação e manobra das políticas econômicas nacionais se estreitou consideravelmente. A “excelência” e o “bom comportamento” das nações passou a ser medido pelas avaliações das agências internacionais de risco, em contubérnio com os grandes bancos e fundos de investimento internacionais. O “novo colonialismo”, a que faz referência o Papa, é hoje, acima de tudo, a subserviência aos ditames do capital financeiro.

Não, o Papa não é um anti-imperialista tosco e nem um cepalino tardio! As nações estão, sim, submetidas a sérias restrições no exercício de políticas econômicas soberanas. Não por acaso, incontáveis governos progressistas tornam-se reféns dos interesses dominantes e se veem constrangidos a praticar políticas ortodoxas.

Será o Papa contrário a liberdade de imprensa?

O Papa não hesita em afirmar que a dominação imposta pelo dinheiro estabelece uma “ditadura sutil”, um “elo invisível que une cada uma das exclusões”. Francisco não usa meias palavras ao se referir ao “poder anônimo do ídolo dinheiro” ou à “tirania do ídolo dinheiro”. É o poder do dinheiro o elemento ordenador e, ao mesmo tempo, desagregador da vida social. Se o dinheiro é o “elo invisível” que comanda as exclusões e a predação da natureza, a “destruição” e domesticação das mentes fica a cargo dos meios de comunicação, também eles submetidos à lógica monetária: “a concentração monopolista dos meios de comunicação social” ao “impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural” esvazia a capacidade crítica dos homens.

Segundo o romancista e jornalista Leonardo Paduro, “fazer hoje um jornalismo honesto, comprometido com a verdade e a sociedade, é uma postura que está se tornando cada vez menos comum ao redor do mundo3.” Paduro refere-se aos “poderes visíveis e invisíveis, mas sempre castradores” que convertem o jornalismo em “um meio a mais para exercer e validar o domínio dos verdadeiramente poderosos: os políticos e os donos do dinheiro em todas as partes do mundo.” É impossível negar esta constatação: a “concentração monopolista dos meios de comunicação”, a que faz referência o Papa, é parte decisiva e integrante se um sistema de dominação em cuja cúspide se encontram – em derradeiras contas – os “donos do dinheiro”. O espaço para o exercício do “jornalismo honesto” é cada vez mais restrito.

As consequências dessa dominação não são triviais. A “uniformidade cultural” mencionada por Francisco, significa, na verdade, o esmagamento da razão. Ao definir os conteúdos (temas, problemas, questões) e comportamentos, os meios de comunicação representam uma poderosíssima ferramenta de conformação (e deformação) dos espíritos. A reiteração continuada de proposições simplistas e banais transforma os homens em autômatos idiotizados repetidores de clichês baratos. A visão que os homens têm da economia (a exaltação da austeridade, por exemplo), da política (a demonização da esquerda, por exemplo), das relações internacionais (a condenação sumária das ações de Putin, por exemplo), da justiça (o desejo irracional de punição e vingança, por exemplo) é – entre tantas dimensões – fortemente condicionada pela estratégia dos grandes meios de comunicação. Aqui, também, se trata de uma “ditadura sutil” já que os conteúdos são veiculados sob o manto de uma suposta neutralidade e de um duvidoso “dever de informar”.

Hoje, o “bom jornalista”, assim como o “bom político”, “o bom economista”, ou o “bom artista” não é aquele que é fiel a seus princípios e a seu talento, mas aquele que se ajusta docilmente às diretrizes previamente estabelecidas pela direção dos grandes meios de comunicação.

Não, o Papa não contrário à liberdade de imprensa. O Papa é contrário, sim, à “concentração monopolista dos meios de comunicação social”.

Será o Papa um inimigo da austeridade?

O “colonialismo ideológico” imposto pelos meios de comunicação proclama, entre tantas banalidades, as virtudes da “austeridade”. Já para o Papa, não resta dúvida que “a imposição de medidas de austeridade (…) sempre aperta o cinto dos trabalhadores e dos pobres”.

Preliminarmente, convém esclarecer alguns pontos:

A exaltação da “austeridade” tem raiz na recorrente confusão entre a lógica da economia doméstica e a lógica da economia capitalista. Uma família, desde logo, não deve gastar mais do que ganha, caso contrário as consequências certamente serão desastrosas. Já no que diz respeito ao conjunto da economia, quão maior for o gasto, maior será a renda: quanto mais se investir e se consumir, maior será a renda. Assim, enquanto para as famílias parte-se da renda para se determinar o gasto, para o conjunto da economia parte-se do gasto para se determinar a renda. O economista polonês Michal Kalecki e Keynes sempre insistiram neste ponto: na economia capitalista são as decisões de gasto que comandam a formação da renda, e não o contrário.

