Rosa Maria Marques[1] e Camila Kimie Ugino[2]
A proposta de reforma da Previdência Social, encaminhada pelo governo Temer, em 05/12/2016, para ser apreciada pelo Congresso Nacional, pretende, entre outros aspectos, alterar radicalmente as condições de acesso à aposentadoria e a organização da proteção social dos brasileiros. A mídia em geral e os comentaristas de várias inserções têm dado especial atenção ao fato de estar sendo proposto que a aposentadoria, tanto para homem como para mulher, seja somente concedida aos 65 anos e mediante um período mínimo de contribuição de 25 anos. Da mesma forma, muito tem se escrito sobre os valores dos benefícios a serem pagos, de aposentadoria ou pensão. Contudo, há outro aspecto que precisa ser considerado, aquele da reorganização da proteção social brasileira. Por detrás do que está sendo chamado de harmonização entre os diferentes regimes de previdência social, está se gestando uma profunda alteração, somente comparável ao que foi empreendido pelos militares quando unificaram os institutos de previdência social e deram origem ao INPS (Instituto Nacional de Previdência Social). Suas consequências, entretanto, vão para além da aposentadoria, alterando o estatuto dos servidores públicos.
Este texto, na forma de notas, analisa alguns dos tópicos tratados pela proposta de reforma e por isso não pretende ser exaustivo. Seu objetivo é tão somente chamar atenção para alguns desdobramentos do que está sendo proposto.
1 – Das condições de acesso à aposentadoria
A introdução da idade mínima de 65 anos, sem distinção entre homens e mulheres e entre urbanos e rurais, e a exigência de um período mínimo de 25 anos de contribuição como critério de acesso à aposentadoria é uma grande mudança. O tratamento igual sugerido pressupõe o desconhecimento de que, no Brasil, as condições de vida e trabalho são desiguais entre homens e mulheres e entre urbanos e rurais. No caso da igualdade de idade entre homens e mulheres, vale lembrar que, em diferentes momentos, isso foi aventado por integrantes (homens) do Partido dos Trabalhadores, mas nunca se consubstanciou em proposta programática devido à reação encontrada em sua base militante. A justificativa era (e continua sendo) que as mulheres vivem mais e, por isso, elas permanecem um longo tempo recebendo aposentadoria. Basicamente, a proposta de tratamento igual para o acesso à aposentadoria de homens e mulheres desconsidera que a dupla jornada de trabalho ainda é uma realidade para a imensa maioria das mulheres brasileiras.
Quanto à imposição do mínimo de 65 anos para aqueles que ingressarem depois da publicação da Emenda Constitucional (vigorando uma transição para os homens com idade superior a 50 anos e para as mulheres com idade superior a 45 anos), ela eleva sobremaneira o tempo de permanência na vida ativa, isto é, da jornada de trabalho ao longo da vida do trabalhador. Para se ter uma ideia dessa ampliação, basta lembrarmos que, em 2014, a idade média dos que requeriam aposentadoria no meio urbano era de 54,2 anos, sendo 52,3 anos no caso das mulheres e 55, 1 anos no caso dos homens.
Já a exigência de 25 anos para o tempo de contribuição mínimo, aumentando em 10 anos com relação ao atualmente exigido, tem efeito sobre aqueles que têm uma inserção no mercado de trabalho mais precária, realizada em determinados momentos de maneira informal ou vivendo situações de desemprego prolongado. Para os demais, a exigência anterior de 35 anos (homens) e 30 anos (mulheres) era, em tese, maior. Em tese porque, simultaneamente é exigida a idade de 65 anos, o que eleva o tempo de contribuição para todos. Por exemplo, aquele que começar a trabalhar com 22 anos, no mercado formal e nele permanecer, terá contribuído durante 43 anos no momento de completar 65 anos.
2 – Da harmonização entre os regimes
A harmonização entre os atuais regimes e para todos os entes da federação é central na proposta que foi encaminhada, isto é, considera que as regras de acesso à aposentadoria e de cálculo do beneficio sejam iguais entre os trabalhadores do setor privado e do público, sejam estes últimos da união, dos estados ou dos municípios, neles incluindo os que exercem cargo eletivo. O único setor que ficou de fora na proposta é o das Forças Armadas.
