Gestão macroeconômica em contexto de globalização financeira

Luiz Fernando de Paula
Professor Titular de Economia da FCE/UERJ e autor do livro Sistema Financeiro, Bancos e Financiamento da Economia (Campus).

Desde o fim do sistema de Bretton Woods no início dos anos 70, a economia mundial deu início a um processo de globalização financeira, com maior integração entre sistemas financeiros domésticos e intensificação nos fluxos de capitais entre países. Este processo se intensificou com a adoção de políticas neoliberais pelo governo britânico e americano a partir do final da década de 70, que posteriormente se alastrou para as economias avançadas, ocasionando uma liberalização nos fluxos de capitais. Neste contexto, desenvolveu-se um regime de acumulação, o chamado “capitalismo dominado pelas finanças”, que tem como atributo central o desenvolvimento de um processo chamado de “financeirização”, definido de forma ampla como o aumento do papel de mercados financeiros e instituições financeiras na operação de economias nacionais.

Na América Latina, este processo veio a ocorrer a partir do final dos anos 80, no contexto do que ficou conhecido como Consenso de Washington. É curioso que este, na concepção original de John Williamson, defendia políticas liberalizantes (abertura comercial, privatização, etc.), mas não em relação aos fluxos de capitais; na versão das agências multilaterais (BIRD e FMI) tal “Consenso” incorporou a abertura da conta capital em suas políticas.

O Brasil desde o início dos anos 90 realizou um processo de liberalização financeira, tanto no que se refere aos fluxos de entrada (aplicações em portfólio) quanto de saídas de capitais. Na primeira metade dos anos 2000, este processo atingiu seu ápice com a consolidação das normas cambiais. Após a crise cambial do início de 1999, o governo brasileiro adotou o chamado “tripé econômico”, constituído de um regime de câmbio flexível, regime de metas de inflação e superávits fiscais primários. Este tripé é inspirado no Novo Consenso Macroeconômico (NCM), que estabelece que uma taxa de inflação baixa e estável é condição sine qua non para o crescimento de longo prazo; que não há trade-off no longo prazo entre inflação e desemprego; e, consequentemente, a discricionariedade na condução da política monetária deve ser limitada.

Há uma ampla literatura que avalia as causas e efeitos dos fluxos de capitais em economias em desenvolvimento, e muitos trabalhos mostram que tais fluxos são marcadamente pró-cíclicos e tendem a exacerbar os booms econômicos, quando não os causam, fazendo com que o processo de liberalização financeira exponha países a vicissitudes associadas com as mudanças nas circunstâncias econômicas de fora do país. Consequentemente, tais economias podem ficar expostas a mudanças repentinas na percepção dos emprestadores e investidores estrangeiros e na condução da política monetária externa ao país. Assim, fluxos de capitais podem ter efeitos disruptivos sobre os países, diminuindo a autonomia das políticas econômicas voltadas para objetivos domésticos (estabilidade financeira, crescimento econômico e do emprego, etc.).

No que se refere ao grau de autonomia da política monetária, um estudo do BIS (Saxena, ”Capital flows, exchange rate regime and monetary policy”, BIS Papers n. 35, 2008), ao avaliar o impacto dos fluxos de capitais e do regime cambial (se mais flexível ou mais fixo) sobre a política monetária, encontrou que as taxas de juros domésticas de curto prazo são significativamente afetadas pelas taxas de juros externas (em particular do FED), especialmente em países com alta mobilidade de capitais.

Neste sentido, de forma quase premonitória, James Tobin, economista keynesiano americano, escreveu, ao final dos anos 70, que: “Eu acredito que o problema básico hoje não é o regime cambial, se fixo ou flutuante. O debate sobre regime cambial evita e obscurece o problema essencial, que é (…) a excessiva mobilidade internacional do capital financeiro privado”.

