“Há 50 maneiras de ser mais generoso com os pobres e gastar menos”

Ana Carolina Cortez | El País 

 

O economista Ricardo Paes de Barros defende cortes cirúrgicos nas políticas sociais

 

Arquiteto do programa mais famoso de Lula, o Bolsa Família, Ricardo Paes de Barros é conhecido entre os colegas economistas como uma espécie de “liberal dos pobres”. Doutorado em economia pela universidade de Chicago, PB não é um “chicago boy” convencional. Por mais de 30 anos, tempo em que integrou o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), realizou inúmeras pesquisas focadas em temas como desigualdade, miséria e educação. Foi subsecretário da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da presidência no Governo Dilma, entre 2011 e 2015. E, depois de ter largado a carreira pública para assumir um posto de economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e de professor do Insper, voltou a nortear as políticas públicas do Governo quando o vice-presidente Michel Temer assumiu a presidência interinamente, na última quinta-feira.

O programa “Uma ponte para o futuro”, desenvolvido pelo PMDB enquanto o partido ainda fazia parte da base governista de Dilma Rousseff, fez uso das ideias de PB no âmbito das políticas sociais. Áreas como a previdência social e programas como o Bolsa Família precisam, na sua opinião, ser peneirados. “Qualquer medida de cortar gasto é impopular. Em momento de crise, não existe presidente popular”. A entrevista foi concedida durante o Seminário Internacional Educação para a cidadania global, promovido pelo EL PAÍS, a Fundação Santillana e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Confira os principais trechos:

Pergunta. Temer assumiu o Governo interinamente, num momento turbulento. E defende diversos cortes nos gastos públicos para ajustar a economia. Como é possível fazer tais ajustes e manter algum apoio da sociedade?

Resposta. A gente espera que Temer corte os gastos públicos. Como não podemos cortar? O Governo brasileiro gasta mais que 40% do PIB. Vai ter que cortar, ele não tem esse dinheiro. Agora, não tem razão nenhuma para cortar isso em educação, muito menos no Bolsa Família. Só para a gente ter uma ideia, os 50% mais pobres do Brasil têm uma renda que equivale a apenas 10% do PIB. O Governo pode cortar à vontade sem tirar do pobre, sem tocar nos serviços públicos.

P. De que forma?

R. A primeira coisa é mexer na Previdência. Vai ter que cortar gastos dramaticamente. Os idosos que recebem os benefícios estão entre os 50% mais ricos do país. Você não vai tocar nos 50% mais pobres, portanto, mexendo na Previdência. Outro ponto está nos altos salários do setor público. A desigualdade no Brasil caiu nos últimos 15 anos no setor privado, mas no público ficou parada. Isso quer dizer que os salários no setor público continuam tão altos como nunca. Você quer cortar gasto que não vai ter nenhum impacto sobre pobreza e só vai reduzir desigualdade? Corta salário do setor público. Como? Não ajusta pela inflação. Outra área que pode ser ajustada é a educação pública. Ninguém consegue explicar por que a universidade pública é gratuita. Uma universidade que atende somente 25% dos alunos? 75% dos alunos estão em universidades privadas e pagam, exceto pelos que estão no Pro-Uni. Aquilo que o pai pagava pelo filho no ensino médio, ele pode pagar no ensino universitário. Um país minimamente organizado no mundo, ainda mais com tamanho nível de desigualdade, faria isso. A gente abriu 15 universidades federais em oito ou dez anos. Não seria mais barato fazer um ProUni mais amplo e aproveitar a estrutura que você tem das universidades privadas? Não seria uma forma de atingir melhor os pobres? Consigo imaginar 50 maneiras de ser mais generoso com os pobres e gastar menos. O Governo tem que analisar tudo o que destina para os pobres, mas que não está chegando até eles. É aí que precisa cortar. Grande parte disso devem ser subsídios que ele está dando para não pobres.

