Livro ‘O Capital no Século 21’ revoluciona ideias sobre desigualdade

PAUL KRUGMAN* | DO NEW YORK TIMES

Thomas Piketty, professor na Escola de Economia de Paris, não é um nome muito conhecido, ainda que isso possa mudar com a publicação em inglês de sua abrangente e magnífica meditação sobre a desigualdade, “Capital in the Twenty-First Century”. Mas sua influência é profunda. Tornou-se comum afirmar que estamos vivendo uma segunda Gilded Age [Era Dourada] – ou, nas palavras de Piketty, uma segunda Belle Époque -, definida pela incrível ascensão do “1%”. Mas essa afirmação só se tornou lugar comum graças ao trabalho de Piketty. Ele e alguns colegas (especialmente Anthony Atkinson, de Oxford, e Emmanuel Saez, de Berkeley) são, especialmente, responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas estatísticas pioneiras que tornam possível rastrear a concentração de renda e de riqueza no passado distante – até o começo do século 20, no Reino Unido e Estados Unidos, e até o final do século 18 no caso da França.

O resultado foi uma revolução em nossa compreensão sobre as tendências da desigualdade em longo prazo. Antes dessa revolução, a maioria das discussões sobre a disparidade econômica mais ou menos desconsiderava os muito ricos. Alguns economistas (para não mencionar políticos) tentavam sufocar aos gritos qualquer menção à desigualdade: “De todas as tendências prejudiciais a um estudo sólido da Economia, a mais sedutora, e em minha opinião mais venenosa, é tomar por foco as questões de distribuição”, declarou Robert Lucas, da Universidade de Chicago, o mais influente macroeconomista de sua geração, em 2004. Mas mesmo aqueles que se dispunham a discutir a desigualdade se concentravam, em geral, na disparidade entre os pobres da classe trabalhadora e as pessoas prósperas, mas não mencionavam os verdadeiramente ricos – o foco eram os formandos universitários cuja renda superava a de trabalhadores com nível mais baixo de educação, ou a sorte comparativa dos 20% mais prósperos da população ante os 80% menos afortunados, e não a rápida ascensão da renda dos executivos e banqueiros.

Portanto, foi uma revelação quando Piketty e seus colegas demonstraram que as rendas do hoje famoso “1%”, e de grupos ainda mais estreitos, na realidade representavam a história mais importante na ascensão da desigualdade. E essa descoberta surgiu acompanhada por uma segunda revelação: as menções a uma nova Gilded Age, que podiam parecer hiperbólicas, na verdade nada tinham de exagerado. Nos Estados Unidos, especialmente, a proporção da renda nacional reservada ao 1% mais rico da população seguiu uma curva em U. Antes da Primeira Guerra Mundial, o 1% mais rico detinha 20% da renda nacional, tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido. Por volta de 1950, essa proporção havia sido reduzida a menos da metade. Mas de 1980 para cá a parcela reservada ao 1% disparou de novo – e nos Estados Unidos ela retornou ao ponto em que estava um século atrás.

Ainda assim, a elite econômica atual é muito diferente da elite do século 19, não? Na época, as grandes fortunas tendiam a ser hereditárias; a elite econômica atual não é formada por pessoas que conquistaram suas posições com base no mérito? Bem, Piketty nos diz que isso não é tão verdade quanto podemos imaginar, e que de qualquer forma esse estado de coisas pode se provar não mais duradouro do que a sociedade de classe média que floresceu por uma geração depois da Segunda Guerra Mundial. A grande ideia de “Capital in the Twenty-First Century” é não só a de que retornamos ao século 19 em termos de desigualdade de renda como a de que estamos no caminho de volta ao “capitalismo patrimonial”, no qual os grandes píncaros da economia são ocupados não por indivíduos talentosos mas por dinastias familiares.

