Gestão Macroeconômica e Desenvolvimento

Antonio Prado
Antonio Prado é secretário executivo adjunto da Cepal. Professor licenciado da FEA-PUC-SP. Foi economista do Dieese, Senado Federal e BNDES.

A América Latina e Caribe são continente em permanente redemoinho econômico. Aqui, mesmo a bonança é tema complexo. Assim é que a década que inaugura o século XXI nessa região foi particularmente atípica. O chamado epíteto do casillero vazio, forjado por Fernando Fajnzylber nos anos 1980 – que registrava a ausência em nossa história econômica da coincidência entre crescimento do PIB e distribuição de renda – viu-se superado pela novidade de um período em que crescemos em média mais que nas duas décadas anteriores, quase-perdidas, diminuindo a fome e a pobreza intensamente; e, de forma incipiente, mas claramente observada, também a desigualdade na distribuição pessoal da renda. Alguns países, até com queda na desigualdade na distribuição de salários e outras rendas do capital.

AMÉRICA LATINA E CARIBE: COMPARAÇÃO ENTRE O PIB PER CAPITA E A INCIDÊNCIA DA POBREZA, 1980-2013

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Fonte: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), sobre la base de cifras oficiales.

Esse é um período notável, mais pelo avanço social que pelas transformações estruturais. Os governos souberam aproveitar a coincidência entre preços de commodities em forte crescimento, a expansão da liquidez internacional e do crédito, o forte crescimento do comércio internacional, das remessas de imigrantes, o influxo de gastos de turistas e de investimentos diretos estrangeiros, para acumular reservas, pagar dívidas e ampliar o espaço fiscal. Tal foi o afluxo de divisas que mesmo liquidando dívidas com o FMI, Clube de Paris e recomprando títulos da renegociação de moratórias dos anos 1990, a taxa de câmbio se apreciou nos países da região, independente do regime cambial adotado.

O acúmulo de reservas foi um tema em debate. A teoria convencional estabelece que em um regime de câmbio flutuante pleno com livre fluxo de capitais não seria necessário acumular reservas e carregar os custos envolvidos nesta opção. Nas recomendações de política baseadas em observações empíricas, o volume de reservas deveria situar-se entre 3 a 4 meses de importações, a depender das condições de crédito internacional e de dívida de curto prazo. Os países da região – mesmo os que adotam regimes de metas de inflação e câmbio flutuante administrado – foram muito além de qualquer parâmetro conhecido, havendo os que hoje chegam a ter 48% do PIB em reservas (Bolívia, 2014, p.ex.). Fizeram mal?

Essa opção não parece ser nonsense, e o teste foi o da crise financeira internacional deflagrada em 2007-2008. O default dos créditos subprimes na economia norte-americana iniciou uma crise sistêmica que terminou por fulminar as casas de crédito imobiliário e por fim, quebrar as duas grandes instituições estatais de seguro imobiliário, Freddy Mac, Fanny Mae e outras grandes instituições super alavancadas naquele país, como o Lehman Brothers e Merril Lynch, dentre outros. Em momento de total incerteza sobre a solvência das instituições financeiras, o sistema de crédito paralisou em escala planetária, afetando o nível doméstico de produção dos países e o comércio internacional, drasticamente.

Essa é considerada a maior crise econômica desde os anos 1930, e uma das maiores da era do capital. A velha e conhecida frase de que quando a economia norte-americana sofre um resfriado, América Latina fica com pneumonia, voltava a assombrar nosso horizonte. Mas não foi o que ocorreu. De fato, em 2009, tivemos uma recessão continental, com efeitos muito heterogêneos por sub-regiões, mais dramática em México e América Central que na América do Sul, e trágica no Caribe. Mas a capacidade de recuperação foi surpreendente, apesar de também assimétrica.

México e América Central, por sua maior exposição comercial à economia de Estados Unidos da América do Norte, sofreram mais, no primeiro caso, por exportar 80% de bens e serviços para os EUA e por adotar um regime ortodoxo de política econômica; e no segundo, também pela concorrência chinesa e por não ser exportador das commodities mais valorizadas no mercado, na verdade vulnerabilizados por serem importadores líquidos de energia e alimentos.