P. Como subsídios para setores industriais?

R. Sim. Os mais variados subsídios que ele pode estar dando. Analisar o porquê de estar gastando com isso. Tudo precisa de uma justificativa. O que Temer tem a favor, que é muito importante, é estar sinalizando para o mercado que ruma a um Governo saudável, que poderá pagar o que deve. Apresentando planos de como pretende fazer isso. A expectativa, desta forma, é que a taxa de juros caia. Se a taxa de juros cair, você vai poupar uma quantidade enorme de dinheiro. Uma das maneiras que alguém que está endividado tem para sair da dívida é fazer um bom acordo sobre aquilo que vai pagar, empenhar todos os seus bens, dar garantias… de forma que consiga juros melhores. A política econômica vai ser muito importante para recuperar o crescimento rapidamente, ter menos pessoas desempregadas, menos pobreza e, portanto, menos necessidade de atuação do Governo. Agora precisa aumentar a credibilidade de que “sim, vou pagar”, e mais do que isso, “vou parar de gastar o que não tenho e a minha dívida não vai crescer”, só isso já vai levar a taxa de juros a cair. Porque se esse Governo não for capaz de fazer a taxa de juros cair, está em sérios apuros. Quando você pergunta se o Governo deve tocar nos programas sociais, não, ele não pode, não deve e espero que não faça. Acho que não tem nenhuma declaração direta de Temer de que irá fazer isso, pois os programas têm sido importantíssimos para os pobres. Claro, tudo na vida precisa ser melhorado. Veja o Bolsa Família. Eu mexeria no programa em dez coisas diferentes.

P. Que coisas você mudaria?

R. O cadastro único é um documento enorme que faz mais de cem perguntas para as pessoas. Você descobre quem vai receber e quanto vai receber com base em uma única variável, que é a renda declarada. Por quê? Por que eu não uso todo o resto das informações que eu tenho, para garantir que aquela renda declarada é fidedigna? Todo o lugar do mundo, e o Estado do Rio de Janeiro em particular, faz isso. Eu acho que não tem nenhuma justificativa para eu dar os benefícios e definir a magnitude do Bolsa Família olhando para apenas uma das informações que a família me deu, e não para todas. Várias informações que aquela família me dá me dão indícios de que aquela renda pode estar um pouco para cima ou um pouco para baixo. E há estudos que mostram que isso pode ter um efeito enorme. Você tem a informação na sua mão. Pode começar a fazer isso amanhã. E isso vai fazer com que mais dinheiro chegue na mão do pobre e que menos dinheiro seja desperdiçado, pois está indo para não pobres.

P. Mas qual seria a equação ideal entre políticas públicas e gastos públicos no novo Governo? Porque o aumento de gastos foi justificado pelos governos Lula e Dilma como medidas necessárias para a redução das desigualdades.

R. O problema do Brasil não foi que ele caiu nesse excesso de gastos. Ele gastou como nunca com o pobre, e isso foi ótimo. E temos que continuar gastando. Até mais. O Brasil caiu nesse problema porque, além de gastar com o pobre, ele gastou com várias outras coisas que não eram para o pobre. O fato de que você tem que parar de gastar com quem não é pobre e gastar mais com que é pobre é meio óbvio. Você quer gastar mais? Arrecade antes mais. Agora, gastar antes aquilo que você não tem é se meter em apuros. E foi um pouco o que aconteceu.

P. Você falou que a educação precisa de ajustes também. O orçamento da pasta é o terceiro maior do Governo, o que contrasta com os nosso rendimento em indicadores globais de qualidade de ensino. Na sua visão, qual é o problema da educação, é falta de recursos ou da gestão desse dinheiro? Como promover ajustes sem prejudicar a educação?

R. Os gastos com educação não vêm apenas do MEC. Mas, de maneira geral, gastamos demais com educação superior e de menos com as etapas anteriores, a educação básica. Agora, a gente precisa ser dramaticamente mais eficiente. Toda evidência mostra que a gente poderia ter indicadores 15% ou 20% melhores do que aqueles que a gente tem. O MEC tem que parar de tentar ensinar os municípios a educar e começar a aprender com os municípios que sabem educar, para que eles expliquem para os que não sabem. Temos vários municípios brasileiros com um IDEB [Índice de Desenvolvimento de Educação Básica] de 5,5 ou 6 [nota máxima] no interior do Nordeste. Brejo Santo, um município no interior do Ceará, com renda per capita de 300 reais, é um exemplo de IDEB europeu. O que o MEC tem que fazer é mapear as melhores práticas e difundi-las.