Em relação às contas públicas, o comportamento da receita é eminentemente pró-cíclico: quando se expande a renda da comunidade também cresce a receita pública. Inversamente, quando cai a renda comunidade cai também a receita pública. É por essa razão que nas conjunturas de recessão o déficit público tende a aumentar: não só as receitas deixam de crescer como, ademais, as despesas tendem a se elevar.

Pois bem, propor a “austeridade” em uma conjuntura recessiva é um suicídio: cortar os gastos públicos em um contexto de queda do nível de atividades significa apenas dar mais alento à recessão. O exemplo clássico é o de Brüning, na Alemanha (março de 1930 a maio de 1932), que através de uma política draconiana de cortes, transformou uma recessão preocupante em uma depressão selvagem, o que facilitou a ascensão dos nazistas ao poder. O economista sueco Gunnar Myrdal e Keynes sugeriram – corretamente – que nas conjunturas de alta os governos deveriam buscar o superávit em suas contas (de modo a moderar o impacto da expansão), ao passo que nas conjunturas de baixa deveriam permitir e até induzir o déficit público (de modo a moderar o impacto da recessão). Em poucas palavras, ao contrário do que ocorre com as famílias, na recessão os governos devem ampliar, e não cortar os gastos.

A banalidade difundida pelos meios de comunicação insiste em associar o gasto público ao desperdício, ao nepotismo e à corrupção. É verdade: existe o desperdício, existe o nepotismo, existe a corrupção, e esses males devem ser sistematicamente combatidos. Esses males não são exclusivos do setor público (eles também existem no setor privado) e não é em virtude de sua existência que se deve advogar a permanente redução do dispêndio público. Como melhorar a educação, a saúde e a segurança, como proteger o meio ambiente, como ampliar a infraestrutura, como ampliar a oferta de habitações populares sem, ao mesmo tempo aumentar o gasto público? A cruzada conservadora contra o gasto público simplesmente desconsidera estas questões. A qualidade do gasto público deve ser permanentemente aprimorada através da atualização e modernização dos mecanismos de gestão e controle de produtividade. Esta necessidade em nada se confunde com a apologia simplista dos cortes indiscriminados.

Na verdade, a discussão sobre o superávit primário tem como suposto a necessidade de gerar recursos para o pagamento dos encargos da dívida pública. A despesa pública se decompõe, grosso modo, em quatro grandes itens: pessoal, custeio, investimento e dívida. As propostas de “austeridade” sempre visam a contenção ou redução dos três primeiros itens em favor do quarto: os gastos com pessoal, custeio e investimento devem ser limitados, de modo a liberar recursos para o pagamento dos encargos da dívida. Estes últimos serão tão maiores quão maior for a taxa de juros. É um esforço inglório – e injusto! – buscar conter os “gastos primários” (pessoal, custeio e investimento) quando, ao mesmo tempo, se elevam as taxas de juros. A correta gestão dos orçamentos públicos pressupõe a busca da eficácia na arrecadação e na administração da despesa, o que não significa a adesão irrefletida aos programas de “austeridade”.

O Papa é, sim, contrário à “austeridade” enquanto norma cega da política fiscal: são os “trabalhadores e os pobres” as suas principais vítimas!

Será o Papa contrário à liberdade individual?

Em seu discurso, Francisco fez uma referência pontual, porém precisa, à “insatisfação e à tristeza individualista que escraviza”. Esta é, sem dúvida, uma deplorável marca do convívio social contemporâneo. Os homens vivem em permanente ansiedade, premidos pela competição frenética ou pela busca desesperada da sobrevivência. Os afortunados, no afã de multiplicar seus recursos, vivem permanentemente obcecados à procura de sempre novas oportunidades de ganho. Os remediados, ansiosos por se tornarem afortunados, não medem esforços para galgar na escala social e usufruir os bens e serviços que estão à disposição dos ricos. É a escravidão do love of money! Os deserdados – a imensa maioria das populações – lutam contra todas as adversidades no intuito de alcançar condições minimamente dignas de sobrevivência. Nem sempre são bem-sucedidos!