Mais recentemente, até mesmo economistas do mainstream e instituições multilaterais, como o FMI, reconhecem que, sob certas circunstâncias, a regulação da conta capital pode ser parte do instrumental da política econômica, contribuindo para resolver alguns trade-offs de política e diminuir as pressões causadas pelos fluxos de capitais.

Acrescente-se, ainda, que há uma literatura recente que reavalia a condução da política econômica no pós-crise global, colocando a necessidade de não se utilizar uma meta de inflação excessivamente baixa, de se usarem políticas macroprudenciais para evitar bolhas de ativos, de se incorporar uma nova meta ao regime de metas de inflação (estabilidade financeira) e, ainda, a necessidade de que haja um “espaço fiscal” para que se possa adotar uma política fiscal anticíclica (ver Blanchard e Dell’Ariccia, “Rethinking macro policy II”, 2013).

Quanto ao regime de metas de inflação, cabe destacar que a maioria dos países, no que se refere à definição do horizonte da meta – período no qual se espera que o BC alcance sua meta de inflação –, utiliza um prazo médio (dois anos ou mais, ou um período móvel) que permite divergências de curto prazo entre a meta e os choques que afetam a economia, já que choques não previsíveis têm efeitos defasados na economia. Deve-se destacar que o Brasil, neste particular, é dos poucos países que utilizam a meta anual (ano calendário) como horizonte da meta.

A partir da análise acima, podem-se extrair algumas lições para avaliar alguns dilemas da economia brasileira: em um país com conta capital aberta, um regime de metas de inflação relativamente rígido e um sistema financeiro sofisticado, os graus de liberdade para condução de uma gestão mais autônoma da política econômica ficam bastante restringidos.

É verdade que a experiência malsucedida da chamada “nova matriz macroeconômica” (2011-2014) também não ajudou, em particular no que se refere à política fiscal utilizada, privilegiando desonerações fiscais (que serviram para a indústria recompor sua margem de lucro) em vez de aumento em investimentos públicos (de maior efeito multiplicador de renda) e sendo opaca nas suas sinalizações. A política de desonerações não logrou êxito em aumentar a já crítica produção industrial, e seu relativo fracasso contribuiu para a deterioração fiscal, já que os gastos públicos aumentaram ao mesmo tempo em que o crescimento do PIB despencou.

Embora a situação fiscal tenha piorado recentemente está longe de ser uma situação catastrófica como se tem veiculado na mídia. O “mercado”, entretanto, passou a “exigir” um ajuste fiscal mais forte para conter o aumento da dívida pública bruta e o déficit fiscal, praticamente obrigando o governo a realizá-lo. Embora tenha sido escolhido um certo gradualismo, há dúvidas quanto ao impacto do ajuste sobre o crescimento da economia brasileira no curto e no médio prazo.

Assim, para além de uma visão curto-prazista, é de fundamental importância fazer uma discussão acerca de uma agenda de política macroeconômica pró-crescimento que contribua para superar uma governança que possa ser excessivamente rígida e ortodoxa. A título de conclusão, sugerimos que tal agenda deva incluir a avaliação das seguintes propostas:

(i) aperfeiçoamento do regime de metas de inflação com adoção de um horizonte de decisão mais amplo (dois anos, por exemplo) para dar espaço para que a política de juros acomode mais suavemente os choques de oferta;

(ii) utilização de um instrumental mais amplo para política anti-inflacionária para além da política de juros (política de rendas, revisão de alguns preços administrados, etc.);

(iii) adoção de um regime de bandas fiscais ajustado ao ciclo (com limite de tolerância para permitir o uso de política anticíclica em períodos de desaceleração);

(iv) adoção de um regime de câmbio flutuante administrado (que pode requerer regulação da conta capital);

(v) continuidade do processo de redução da dívida pública indexada a taxa Selic (LFTs), de modo a acabar com a contaminação perversa entre mercado de reservas bancárias e mercado de dívida pública, com efeitos deletérios sobre o desenvolvimento do mercado financeiro doméstico.