Lena Lavinas*
“You cannot have a vibrant economy if there are no consumers”
Elliot Harris, IMF representative, FSE-ILO Seminar, Berlin, September 2012.
Cenário I
Nas suas trocas epistolares, notadamente em 1942, Beveridge e Keynes (Harris, 1997) forjaram a “dobradinha” mais exitosa do século XX ao contribuirem reciprocamente para o desenho e justificativa do que viria a ser o modelo de regulação social por excelência do regime de acumulação fordista, vislumbrando não apenas sua complementaridade senão sua eficácia para contrarrestar a incerteza e a instabilidade econômica, ambas fonte de profunda insegurança socioeconômica para famílias e indivíduos e ameaça ao próprio sistema.
O welfare state keynesiano (Jessop, 1993) foi a inovação genial, cuja lógica assentou-se na dissociação entre bem-estar individual e rendimentos do trabalho ou de ativos, logo, na desvinculação entre renda individual e dinâmica econômica, de modo a manter a demanda agregada em nível satisfatório, notadamente em épocas de retração da atividade econômica. Um patamar mínimo de renda deveria, portanto, ser garantido a todos, independentemente do valor de seu trabalho ou propriedades, e caberia ao Estado assegurar tal patamar, além de garantir que todos os cidadãos, sem distinção de classe ou status, tivessem a possibilidade de ter acesso ao melhor padrão possível de um conjunto de serviços considerados indispensáveis (Briggs, 1961). Pela primeira vez, o direito a benefícios sociais e proteção estende-se, portanto, ao conjunto da população e não apenas aos contribuintes, peça-chave do modelo bismarkiano pregresso, nem àqueles cuja sobreviência mostra-se ameaçada (Lei dos Pobres).
Essa configuração da relação Estado-mercado engendrou, de forma constante e estável, as condições de reprodução da força de trabalho em consonância a um padrão de consumo de massa, viabilizado a partir da consolidação de novos direitos sociais. E promoveu, assim, lá onde vingou, três décadas de prosperidade, nunca antes alcançada, com redução dos níveis de pobreza e desigualdade e melhora extraordinária de inúmeros indicadores sociais. Fez mais: promoveu coesão social e estabilidade socioeconômica. Gerou muita riqueza, reduzindo assimetrias. Logo, trata-se de um padrão que, de fato, favoreceu e incentivou a redistribuição do bem-estar e espraiou segurança para fazer frente à máquina desestabilizadora do capitalismo.
Atente-se para algumas premissas dessa forma de regulação social:
i) a igualdade de tratamento: supera as clivagens de classe ou status, fazendo da cidadania a justificativa para o acesso universal – políticas para todos, (ou, nas palavras de Beveridge, 1942, “a plan all-embracing in scope of persons and needs”);
ii) fim do “Estado dos serviços sociais”: o Estado do bem-estar não se restringe mais, como no passado, à época da Lei dos Pobres ou no âmbito do modelo bismarkiano, a prover um conjunto limitado de serviços para um grupo restrito da população;
iii) cobertura em função das contingências e necessidades: em lugar de mínimos sociais em nível da sobrevivência, como no passado, cabe ao Estado assegurar proteção ao longo de todo o ciclo de vida, e garantir um padrão de bem-estar compatível e adequado ao desenvolvimento econômico e sua evolução. Logo, não se circunscrevem direitos a “pacotes”.
Embora o bem-estar ocupacional (Titmuss, op. cit. by Alcock and allii, 2001) tenha centralidade nesse modo de regulação através da prioridade ao pleno emprego, dois pilares igualmente importantes nesse modelo são a política fiscal e a estrutura da política social propriamente dita, expressa nas suas distintas modalidades, sejam transferências de renda (contributivas ou não contributivas) ou provisão de serviços desmercantilizados. A interação fecunda entre essas três dimensões do bem-estar supõe uma associação estreita entre política econômica e a política social latu sensu, cujos impactos redistributivos revelaram-se surpreendentes no pós-guerra, promovendo nas economias ocidentais que adotaram tal modo de regulação não apenas mais igualdade, mas também mobilidade social, o que revela ter havido “igualdade de oportunidades”. Nesse período o gasto social cresceu sistematicamente e equalizou chances através da desmercantilização de um conjunto de provisões nas áreas da saúde, educação, moradia, etc.
Cenário II
Nos últimos 30 anos, muito se escreveu e argumentou acerca da falência do modo de regulação social descrito sinteticamente acima. Entre sinais do “recuo” da política social (Clayton and Pontusson, 1998) e permanência (Pierson, 1996) com alguns ajustes (Pallier, 2000), e evidências incontestes de que o Estado do Bem-estar permanece operacional, essencial e se adequa a um novo regime de acumulação flexível (Boyer, 2012) em nível global, e com sucesso, promovendo segurança e prosperidade, o que se vê é a centralidade da política social e sua relevância, não só pela magnitude do gasto social que segue elevada (como proporção do PIB, em valores per capita, nas bases da OCDE, Banco Mundial e CEPAL), como pela expansão acelerada de muitos de seus mecanismos (seguro social, safety nets, saúde pública) no âmbito das novas ou já consolidadas economias de mercado, em particular na Ásia (The Economist, 8 de setembro de 2012).