É uma afirmação notável – e é precisamente por ser tão notável que ela precisa ser examinada de maneira crítica e cuidadosa. Antes que eu trate desse assunto, porém, permita-me afirmar já de saída que Piketty escreveu um livro verdadeiramente soberbo. O trabalho combina grande abrangência histórica – quando foi a última vez que você ouviu um economista invocar Jane Austen e Balzac? – com análise minuciosa de dados. E ainda que Piketty zombe dos economistas, como profissão, por sua “paixão infantil pela matemática”, a base de sua argumentação é um tour de force de modelagem econômica, uma abordagem que integra a análise do crescimento econômico à da distribuição de renda e riqueza. Esse é um livro que mudará a maneira pela qual pensamos sobre a sociedade e pela qual concebemos a economia.

1. O que sabemos sobre a desigualdade econômica, e sobre os momentos específicos nos quais adquirimos conhecimento sobre ela? Até que a revolução de Piketty varresse o campo, a maior parte do que sabíamos sobre desigualdade de renda e riqueza vinha de pesquisas nas quais domicílios escolhidos aleatoriamente são convidados a preencher um questionário, e suas respostas são computadas a fim de produzir um retrato estatístico do todo. O padrão internacional para essas pesquisas é o levantamento anual conduzido pelo Serviço de Recenseamento dos Estados Unidos. O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) também conduz uma pesquisa trienal sobre a distribuição de riqueza.

As duas pesquisas são um guia essencial quanto à mudança da forma da sociedade dos Estados Unidos. Entre outras coisas, elas apontam para uma virada dramática no processo de crescimento econômico norte-americano, iniciada por volta de 1980. Antes disso, famílias de todos os níveis viam suas rendas crescerem mais ou menos em linha com o ritmo de crescimento da economia como um todo. Depois de 1980, porém, a parte do leão dos ganhos passou a caber ao topo da escala de renda, e as famílias na metade inferior ficaram muito para trás.

Historicamente, outros países não mostravam igual eficiência em rastrear quem fica com o que; mas a situação mudou ao longo do tempo, em larga medida devido ao Estudo de Renda do Luxemburgo (do qual em breve farei parte). E a crescente disponibilidade de dados de pesquisa que podem ser comparados entre diferentes países resultou em novas percepções importantes. Sabemos agora, especialmente, tanto que os Estados Unidos têm uma distribuição de renda muito mais desigual que a das economias avançadas da Europa quanto que boa parte dessa diferença pode ser atribuída diretamente a ações do governo. As nações europeias em geral têm rendas altamente desiguais como resultado das atividades de mercado, como os Estados Unidos, ainda que talvez não na mesma extensão. Mas conduzem redistribuição muito maior por meio de taxas e transferências do que os Estados Unidos fazem, o que resulta em desigualdade muito menor em termos de renda disponível.

No entanto, apesar de toda a sua utilidade, os dados dessas pesquisas têm limitações importantes. Tendem a subestimar, ou desconsiderar de todo, a renda que cabe ao punhado de indivíduos que ocupam o verdadeiro topo da escala de renda. Também apresentam profundidade histórica limitada. Os dados de pesquisa norte-americanos, por exemplo, remontam a apenas 1947.

É aí que entram Piketty e seus colegas, que se voltaram a uma fonte de dados inteiramente diferente: os registros tributários. Essa ideia não é novidade. De fato, as análises iniciais de distribuição de renda dependiam de dados tributários, porque não havia muitos outros dados com que pudessem contar. Piketty e seus colaboradores, porém, encontraram maneiras de combinar dados tributários e outras fontes a fim de produzir informações que complementam de maneira crucial os dados das pesquisas. E as estimativas baseadas nos impostos podem recuar muito mais ao passado. Os Estados Unidos têm um imposto sobre a renda em vigor desde 1913; no Reino Unido, ele surgiu em 1909; a França, graças aos seus registros elaborados de coleta de impostos sobre propriedades e aos seus históricos detalhados, tem dados sobre patrimônio que remontam ao final do século 18.

Explorar esses dados não é fácil. Mas usando todos os truques da profissão, e alguns palpites bem informados, Piketty consegue produzir um sumário da queda e ascensão da desigualdade extrema ao longo dos últimos 100 anos.

Como eu disse, descrever nossa era como uma nova Gilded Age ou Belle Époque não é simples hipérbole; é a verdade pura e simples. Mas como foi que isso aconteceu?

Piketty lança um repto intelectual imediato, por meio do título do seu livro: “Capital no Século 21”. Economistas ainda podem falar assim?