P. Um dos pontos que devem voltar à pauta do ajuste fiscal é a Desvinculação de Receitas da União (DRU). O Governo já encaminhou projeto ao Congresso para ressuscitá-la até 2023. Especialistas de educação não querem a DRU de volta, mas a equipe de Temer conta com ela. O que você pensa a respeito?

R. A vinculação precisa ter, como contrapartida, um plano, um projeto. Se eu tenho um plano que me diz quais são as ações, quais resultados quero alcançar e quanto eu vou gastar, a sociedade pode fazer um acordo plurianual contigo, que não é para sempre, é, por exemplo, por dez anos. E depois vamos sentar para renegociar. Recursos são uma contrapartida para resultados. Os ministérios não podem, em nenhuma sociedade, ter recursos garantidos sem ter resultados acordados. Claro que todo mundo tem dificuldades, a ponte custou mais caro do que eu pensei que ia custar, mas você vai discutir de uma maneira sensata. Mas não assim: vou te dar o dinheiro e não importa o que você fizer você tem o dinheiro. Isso não é uma boa coisa. O anormal é a vinculação, portanto, e não a desvinculação. Você tem um orçamento e escolhe como gastá-lo, assim como toda família. Eu acho que a gente não deveria ter gastos vinculados. A gente deveria ter leis e acordos plurianuais vinculados a planos. Isso, na educação, está faltando. A vinculação automática só te protege contra um Governo irresponsável, o que não é o caso aqui. Nem foi no caso Dilma.

P. Mas a gente não corre o risco de, com a volta da DRU, deixar de direcionar esses recursos para a educação?

R. Sim. E todo mundo corre. A saúde corre, a segurança corre… por isso é tão importante quem governa o país tomar as decisões de investimento. E isso estar muito claro na hora que vamos votar. Quem está trabalhando corre o risco de ficar desempregado a qualquer momento. Não dá para acreditar que na sociedade não existem riscos. Esses riscos não são eliminados por lei, que limitam tudo. São eliminados por diálogo, por instituições que funcionam, por convencimento… Claro que mais recurso para educação é sempre melhor, mas não precisamos de receitas vinculadas para isso. O ministério pode ir ao Congresso e pedir mais recursos, com um objetivo concreto na mão. Se ele falar que quer mais dinheiro para abrir uma universidade federal, vou dizer que esta não é a melhor ideia, porque este não é o nosso problema. E aí não vou dar o dinheiro. Riscos não são eliminados por lei, são eliminados por diálogo.

P. Dizem que você ajudou a desenvolver o programa “Uma ponte para o futuro”, no qual essa sua visão de peneirar gastos sociais sem prejudicar os mais pobres se faz presente. Você recebeu algum convite para participar formalmente do Governo Temer?

R. Eu nunca falei com o vice-presidente – quer dizer, nosso presidente neste momento – mas eu trabalhei quatro anos com o ministro Moreira Franco [na Secretaria de Assuntos Estratégicos], que é presidente da Fundação Ulysses Guimarães. Quando eles estavam escrevendo o que seria uma política social para o Brasil – e o PMDB ainda fazia parte da base governista de Dilma – eu tinha algumas coisas escritas no âmbito social e, com muito prazer, cedi tudo o que eu tinha. Eu não escrevi nenhum documento formalmente nem coordenei nada. Poderia até ter coordenado se tivesse sido solicitado e se eu tivesse tempo. Aproveitaram minhas ideias num documento do partido e é super honesto dizer, portanto, que eu participei. Estou muito orgulhoso de terem usado parte do que eu tinha feito e aproveitado lá.

P. Algumas dessas medidas, que incluem parte do que você disse aqui, são bem impopulares, não?

R. O fato que a gente tem que gastar menos é um fato da vida. A gente não tem o dinheiro. Nem um país, nem uma família, pode gastar mais do que tem. Qualquer medida de cortar gasto é impopular. Em momento de crise, se você quiser ter presidente popular, não vai acontecer. Presidente popular é aquele que faz coisas pelo bem comum, mas corre o risco de ser visto negativamente.