Maria da Conceição Tavares: Resistir para avançar

Saul Leblon | Carta Maior

Cautelosa, quase reticente em falar de economia, ‘numa hora em que tem tanta gente falando bobagem’, Maria da Conceição Tavares, a decana dos economistas brasileiros, voz sempre ouvida com atenção quando o horizonte se anuvia, como agora, rejeita as soluções miraculosas oferecidas na praça para destravar os nós do crescimento brasileiro.

A campanha eleitoral antecipada na queda de braço em torno da Copa do Mundo exacerbou a divisão do país em duas visões de futuro, diz a voz cautelosa.

Uma valoriza os avanços obtidos na construção da democracia social nos últimos doze anos.

Não considera o caminho concluído, mas é o que está sendo construído.

A outra, majoritariamente abraçada pelo conservadorismo e seu martelete midiático, equipara o resultado desse percurso a uma montanha desordenada de escombros .Um Brasil aos cacos.

Propõe-se a saneá-lo de forma radical.

Em primeiro lugar, esse ‘começar de novo’ retiraria o país das mãos do ‘populismo petista’, em outubro próximo.

Para entregá-lo em seguida a quem entende do ramo: os mercados e suas receitas de ‘contração expansiva’, que combinam arrocho salarial e fiscal com fastígio dos fluxos de capital sem lei.

Na conversa com Carta Maior, Conceição avança com cuidado, escolhendo as palavras ao transpor o limite que havia se imposto de não mexer nesse ambiente conflagrado.

‘A situação é muito delicada por conta do encavalamento de gargalos econômicos e disputa eleitoral’, admite.

‘Mas o fato é que o projeto em curso é o mais adequado à sociedade brasileira’, afirma esticando seu divisor no campo minado.

“Avanços sociais, emprego, salário e crédito para manter a atividade –não para puxar, me entenda, mas para manter o nível de atividade’, desfia a economista enquanto delimita a sua trincheira de resistência.

“São doze anos de estirão por essa via, agora é manter, enquanto se avança no investimento em infraestrutura, que vai puxar o novo ciclo. É o que tem que ser feito. E está sendo feito’, enfatiza para demonstrar certo desalento em seguida:

“A maior dificuldade reside justamente nisso. Não há muito mais o que inventar, essas coisas mirabolantes que se puxa da cabeça, como se a crise fosse uma coisa mental e não uma luta social, não fazem sentido e arriscam por tudo a perder’.

Em outras palavras, os desafios graves não são endógenos ao modelo, nem superáveis na atual correlação de forças. Daí a dificuldade em se traçar um caminho reto e previsível em direção ao passo seguinte da história.

Quem fala entende de crise.

Conceição nasceu em abril de 1930, seis meses depois da 5º feira negra de outubro de 1929, quando as bolsas reduziram todo um ciclo capitalista de riqueza especulativa a pó e pânico.

‘O que se passa é distinto de tudo aquilo’, dizia ela em entrevista a Carta Maior no calor dos acontecimentos da desordem neoliberal, em 2011.

Aquele entendimento pioneiro é reiterado hoje quase com as mesmas palavras, agora endossadas pelos fatos em curso.

“Essa é uma crise que estreita o campo de manobra , ao invés de ampliá-lo, como em 29. Sim, você tem a comprovação empírica do fracasso neoliberal, mas são eles que persistem e dão as cartas no xadrez global. Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos neoliberais: a pasmaceira política aqui é reflexo desse paradoxo’.

A professora de reconhecida bagagem intelectual, em geral prefere não avançar na reflexão política e ideológica. Mas tem feito concessões diante do cenário de areia movediça no qual a bússola política parece ter perdido a capacidade de mediar o cipoal econômico (leia ao final desta nota trechos de um artigo de Maria da Conceição , ‘A era das distopias’, publicado originalmente na revista Insight Inteligência).

Preocupa-a a ansiedade que a crispação política injeta no quadro econômico.

‘Os partidos estão desengonçados, os movimentos sociais fracionados, os sindicatos aquém do espaço que lhes cabe. Essa pulverização incentiva soluções redentoras’, avisa com um misto de preocupação e revolta.