Não é apenas a alusão evidente a Marx que torna o título tão surpreendente. Ao invocar o capital desde o começo, Piketty abandona as discussões mais modernas sobre a desigualdade e retorna a uma tradição mais antiga.

A suposição geral da maior parte dos pesquisadores sobre a desigualdade era a de que a renda auferida, em geral na forma de salário, é o aspecto mais importante, e que a renda gerada pelo capital não é nem importante e nem interessante. Piketty demonstra, porém, que mesmo hoje é a receita do capital, e não a renda do trabalho, que predomina no topo da distribuição de renda. Ele também demonstra que, no passado – durante a Belle Époque europeia e, em menor escala, a Gilded Age norte-americana [período de grande expansão econômica entre 1870 e 1900]- a propriedade desigual de ativos, e não o salário desigual, foi o principal propulsor da disparidade de renda. E ele argumenta que estamos no caminho de volta àquela espécie de sociedade. E não se trata de especulação casual de sua parte. “Capital in the Twenty-First Century”, afinal, é um trabalho que respeita os princípios do empirismo, e é propelido por um arcabouço teórico que busca unificar a discussão do crescimento econômico e da distribuição tanto de renda quanto de riqueza. Piketty basicamente vê a história econômica como a história de uma corrida entre a acumulação de capital e os demais fatores que propelem o crescimento, como o crescimento populacional e o progresso tecnológico.

É certo que essa é uma corrida que não pode ter vencedor permanente. Em prazo muito longo, o estoque de capital e a renda total precisam crescer mais ou menos no mesmo ritmo. Mas um lado ou outro pode permanecer décadas ininterruptas em vantagem. Na véspera da Primeira Guerra Mundial, a Europa havia acumulado capital seis ou sete vezes maior que a renda nacional de cada país. Ao longo das quatro décadas seguintes, porém, uma combinação de destruição física e de desvio de poupança para esforços de guerra reduziu essa proporção à metade. A acumulação de capital foi retomada depois da Segunda Guerra Mundial, mas o período registrou crescimento econômico espetacular – os “Trente Glorieuses”, ou “30 anos gloriosos”. Por isso, a razão entre capital e renda permaneceu baixa. Desde os anos 70, porém, a desaceleração do crescimento implicou em alta na razão entre capital e renda, de modo que o capital e a riqueza vêm caminhando de volta aos níveis que detinham na Belle Époque. E essa acumulação de capital, diz Piketty, terminará por recriar desigualdade ao estilo da Belle Époque, a menos que seja combatida por tributação progressiva.

Por quê? É tudo uma questão de r vs. g – a taxa de retorno sobre o capital (r) versus o ritmo de crescimento econômico (g).

Quase todos os modelos econômicos nos dizem que, caso g caia – o que vem acontecendo desde os anos 70, um declínio que deve continuar devido ao crescimento menor da população em idade de trabalho e ao progresso tecnológico mais lento -, r também cairá. Mas Piketty assevera que r cairá menos que g. Isso não tem necessariamente de ser verdade. Mas se for suficientemente fácil substituir trabalhadores por máquinas – se, para usarmos o jargão técnico, a elasticidade de substituição entre capital e trabalho for superior a um -, o crescimento lento, e a alta consequente na razão entre capital e renda, de fato ampliarão a disparidade entre r e g. E Piketty argumenta que é isso que os registros históricos provam acontecerá.

Se ele estiver certo, uma consequência imediata será uma redistribuição da renda, dos trabalhadores para os detentores de capital. A sabedoria dominante foi sempre a de que não precisávamos nos preocupar que isso acontecesse, e que as parcelas respectivas do capital e do trabalho na renda total se provam fortemente estáveis ao longo do tempo. Em prazo muito longo, porém, há prova de que isso não seja verdade. No Reino Unido, por exemplo, a parcela do capital na renda – quer em forma de lucros empresariais, dividendos, renda fixa ou vendas de propriedades, por exemplo – caiu de cerca de cerca de 40% antes da Primeira Guerra Mundial para pouco mais de 20% em 1971, e de lá para cá recuperou cerca de metade do terreno perdido. Nos Estados Unidos, esse arco histórico é menos claro, mas aqui também a redistribuição em favor do capital está em curso. É especialmente importante apontar que os lucros das empresas dispararam desde o começo da crise financeira, enquanto os salários – incluindo os salários das pessoas com nível mais elevado de educação – se estagnavam.