Um olhar retrospectivo mostra que no pós-guerra (até meados dos anos 1970) houve uma substancial melhoria da distribuição da renda nos países capitalistas centrais. A taxa de desemprego era extremamente reduzida, os salários reais cresciam paralelamente à elevação da produtividade, a tributação era mais justa, a rede de proteção social do Welfare State oferecia garantias aos indivíduos da infância à velhice, os ganhos especulativos eram limitados e existia um compromisso explícito dos governos com o bem-estar das populações. Na verdade, havia um consenso político fundado na convicção de que era essencial sepultar os dramas dos anos de depressão e buscar esquecer os horrores da guerra. Havia, é óbvio, contradições e conflitos, mas esses se davam no âmbito de um contexto em que as normas de cooperação e solidariedade se sobrepunham aos interesses particularistas e às tendências desagregadoras. Também nos países da periferia o processo de industrialização fez-se acompanhar da inquestionável elevação do padrão de vida das populações.

A principal consequência das atribulações dos anos 1970 é que as referidas normas de cooperação e solidariedade foram abandonadas. O capital abraçou-se a seu conceito, as regulamentações foram indiscriminada e progressivamente extintas, os sindicatos foram fragilizados, o Estado foi estigmatizado e os homens mais uma vez se viram lançados ao moinho impiedoso da concorrência. As finanças libertaram-se dos grilhões do Estado e passaram a comandar o destino das nações. As crises se multiplicaram, o desemprego se elevou e as condições de vida se degradaram. Reintroduziu-se a voracidade darwinista no interior das sociedades, e na “guerra de todos contra todos” o egoísmo individualista se consagrou como o padrão estabelecido de conduta. Houve uma regressão civilizatória evidente, onde o individualismo (a desconsideração pelo próximo), somado ao ressentimento (a frustração pela riqueza não alcançada) e à ignorância (a desinformação promovida pelos grandes meios de comunicação) produziu uma legião de “ogros urbanos” preocupados apenas com o “seu” carro, o “seu” corpo, o “seu” dinheiro, o “seu” sucesso, o “seu” prazer etc. etc. A delicadeza, a gratidão e a solidariedade são cada vez mais corpos estranhos nas sociedades contemporâneas.

Não, o Papa não é contrário à liberdade individual! Ele é, sim, contrário ao indivíduo embrutecido, que perdeu a capacidade de amar o próximo.

Será o Papa um subversivo?

O Papa não usa meias palavras: “Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. (…) A nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro”.

Pretender uma “mudança de estruturas” que desafie e derrote “a tirania do ídolo dinheiro” é, sem dúvida, uma tarefa dificílima, que tropeça com obstáculos hoje praticamente intransponíveis. Segundo Francisco, esta pretensão não é uma utopia e nem tão pouco uma fantasia. O Papa, desde logo, busca esta mudança por meio da persuasão, da demonstração de evidências e do convencimento dos espíritos (à maneira de Keynes). Conta, para tanto, com sua enorme autoridade moral.

Entretanto, para que haja uma efetiva “mudança de estruturas” é necessária uma correlação adequada de forças políticas em âmbito mundial. Tal correlação não se vislumbra no horizonte próximo. Após a violência da crise de 2007-2008 seria previsível que se produzissem transformações significativas no modus operandi do capitalismo. Isto, infelizmente, não ocorreu. As finanças desregulamentadas continuam a ditar as regras da economia mundial e as crises são invariavelmente atribuídas à irresponsabilidade … dos governos (e não das próprias finanças)! Nos EUA, a força dos republicanos é inquestionável; na Alemanha, a postura de Angela Merkel em nada se assemelha a um desejo sequer remoto por mudanças; na França, o socialismo de François Hollande tornou-se caricato e é iminente a ascensão da direita nacionalista ao poder; na Inglaterra, as políticas de David Cameron são notoriamente retrógradas; na China, a preocupação de Xi Jinping é a de consolidar as conquistas econômicas recentes e avançar nos mercados mundiais; na Rússia, as ações de Putin têm por objetivo neutralizar as investidas da OTAN. Quais forças políticas poderiam ensejar uma real “mudança de estruturas”?

Neste quadro, o Papa é, sim, um subversivo. Sua “fé revolucionária” representa um alento para todos que o respeitam e a esperança, ainda que remota, de um mundo melhor.

Referência

1 – A (Des) Constituição de 2015. Carta Capital, nº 863, 19/08/15, p.38.

2 – Herbert Stein: Presidential Economics – The Making of Economic Policy from Roosevelt to Clinton. Washington: 1994, pp.456-7; 460.

3 – O Quarto Poder? Folha de São Paulo, 15/08/15, p. C10.