Não é a primeira vez que isso é aventado, mas é a primeira vez que é proposto para ser apreciado pelo Congresso Nacional[3]. Sua justificativa se funda na ideia de que a cobertura do risco velhice (aposentadoria) deve ser igual para todos e, por isso, essa perspectiva foi abraçada por setores da esquerda brasileira em diferentes momentos. Ao unificar as regras de acesso dos regimes, os regimes próprios deixam de ter especificidades, as quais foram produto de vários fatores, entre eles a força que essas categorias tiveram no passado para impor essas especificidades. Poder-se-ia dizer, ainda, que a harmonização dos regimes tem por detrás a concepção de que a aposentadoria constitui uma renda de substituição ao trabalho em geral, não fazendo distinção entre os tipos de trabalho exercido nas diferentes atividades, sejam elas localizadas no setor privado ou público.
No Brasil, isso já havia sido feito quando foram unificados os Institutos estruturados com base em categorias de trabalhadores e criado o INPS, tal como mencionado acima. Mas tratava-se dos trabalhadores do setor privado da economia. Agora, a proposta abrange todos os trabalhadores, independente da função exercida, se no setor privado ou público. A ideia de trabalho, portanto, ocorre em outro nível de abstração. A consequência disso, além de implicar perda para algumas categorias (por exemplo, a de professores não universitários, que podiam se aposentar antes do que os demais), significa não mais considerar os servidores de forma diferente do que os demais trabalhadores. Em outras palavras, o reconhecimento de que o servidor deveria ter outro estatuto exatamente por ser o representante do estado na relação com a sociedade civil e que, por isso, deveria ter sua renda garantida durante toda sua vida (ativa e inativa) deixa de existir. A rigor, essa garantia para os servidores da união já tinha sido perdida em 2003, quando da reforma feita por Lula. Mas essa regra só foi aplicada para os novos ingressantes. Agora, a proposta encaminhada pelo governo Temer, no tocante aos critérios de acesso à aposentadoria e a seus valores, se aplica para todos os servidores com idade igual ou menor que 50 anos e para as servidoras com idade igual ou menor que 45 anos.
Por traz desse tratamento indistinto entre trabalhadores e servidores, está a concepção de que o Estado pode e deve ser tratado como se fosse uma empresa privada, tal como bem exploraram Dardot e Laval (2016). Se a administração do Estado, que “obedecia aos princípios do direito público pode ser substituída por uma gestão regida pelo direito comum da concorrência” (p. 289), não há motivo de se considerar os servidores diferentemente dos demais trabalhadores.
3 – Do valor da aposentadoria e do estímulo à previdência complementar
Como sabido, a proposta do governo altera o cálculo do valor da aposentadoria, substituindo o fator e/ou a fórmula 85/95. O benefício da aposentadoria inicia com 51% da média dos salários de contribuição, sendo acrescido de 1% por ano de contribuição. Dessa forma, alguém que começa a trabalhar com 22 anos, e sempre no mercado formal, terá, aos 65 anos, direito a uma renda equivalente a 73% de seus salários de contribuição, o que é menos do que receberia hoje, caso fosse aplicado o fator ou a fórmula. E isso será válido para todos os trabalhadores, do setor privado e público.
O incentivo à Previdência Complementar ocorrerá através de dois mecanismos. De um lado, há a exigência de os Estados e Municípios criarem, no prazo de dois anos, uma Previdência Complementar, caso tenham constituído regime próprio. De outro, como provavelmente a média do valor das aposentadorias deve cair, tanto para os trabalhadores do setor privado como público, aqueles de maior renda deverão buscar complementação de sua aposentadoria junto ao setor privado. A redução do valor da aposentadoria será, portanto, tanto mais perversa quanto menor for a renda do trabalhador. Os com renda mais alta, com capacidade de poupança mesmo que pequena, estarão suscetíveis a ser convencidos a complementar sua aposentadoria junto ao setor privado de Previdência Social.