A América do Sul recuperou-se em 2010 e não o fez seguindo o Consenso de Washington, nesta altura já bastante desmoralizado, e tampouco a ortodoxia neoclássica e monetarista. Os países dessa sub-região, sem exceção, adotaram, em doses diferentes, políticas anticíclicas1.

Alguns dando mais peso ao instrumento fiscal, outros ao creditício e até às instituições do mercado de trabalho, como o salário mínimo e os rendimentos de funcionários públicos, e/ou combinações diversas dessa caixa de ferramentas. Não houve corte generalizado de gastos públicos e muito menos de gastos sociais; pelo contrário, os gastos sociais aumentaram. Não houve aumento dos juros e corte de créditos; pelo contrário, os bancos centrais ampliaram a liquidez e ofereceram crédito direto ou garantias às operações de comércio internacional. Houve estímulos aos setores produtivos mais relevantes e ao comércio varejista. Operou-se um estímulo aos gastos de consumo e investimentos, apesar de menos efetivos nesse último caso, por razões institucionais e de gestão.

As políticas de enfrentamento da crise na China, mediante pacotes de gastos em infraestrutura, permitiram que esse país continuasse absorvendo grandes importações de minérios e alimentos, o que permitiu a volta do nosso comércio internacional a patamares anteriores aos da crise, nos anos 2010, 2011. A América Latina voltou a crescer, mas a trajetória nos anos pós-crise revelou que nossa resiliência tem limites.

A segunda onda da crise internacional, agora alimentada pelo colapso de países na periferia da Europa, Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha, se somou à onda anterior antes de ela ter sido absorvida. Com o mercado de EUA ainda sem se recuperar plenamente, a recessão europeia afetou o comércio internacional uma vez mais, agora caindo a níveis de estagnação. China não teve como manter seu nível de crescimento pré 2007-2008 e o ajustou em vários pontos, de 11% para 7,5%.

Desde então, a taxa de crescimento da América Latina vem desacelerando, primeiro pelos efeitos nos países mais industrializados da região, Brasil, México e Argentina, e depois nos mineiros, Chile e Peru, o que se deverá ver também nos países petroleiros, Bolívia e Equador, agora que caem também as cotações do petróleo abaixo dos US$100.

Essa dinâmica não é desconhecida. Na verdade, repete a de outros momentos históricos e já foi descrita pelos autores cepalinos clássicos. Abundância de divisas em períodos de booms de preços de commodities seguido por crises cambiais na reversão cíclica da economia mundial. A deterioração dos termos de intercâmbio é recorrente. Em períodos de crescimento da economia mundial, os preços de commodities sobem, por razões de demanda e/ou especulação em mercados de futuros, favorecem a entrada de divisas via canal comercial que logo é seguido por influxos na conta de capitais. Há um crescimento do crédito, do PIB, da arrecadação fiscal, seguido de uma apreciação das moedas nacionais não convertíveis.

Como nossa elasticidade-renda das importações é superior à elasticidade-renda das exportações por razões estruturais, os saldos de contas correntes refluem a déficits crescentes, que se financiam com facilidade, enquanto a economia mundial segue em crescimento. Com uma reversão cíclica, agravada quando ocorre uma crise financeira no âmago do sistema internacional, os déficits de transações correntes na periferia já não encontram financiamento, e segue uma crise cambial. Geralmente, o enfrentamento desta situação se dá com forte aumento dos juros, para evitar a fuga de capitais, e brutal desvalorização cambial e seus efeitos sobre a inflação, corte nos gastos públicos e arrocho de salários e desemprego, para diminuir a demanda corrente e o crescimento da dívida pública e, também, para recompor as taxas de lucros das empresas.