Conceição metaboliza o diagnóstico alguns segundos para alvejar:

‘Uns querem milagre social, outros arrocho fiscal ’. Repete a disjuntiva, satisfeita com a síntese extraída à força do denso nevoeiro.

‘E ambos estão desastradamente equivocados!’, arremete então escalando as sílabas.

A crítica aberta alveja, de um lado, movimentos avulsos que se comportam às vezes como clientes da sociedade e não corresponsáveis pela arquitetura de sua emancipação.

De outro, a pregação ortodoxa, a ecoar a agenda tucana para outubro de 2014.

‘Uns querem milagre, outros arrocho’, reitera. E nesse corredor estreito elege a resistência histórica como o chão pelo qual vale a pena lutar nesse momento.
‘Lula está certo, em geral ele está certo’, pondera.

‘Lula é uma pessoa sensata, ao contrário de muitos economistas visionários que estão à procura de um novo modelo; ele sabe que uma conquista histórica não se pode perder’.

‘Se não há inflação de demanda, e não há, então por que arrochar o crédito?’, questionou o ex-presidente em evento recente no Rio Grande do Sul, diante de autoridades da área econômica do governo.

Conceição o ampara.

‘A inflação de alimentos tem origem na seca, não na exacerbação da demanda. O custo da energia, idem. Do lado externo, o dólar baixo que desestabiliza o setor externo da economia é um reflexo da fraca recuperação mundial. Vamos negociar um novo modelo com o clima ou com o Fed ?’, detona.

Sem mudar o tom de voz, a economista debulha e esfarela os grãos das receitas alternativas: ‘Vamos fazer um arrocho fiscal? Arrocho quem faz são eles. Eu não recomendo mexer em modelo algum. O que devemos é sustentar o nível de atividade e avançar no investimento em infraestrutura , com forte aporte estatal’, discorre já inteiramente à vontade e rompida com a decisão de não discutir ‘aquilo que vive um momento delicado’ : a luta pelo desenvolvimento brasileiro.

Conceição não acredita que o país possa recuperar integralmente o espaço perdido pela sua indústria para a concorrência internacional. Mas preconiza uma revitalização em novas bases. Injetando nervos e musculatura à capacidade competitiva com uma dose combinada de desvalorização cambial e redução do juro –‘ Não agora, no próximo governo, quando a inflação climática perder seu ímpeto’.

A reinvenção do sistema industrial conta, no seu entender, com uma alavanca fortemente apoiada em três pontos de chão firme: mercado de massa, pré-sal e grandes projetos de infraestrutura. ‘Não é coisa pouca’, encoraja.

O ceticismo dos que enxergam uma contradição insolúvel num capitalismo que bordeja a fronteira do pleno emprego não ofusca seu campo de visão.

O emprego, o salário e o crédito ordenam a ótica histórica dessa economista que modulou a filiação keynesiana pela chave da esquerda.

Formam trunfos da luta pelo democracia social, não obstáculos.

Muito diferente da estranha ponte de consenso que se esboça entre segmentos progressistas e concepções ortodoxas acerca do passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.

Os pilares dessa construção híbrida constatam que o pleno emprego no capitalismo enseja ganhos salariais acima do incremento de produtividade.

Uma dissociação que resultaria em desequilíbrios esgotantes circunscrevendo a história em uma espécie de inferno de Sísifu: luta-se para gerar empregos até que, uma vez criados, eles se tornam disfuncionais e devem ser destruídos.

Pelo bem do sistema.

E ai de quem não o fizer.

O ‘populismo petista’ está entre os que resistem. A um custo alto para a economia.

Em miúdos e graúdos a fatura assumiria a forma de uma inflação ascendente, com retração do investimento produtivo em proveito da especulação rentista –que se beneficia da alta dos juros inerente à tensão inflacionária do conjunto.

É o diagnóstico híbrido que se dissemina.

Mas que Conceição rejeita.

A ideia de um sistema econômico intrinsecamente avesso ao pleno emprego é estranha a essa economista.

Como assim, se o que tivemos nos trinta anos do pós-guerra foi exatamente pleno emprego, com estabilidade, direitos e crescimento?’, questiona.