Uma parcela maior para o capital, por sua vez, eleva diretamente a desigualdade, porque a propriedade do capital é sempre distribuída de modo mais desigual do que a renda do trabalho. Mas os efeitos não se limitam a isso, porque, quando o ritmo de retorno sobre o capital excede fortemente o ritmo de crescimento econômico, “o passado tende a devorar o futuro”: a sociedade tende inexoravelmente a ser dominada pela riqueza hereditária.

Considere como esse processo transcorreu na Europa da Belle Époque. Na época, os proprietários de capital podiam esperar retornos de 4% a 5% sobre seus investimentos, com tributação mínima; enquanto isso o crescimento econômico era de apenas cerca de 1% ao ano. Assim, os indivíduos ricos podiam facilmente reinvestir parte suficiente de sua renda para garantir que sua riqueza, e com ela sua renda, crescesse mais rápido que a economia, o que reforçava seu domínio econômico, e ao mesmo tempo gastar o suficiente para levar vidas de grande luxo.

E o que acontecia quanto esses indivíduos ricos morriam? Sua riqueza era legada aos seus herdeiros – uma vez mais, com tributação mínima. Dinheiro transferido à geração seguinte respondia por entre 20% e 25% da renda anual; a maior proporção das riquezas – cerca de 90% – era herdada e não auferida com a renda do trabalho. E essa riqueza hereditária se concentrava nas mãos de minorias muito pequenas. Em 1910, o 1% mais rico da população controlava 60% da riqueza da França; na Grã-Bretanha a proporção era de 70%.

Não admira, portanto, que os romancistas do século 19 fossem obcecados por heranças. Piketty discute extensamente os conselhos do canalha Vautrin a Rastignac em “Pai Goriot”, de Balzac, que podem ser resumidos na afirmação de que nem mesmo a mais bem sucedida das carreiras poderia resultar em mais que uma fração da fortuna que Rastignac seria capaz de adquirir de um golpe ao se casar com a filha de um homem rico. E a verdade é que Vautrin estava certo: ser parte do 1% mais rico dos herdeiros do século 19 conferia a alguém um padrão de vida cerca de 2,5 vezes superior ao que essa pessoa poderia atingir por meio de esforço que a conduzisse ao 1% mais bem pago dos trabalhadores.

Seria tentador dizer que a sociedade moderna em nada se parece com isso. Na realidade, porém, tanto a renda do capital quanto a riqueza hereditária, ainda que menos importantes do que na Belle Époque, continuam a ser poderosos propulsores da desigualdade – e sua importância está crescendo. Na França, demonstra Piketty, a parcela hereditária da riqueza total caiu acentuadamente na era das guerras e no pós-guerra; por volta de 1970, ela era de menos de 50%. Mas agora retornou aos 70% e continua a crescer.

Da mesma forma, houve primeiro queda e depois nova alta na importância das heranças no que tange a fazer de alguém parte da elite. O padrão de vida do 1% de herdeiros mais ricos caiu abaixo do 1% de trabalhadores mais bem pagos, entre 1910 e 1950, mas voltou a crescer depois de 1970. Ainda não estamos plenamente de volta ao padrão de Rastignac, mas uma vez mais se tornou mais valioso ter os pais certos (ou escolher os sogros certos ao casar) do que ter o emprego certo.

E isso pode ser apenas o começo. As estimativas de Piketty sobre o r e g mundiais em longo prazo sugerem que a era da equalização ficou no passado e que as condições são agora propícias ao restabelecimento do capitalismo patrimonial.