Essa gestão da reversão cíclica termina por comprometer a trajetória de longo prazo de nossas economias, uma vez que os cortes de gastos públicos ocorrem principalmente em gastos sociais e investimentos. A crise de 2007-2008 não teve esta trajetória, pois encontrou nossos países com grandes volumes de reservas e contas públicas saneadas. Ataques especulativos contras as moedas da região não prosperaram e havia espaço fiscal para medidas contracíclicas, uma resiliência construída durante a bonança dos preços das matérias primas na primeira década dos anos 2000. Uma resiliência significativa, mas que não superou os problemas estruturais históricos de nossa região.

A heterogeneidade estrutural continua. Na verdade, as brechas internas de produtividade continuaram crescendo e houve um lock-in que favorece o modelo primário exportador revitalizado, à medida que subiram drasticamente as taxas de lucro dos setores produtores de bens primários e se reduziram as dos setores produtores de manufaturas. A indústria vem sendo desestimulada pelas moedas nacionais valorizadas e pela intensa importação de insumos, partes e produtos finais. É crescente o déficit externo líquido deste setor. Esse desestímulo aos investimentos industriais nos leva a outra brecha de produtividade, que é a brecha externa.

Enquanto a Ásia do Leste tem produtividade baixa mas convergente à dos países desenvolvidos como os EUA, ALC têm uma estagnação relativa nesse processo.

Continua também a debilidade institucional dos países da região. A carga tributária é baixa como estrutura regressiva, e os quadros de governo têm capacidade de gestão limitada. Há um esforço em andamento para aumentar as cargas tributárias, já ocorridas na Colômbia, Equador, Uruguai, Chile, Nicarágua, Guatemala dentre outros. Mas muito ainda necessita ser feito. Essa baixa tributação somada à baixa capacidade de governo termina por frustrar as expectativas da cidadania, que revela alta desconfiança em relação às instituições do Estado. Isso dificulta processos de desenvolvimento de longo prazo e diminui o ritmo das transformações sociais e estruturais.

AMÉRICA LATINA E CARIBE: EVOLUÇÃO DO BALANÇO NA CONTA CORRENTE E SEUS COMPONENTES, 1990-2013

(Em porcentagens do PIB)

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Fonte: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), sobre la base de cifras oficiales.

Ainda a vulnerabilidade externa é um tema. Não estamos em um período pós-Prebisch, como alguns analistas chegaram a antever. O que observamos é que com déficits de transações correntes crescentes, a vulnerabilidade na região é latente (explícita em vários países do Caribe) devido à proteção das reservas internacionais que já somam a US$ 900 bilhões e ao fluxo financeiro que continua em direção ao subcontinente. Mas é um assunto sério, e pode deixar de ser latente e concretizar-se.

O regime macroeconômico para enfrentar essas lacunas não deve ser o do ‘austericídio’, e deve ser coerente com as políticas industriais adotadas. Os países devem construir um padrão de intervenção macroeconômica que lide com as fases descendentes cíclicas, sem arruinar as tendências de longo prazo. Já observamos que os ajustes fiscais são mais viáveis e menos dolorosos em momentos de bonança com gradualismo. Que a política monetária deve procurar a estabilidade nominal, mas também a real, sem provocar volatilidade excessiva do PIB, desemprego e queda dos salários, e que o regime cambial mais efetivo é de flutuação administrada com regulação restritiva a fluxos especulativos de capitais.

Muita sintonia fina na macro e sensibilidade social nos gastos é o que necessitamos. Sem movimentos bruscos.

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AMÉRICA LATINA: RESULTADO FISCAL PRIMÁRIO, 2013
(Em porcentagens do PIB)

Fonte: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), sobre la base de cifras oficiales.

Sugestões de leitura – www.cepal.org La hora de la igualdad: brechas por cerrar, caminos por abrir (2010, Brasília); Cambio estructural para la igualdad: Una visión integrada del desarrollo (2012, El Salvador); Pactos para la igualdad: hacia un futuro sostenible (2014, Lima)

NOTA:

1 http://www.cepal.org/es/publicaciones/la-reaccion-de-los-gobiernos-de-las-americas-frente-la-crisis-internacional