O que existe hoje, no seu entender, é um pouco mais complexo e enervado de história do que uma fórmula fechada em si.

A desregulação financeira –que se explica em parte por erros, rendições e derrotas da esquerda mundial — catalisou e fortaleceu interesses contrários a um desenho de desenvolvimento comprometido com a maior convergência da riqueza e das oportunidades.

‘Aceitá-lo como inexorável explica o funeral da socialdemocracia europeia’, diz Conceição.

Mas não significa que não se possa –se deva, retruca– reinventar o espaço de um desenvolvimento cuja finalidade seja gerar empregos, salários, qualidade de vida e direitos.

Esse espaço morreu na Europa hoje.

“Mas está vivo no Brasil e partes da América Latina’, lembra essa portuguesa que escolheu a luta pelo desenvolvimento com justiça social como sua pátria.

De dentro dela, Conceição encara as adversidades a sua volta e endossa a intuição de Lula e o destemor de Dilma com uma palavra tantas vezes pertinente em sua vida: resistir, resistir, resistir.

‘Resistir para avançar. O resto é arrocho’.

Leia, abaixo, trecho de um artigo de Maria da Conceição Tavares, publicado originalmente na revista Insight Inteligência.

A era das distopias

“As pessoas estão perdidas, não sabem como se guiar do ponto de vista político, econômico. E com isso a história parece que não se move. O futuro fica ilegível, amorfo”

“Na verdade, se o PIB é “pibinho” ou não, qual o problema? vai ser 2%, 3% ou 4%? O problema é ter emprego. Para mim, os critérios clássicos são emprego, salário mínimo e ascensão social das bases”

Desde o século XVIII, os movimentos políticos, sociais e econômicos deixaram de se orientar pela ideia de tradição, substituindo-a pela de um futuro diferente e melhor. Eles acreditavam que a história tinha um sentido, um objetivo, uma utopia: criar uma sociedade mais livre e mais igualitária.

A busca da liberdade pautou o século XIX: liberdade do indivíduo, política e econômica, representada pela Revolução Francesa. Depois, no século XX, veio o marxismo e a promessa do reino da igualdade, representada pela Revolução Russa. Foi também em nome da igualdade que se construiu o Estado do bem-estar, como uma alternativa ao socialismo.

O planejamento era uma ideia inseparável dessa visão de mundo. Democratização, planificação, esse é o século XX. As pessoas acreditavam que o futuro estava destinado a isso. E orientavam-se politicamente em função da reconstrução do mundo. Mas essa orientação histórica rumo à liberdade e à igualdade, elaborada no Iluminismo, acabou no final do século XX.

Acho difícil saber para onde vamos. Não dá para dizer se o resultado do que está ocorrendo será positivo ou negativo, à luz do que se conheceu até aqui. O que ocorre hoje pode ser uma transição ou um apodrecimento. Transição não sei para quê, porque não há uma utopia prévia. Você podia falar em transição para o socialismo no século XVIII ou XIX porque estavam lá as manifestações e as utopias prévias. Mas, agora, a transição para o socialismo quer dizer o quê?

Tudo bem, pode ser que seja um viés reformista da minha geração… Eu sou uma adolescente do século XX e me identifico muito com ele, a favor do que era bom, e contra o que era ruim. Por outro lado, não vejo causas que sirvam para agregar de forma propositiva tantos interesses fracionados. Ninguém sabe como reagir se não há conceito e pensamento, organizados a partir de uma utopia. Acho que esta sensação de impotência, de não se ver ninguém pensando diferente, deriva daí.

Diga-me um autor relevante que não esteja pensando dessa maneira, prostrado pela falta de alternativas? Não há ousadia em nada, pelo menos do ponto de vista do pensar. Ninguém na academia está falando nada muito diferente. Por isso, não gosto de dar entrevista, não quero engrossar o coro de lamentação dos intelectuais. Pode ser que eu já esteja ultrapassada, que esteja velha. Mas é como eu estou vendo. De qualquer forma, esse ciclo vai passar. Torcemos para que ele não seja longo’.

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