Dado esse quadro, por que a riqueza hereditária desempenha papel tão pequeno quanto de fato faz no discurso político moderno? Piketty sugere que as dimensões das fortunas hereditárias, por serem tão vastas, as tornam invisíveis, de certa forma: “A riqueza é tão concentrada que um grande segmento da sociedade literalmente não tem consciência de sua existência, de forma que algumas pessoas imaginam que pertença a entidades surreais ou misteriosas”. É um argumento muito bom. Mas certamente não constitui a explicação completa. Pois o fato é que o exemplo mais conspícuo de uma disparada na desigualdade no mundo moderno – a ascensão do 1% de muito ricos no mundo anglo-saxão, especialmente nos Estados Unidos, não tem muito a ver com acúmulo de capital, pelo menos por enquanto. Tem mais a ver com remuneração e renda salarial excepcionalmente altas.

“Capital in the Twenty-First Century”, como espero ter deixado claro, é um trabalho excelente. Em um momento no qual a concentração de renda e riqueza nas mãos de uns poucos ressurgiu como questão política central, Piketty não oferece apenas documentação inestimável sobre o que está acontecendo, e com profundidade histórica incomparável. Também oferece o que podemos descrever como uma teoria do campo unificado para a desigualdade, integrando crescimento econômico, a distribuição de renda entre o capital e o trabalho e a distribuição de renda e riqueza entre os indivíduos em um só arcabouço.

E no entanto há uma coisa que subtrai algum mérito a essa realização – uma espécie de prestidigitação intelectual, se bem que ela não envolva nenhuma trapaça ou falsidade da parte de Piketty. Mesmo assim, eis: O principal motivo para que houvesse necessidade de um livro como esse é a ascensão não só do 1% mas do 1% dos Estados Unidos, especificamente. Mas essa ascensão, como se pode verificar, aconteceu por motivos que não fazem parte do escopo da grande tese de Piketty.

Ele é um economista bom e honesto demais, é claro, para tentar enrolar com relação a fatos inconvenientes. “A desigualdade nos Estados Unidos em 2010”, afirma, “é quantitativamente tão extrema quanto na velha Europa da primeira década do século 20, mas a estrutura dessa desigualdade é – muito claramente – distinta”. De fato, o que vimos nos Estados Unidos e estamos começando a ver em outros lugares é algo de “radicalmente novo”: a ascensão dos “supersalários”.

O capital ainda importa. Nos escalões mais elevados da sociedade, a renda do capital ainda excede a renda dos salários e bonificações. Piketty estima que a desigualdade aumentada da renda do capital responda por cerca de um terço do aumento da desigualdade nos Estados Unidos. Mas a renda salarial no topo também disparou. Os salários reais da maioria dos trabalhadores dos Estados Unidos cresceram pouco, se alguma coisa, do começo dos anos 70 para cá, mas os salários do 1% de trabalhadores mais bem pagos subiram em 165%, e os do 0,1% mais bem pago em 362%. Se Rastignac estivesse vivo hoje, Vautrin talvez reconhecesse que ele poderia se sair tão bem arrumando emprego como administrador de um fundo de hedge quanto se arrumasse um casamento rico.

O que explica essa ascensão dramática na desigualdade de renda, com a parte do leão dos ganhos reservada às pessoas no topo da escala? Alguns economistas dos Estados Unidos sugerem que a tendência seja propelida por mudanças na tecnologia. Em um famoso estudo publicado em 1981, intitulado “A Economia dos Superastros”, Sherwin Rosen, economista de Chicago, argumentava que a moderna tecnologia de comunicação, ao estender o alcance dos indivíduos talentosos, criava mercados nos quais todas as recompensas cabiam aos vencedores, mesmo que eles fossem apenas modestamente melhores naquilo que fazem do que rivais menos bem pagos.

Piketty não aceita essa teoria. Ele aponta que economistas conservadores adoram falar sobre os altos salários de astros de uma ou outra ordem, como os de cinema ou do esporte, como maneira de sugerir que as altas rendas são realmente merecidas. Mas esse tipo de pessoa forma uma fração muito pequena da elite da renda. O que encontramos, em lugar disso, são principalmente executivos de uma ou outra ordem – pessoas cujo desempenho é, de fato, muito difícil de avaliar ou de definir em termos de valor monetário.

O que determina o valor de um presidente-executivo em uma grande companhia? Bem, existe um comitê de remuneração, indicado pelo presidente-executivo mesmo. Na prática, argumenta Piketty, os executivos de alto nível ditam sua remuneração, restringidos apenas pelas normas sociais e não por qualquer forma de disciplina de mercado. E ele atribui a disparada nos salários a uma erosão das normas sociais. Na prática, ele atribui a disparada na renda salarial entre os mais bem pagos a forças sociais e políticas, e não estritamente econômicas.