Atualmente, o teto para pagamento dos benefícios previdenciários corresponde a R$5.189,82. Com sua eliminação na prática[4], certamente haverá ampliação do numero de trabalhadores que irão buscar uma aposentadoria complementar privada. Processo semelhante já ocorreu quando da introdução do fator previdenciário. No Brasil, a aposentadoria complementar se organiza em fundos de pensão ou entidades fechadas de previdência complementar (EFPCs)[5], e em entidades abertas de previdência complementar (EAPCs).
A cobertura das entidades fechadas com relação ao total dos segurados do RGPS é muito baixa e se mostra estável nos últimos anos. Contudo, entre aqueles que estão vinculados às entidades fechadas[6], em 2014, 75,1% se concentram nos trabalhadores com renda maior que seis salários mínimos (Tabela 2). Considerando a redução do valor da aposentadoria, é possível que ocorra aumento dessa participação.
Tabela 2 – Cobertura EFPCs de contribuintes do RGPS – 2011 a 2014
A leitura da Tabela 2 mostra que um dos limites para o crescimento dos fundos de pensão no Brasil é a renda média baixa dos trabalhadores e que foi justamente nos segmentos de maiores rendas (acima de seis salários mínimos) que, além da cobertura ser maior, houve maior crescimento no período. Há uma notória relação entre renda e adesão a um plano de previdência complementar; os trabalhadores com menores rendas não conseguem aderir a um plano privado.
Já as chamadas EAPCs asseguravam, em junho de 2016, seguro previdenciário para 12,5 milhões de pessoas, segundo dados da Susep (2016). Isso significa que aproximadamente 15% da população economicamente ativa possuem seguro previdenciário. De acordo com a Susep, o segmento de previdência complementar aberta movimentou, em 2015, 1,7% do PIB. Em termos de ativos, ou seja, considerando a receita do ano e as reservas técnicas, esse segmento detinha 10,6% PIB, no final de 2015.
A hipótese de que esse segmento se amplie, com a redução do valor da aposentadoria, parece estar de acordo com as estratégias atuais das seguradoras. Elas são, inclusive, muito arrojadas, visando até os segmentos de mais baixa renda. Exemplo disso é dado pela Brasilprev, uma das maiores deste segmento, que vende um plano com contribuição mensal inicial de R$ 25,00 ao mês, e que representa 31% de seus contratos de previdência.
4 – Da opção de “tratar” do fluxo de despesas e não das receitas
O governo Temer, ao encaminhar sua proposta, deixou claro que sua opção para conceder “sustentabilidade financeira para a Previdência Social” foi a de alterar o fluxo de despesas, muito embora proponha o fim da isenção da contribuição sobre os produtos exportados, o que deve aumentar a arrecadação.
A alternativa das receitas colocaria, para seus proponentes, alguns problemas. No caso de aumentar os valores das alíquotas das contribuições atualmente vigentes (sobre a folha de salários ou sobre o faturamento no caso das empresas que optaram por substituir a contribuição sobre a folha pelo faturamento), isso seria muito mal recebido por todos os segmentos da sociedade, sejam empresários ou trabalhadores, pois há a percepção, altamente difundida pela grande mídia, de que o nível de imposição do Estado é muito elevado. Além disso, essa opção enfraqueceria o argumento de que a “insustentabilidade da Previdência” decorre da inadequada condição de acesso às aposentadorias e dos valores dos benefícios pagos.
Se, como alternativa, fossem pensadas outras fontes de financiamento que não aquela do trabalho (pois trabalham com a ideia que só têm direito à aposentadoria aqueles que para ela contribuíram, conformando uma aposentadoria meritocrática e não uma renda decorrente da cidadania), além de que isso seria entendido como aumento da carga tributária, tal iniciativa comprometeria o “desenho” de sua previdência social que estão propondo reforçar. Tanto é assim que sua proposta de redução dos valores das pensões é fundamentada na ideia de que seus valores decorrem de um direito a um seguro, de modo que podem perfazer um valor menor do que o salário mínimo. Somente a rendas que substituem o trabalho será mantido o piso de um salário mínimo. Em outras palavras, a aposentadoria é considerada um salário diferido e, enquanto salário, não pode ser menor do que um salário mínimo.