É justo apontar que ele oferece uma possível análise econômica sobre essa mudança de normas, argumentando que a queda das alíquotas tributárias para os ricos na verdade fez com que a elite salarial ganhasse em ousadia. Quando um importante executivo retinha apenas uma pequena fração da renda que poderia receber violando as normas sociais e estabelecendo para si mesmo um salário muito alto, ele talvez decidisse que o opróbrio que sofreria não valeria a pena. Mas o corte drástico de sua alíquota tributária pode levar uma pessoa como essa a se comportar diferentemente. E quanto mais os titulares de supersalários violarem as normas, mais essas normas mesmas mudarão.

Há muito a elogiar nesse diagnóstico, mas lhe falta claramente o rigor e a universidade da análise de Piketty sobre a distribuição e retornos da riqueza. Além disso, não acho que “Capital in the Twenty-First Century” rebata adequadamente a crítica mais reveladora quanto à hipótese sobre o poder dos executivos: a concentração de rendas muito altas nas finanças, onde é possível, em certa medida, avaliar desempenhos. Não mencionei administradores de fundo de hedges irrefletidamente. Pessoas como eles são pagas com base em sua capacidade de atrair clientes e obter retornos sobre seus investimentos. Pode-se questionar o valor social das finanças modernas, mas os Gordon Gekkos do mercado são claramente bons em alguma coisa, e sua ascensão não pode ser atribuída apenas a relações de poder, ainda que eu imagine que seja possível argumentar que a disposição de se envolver em transações financeiras dúbias, assim como a disposição de violar as normas sociais quanto aos salários, é incentivada pelos impostos baixos.

No geral, a explicação de Piketty sobre a alta na desigualdade salarial me parece convincente, ainda que o fato de que não inclua a desregulamentação no quadro analítico seja um desapontamento significativo. Mas, como afirmei, a análise dele quanto a isso carece do rigor de sua análise sobre o capital, para não mencionar sua imensa e inspiradora elegância intelectual.

No entanto, não devemos exagerar em nossa reação a isso. Mesmo que a disparada na desigualdade norte-americana até o momento tenha sido propelida principalmente por renda salarial, o capital ainda assim exerceu papel significativo. E de qualquer jeito, a história no futuro deve se provar bastante diferente. A atual geração de norte-americanos muito ricos pode consistir em larga medida de executivos e não rentiers, ou seja, pessoas que vivem de capitais acumulados. Mas esses executivos têm herdeiros. E dentro de duas décadas os Estados Unidos podem ser uma sociedade dominada pelos rentiers, com desigualdade ainda maior do que a da Europa na Belle Époque.

O que não significa que isso precise inevitavelmente acontecer.

Há momentos em que Piketty parece oferecer uma visão determinista da História, sob a qual tudo deriva do ritmo de crescimento populacional e de progresso tecnológico. N a realidade, porém, “Capital in the Twenty-First Century” deixa claro que a política pública pode fazer imensa diferença, que mesmo se as condições econômicas subjacentes apontarem para desigualdade extrema, aquilo que Piketty define como “deriva em direção à oligarquia” pode ser detido e até revertido, se o organismo político assim decidir.

O ponto chave é que, quando fazemos a comparação crucial entre a taxa de retorno sobre a riqueza e a taxa de crescimento econômico, o que importa é o retorno obtido pela riqueza após os impostos. Assim, uma estrutura de taxação progressiva – especialmente a tributação da riqueza e das heranças – pode se tornar uma força poderosa de limitação da desigualdade. Piketty conclui sua obra-prima, de fato, como um apelo por uma forma de tributação como essa. Infelizmente, a história que ele mesmo cobre em seu livro não oferece motivos para otimismo.