Nesse sentido, a reforma não acompanha o que está sendo feito em outros países, mesmo naqueles que tinham as contribuições calculadas sobre os salários como sua principal base de financiamento. Mas nesses países houve um processo de universalização da cobertura, o que não é o caso do Brasil, que deixa de fora os integrantes do mercado informal. Introduzir outras fontes de financiamento teria como consequência reforçar as contradições já existentes no sistema atual, dando argumento para que se pensasse em uma proteção para todos os cidadãos e não somente para os integrados ao mercado formal. Não é por acaso que a proposta encaminhada pelo governo pressupõe o pagamento de contribuição individual para o trabalhador rural que exerce atividade familiar. O pagamento do piso para esses trabalhadores, sem que lhe fosse exigida contribuição, era considerada por muitos uma distorção assistencialista no interior do Regime Geral da Previdência Social.
De acordo com o secretário da Previdência Social, Marcelo Caetano, esta proposta de reforma é necessária para garantir a sustentabilidade da Previdência Social. Porém, é importante lembrar que o atual formato da Previdência, apesar de não ser universal, é um dos principais mecanismos de distribuição de renda. Caso essas propostas sejam votadas tal como foram encaminhadas ao Congresso, é até possível que a rubrica específica dos gastos com previdência venha a cair, mas isso será alcançado às custas do próprio sistema de proteção social brasileiro. Para o ajuste de uma conta, a vida entra como subtração.
Referências bibliográficas:
DARDOT, P. e LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
Programa de Governo 2002 – coligação Lula presidente – um Brasil para todos. Disponível em: <http://csbh.fpabramo.org.br/uploads/programagoverno.pdf>. Acesso em 19/12/2016.
SSPC-MPS (Secretaria de Políticas de Previdência Complementar). Informe da Previdência Complementar 2015. Brasília: Ministério do Trabalho e Previdência Social, 2015. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2016/01/Informe-de-previdencia-complementar-FINAL-3.pdf>. Acesso em: 17/12/2016.
SUSEP. Boletins consolidados de seguros, capitalização e previdência privada aberta. Disponível em: <http://www.susep.gov.br/menu/estatisticas-do-mercado/boletins-estatisticos>. Acesso em: 17/12/2016.
Notas:
[1] Professora titular do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUC-SP; líder do Grupo de Pesquisa Políticas para o Desenvolvimento Humano (PDH)
[2] Professora do Departamento de Economia da PUC-SP, doutoranda em Ciências Sociais pela PUCSP e membro do PDH.
[3] O “Programa de Governo 2002 – coligação Lula presidente – um Brasil para todos”, na parte referente à Reforma da Previdência, item 46, diz: “Essa profunda reformulação deve ter como objetivo a criação de um sistema previdenciário básico universal, público, compulsório, para todos os trabalhadores brasileiros, do setor público e privado”.
[4] Embora não tenha sido encaminhada proposta de redução do teto, a garantia de uma aposentadoria de valor igual exigiria não só ter contribuído sempre pelo teto do salário de contribuição como 49 anos de contribuição!! Ao a pessoa começa muito mais cedo do que os 22 anos aqui usados no exemplo anterior, aos 5 anos de idade, ou ela terá que trabalhar até os 82 anos! Enfim, o cálculo proposto foi concebido para que não se pague a aposentadoria ao valor do teto.
[5] As maiores EFPCs são estatais (Funcef – Caixa Econômica Federal; Previ – Banco do Brasil; Petros – Petrobrás; e Postalis – Correios), mas as EFPCs privadas são numerosas. Em dezembro de 2014, havia 2.597 fundos de pensão no Brasil, sendo 81% de natureza privada e 19%, pública. A reforma previdenciária de 2003, instituída pela Emenda Constitucional nº 41, viabilizou a criação do fundo de pensão para os servidores públicos federais, regulamentado, contudo, somente em 2012.
[6] Trabalhadores do Banco do Brasil, da Petrobrás, entre outros.