É verdade que, por boa parte do século 20, uma forte tributação progressiva ajudou a reduzir a concentração de renda e riqueza, e você poderia imaginar que uma alta tributação para as rendas mais elevadas seja o desfecho político natural quanto uma democracia precisa enfrentar desigualdades extremas. Mas Piketty rejeita essa conclusão: o triunfo da tributação progressiva durante o século 20, ele argumenta, foi apenas “o efêmero produto do caos”. Se não tivessem acontecido as guerras e os tumultos da moderna guerra dos 30 anos europeia, ele sugere, nenhuma tendência parecida teria surgido.

Como provas, ele oferece o exemplo da Terceira República francesa [1870-1940]. A ideologia oficial da república era altamente igualitária. Mas a riqueza e a renda eram quase tão concentradas, os privilégios econômicos quase tão dominados pelas heranças, quanto na monarquia constitucional britânica do lado de lá do Canal da Mancha. E a política pública quase nada fazia para se opor ao domínio econômico dos rentiers: os impostos sobre as heranças, especialmente, eram quase ridiculamente baixos.

Por que os cidadãos franceses, dotados do sufrágio universal, não votavam em políticos que assumissem o compromisso de enfrentar a classe dos rentiers? Bem, então, como agora, a riqueza comprava muita influência – não apenas sobre a política, mas sobre o discurso público. O escritor norte-americano Upton Sinclair, em uma citação que se tornou famosa, disse que “é difícil fazer com que um homem compreenda alguma coisa quando seu salário depende de que ele não a compreenda”. Piketty, contemplando a história de seu país, chega a uma observação semelhante: “A experiência da França na Belle Époque prova, se é que provas são necessárias, que nenhuma hipocrisia é grande demais quando as elites econômicas e financeiras se veem obrigadas a defender seus interesses”.

O mesmo fenômeno é visível hoje. Na verdade, um aspecto curioso do cenário norte-americano é que a política da desigualdade parece estar caminhando até à frente da realidade. Como vimos, a essa altura as elites econômicas dos Estados Unidos ainda devem seu status principalmente aos salários, e não à renda do capital.

Mesmo assim, a retórica econômica conservadora já enfatiza e celebra o capital, de preferência ao trabalho – os “criadores de empregos”, não os trabalhadores.

Em 2012, Eric Cantor, líder da maioria republicana na Câmara dos Deputados, optou por celebrar o Dia do Trabalho – o Dia do Trabalho! – com uma mensagem no Twitter em honra dos donos de empresas: “Hoje celebramos aqueles que assumiram riscos, trabalharam duro, construíram um negócio e mereceram o sucesso que têm”.

Talvez abalado pela reação adversa, ele teria supostamente sentido a necessidade de lembrar aos colegas de partido, em um evento posterior dos republicanos, que a maioria das pessoas não é dona de empresas – mas isso basta, em si, para mostrar até que ponto o Partido Republicano se identifica com o capital, virtualmente excluindo o trabalho.

E essa orientação favorável ao capital tampouco é apenas retórica. A carga tributária sobre os norte-americanos de alta renda vem caindo de forma generalizada desde os anos 70, mas as maiores reduções aconteceram nos impostos sobre a renda gerada pelo capital – o que inclui uma forte queda nos impostos das empresas, o que indiretamente beneficia seus acionistas – e nos impostos sobre heranças. Às vezes, parece que porção substancial de nossa classe política está trabalhando ativamente para restaurar o capitalismo patrimonial que Piketty descreve. E se observarmos as fontes de doações políticas, essa possibilidade parece muito menos absurda do que poderia ser.

Piketty conclui “Capital in the Twenty-First Century” com um chamado às armas – um apelo, especialmente, por impostos sobre a riqueza, se possível em escala mundial, a fim de restringir o crescente poder da riqueza hereditária. É fácil ser cínico sobre as perspectivas de sucesso dessa empreitada. Mas certamente o magistral diagnóstico de Piketty sobre a situação em que estamos e a situação a que estamos nos encaminhando torna o êxito consideravelmente mais provável. Por isso, “Capital in the Twenty-First Century” é um livro extremamente importante em todas as frentes. Piketty transformou nosso discurso econômico; jamais voltaremos a falar sobre renda e desigualdade da maneira que fazíamos.

* – Paul Krugman é colunista do “New York Times” e professor de Economia e assuntos internacionais na Universidade de Princeton. Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2008.

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