Contudo, parece claro que a crise de 2008 deu fôlego novo e legitimidade a um projeto que carecia de justificativas consistentes para se tornar hegemônico e oportuno. É fato que os resultados derivados dos experimentos de privatização dos sistemas de aposentadorias e pensões e da saúde, desenvolvidos na América Latina nas décadas de 80 e 90, são eloqüentes e incontestáveis quanto ao fracasso de um modelo de bem-estar alheio à regulação do Estado e à provisão pública. Foram necessárias 2 décadas de acentuado declínio da cobertura do número de aposentados e pensionistas, de redução do valor médio das aposentadorias e aumento significativo da pobreza entre idosos – sem falar no grau de concentracao das AFPs responsáveis pela gestão dos sistemas privados e de seus custos, gerando ineficiências – e de degradação do acesso a tratamento médico e hospitalar para que fosse desmascarada a promessa do “tudo pelo mercado”.
Enquanto a privatização dos sistemas contributivos e da saúde avançava sem controle de seus impactos, nem monitoramento, os efeitos das políticas de ajuste se faziam sentir sobre a grande maioria da população vulnerável, cuja magnitude aumentava, demandando algum tipo de intervenção compensatória, rápida e consequente para estancar externalidades negativas em escopo crescente. Multiplicam-se, assim, os mecanismos pró-mercado, através da disseminação dos programas de garantia de renda mínima focalizados nos mais pobres.
Até 1995, instituições como o Banco Mundial e o FMI eram radicalmente contrários a transferências de renda, em nome do princípio de que o consumo dos pobres é sempre, invariavelmente, ineficiente. Deveria, portanto, ser bypassado através de programas in kind pontuais. Passam, porém, a adotar mínimos sociais a partir da formulação de um novo framework conceitual, o do social risk management (Holzmann and Jorgensen, 2000), que nada mais é que uma forma de expandir mercados, através da monetarizacao dos grupos que vivem notamente na subsistência (área rural, indígenas, least developed countries, etc) ou são extremamente pobres. Isto é, trata-se de reforçar e aprofundar laços com as forças de mercado, antes débeis e instáveis, pouco enraizadas. Como cunhado pelos autores, proteção social consists of public interventions (i) to assist individuals, households, and communities better manage risk, and (ii) to provide support to the critically poor (Holzmann and Jorgensen, 2000, pp. 9). Central a esse novo framework a ideia, portanto, de que não se trata de prover proteção através da provisão de bens e serviços e de uma renda relativamente segura, alheia à dinâmica econômica, mas de prover assistência para que famílias, indivíduos e comunidades possam, através de boas práticas, melhor enfrentar os riscos inerentes à globalização e às incertezas crescentes daí derivadas. E, claro, prover apoio material, proteção, exclusivamente para aqueles vivendo na destituição mais aguda. Para uns assistência técnica, conselho, quase consultoria – com base em regras a serem observadas – para outros, aqueles criticamente carentes, apoio materializado em um colchão de sobrevivência.
Se uma das vertentes da gestão social do risco são os programas de cash transfers means-tested, as demais propugnam os programas de microcrédito, microfinanças, chegando, inclusive, na proposta pilotada pela OIT à oferta de micro seguros de saúde para países pobres. Trata-se de ampliar e consolidar mercados, na contramão do princípio básico de proteção social que é dissociar a reprodução das condições de vida e bem-estar das condições do mercado. A meta é literalmente inserir no mercado contingentes numericamente importantes da população mais vulnerável – bilhões de pessoas ! – de modo a reduzir falhas de mercado, que acabam por obstaculizar a dinâmica da globalização e do novo padrão de acumulação.
É com a criacao das Metas de Desenvolvimento do Milênio, também em 2000, que se forja um consenso amplo sobre essa nova estratégia de prover proteção mínima apenas aos comprovadamente e severamente pobres. Aos demais, informação e meios técnicos para enfrentar riscos inevitáveis. Inicialmente, o FMI e BM logram implementar sua linha de pobreza e de indigência como referência. Ela é extremamente baixa e não deveria ser igualmente aplicada em países de renda média, renda média alta e países pobres. One size does not fit all! Essa linha parametriza hoje quem pode tornar-se beneficiário do Bolsa Família . Em simultâneo, constrói-se uma grande articulação institucional que hoje reúne 35 agências multilaterais, na sua grande maioria do sistema ONU, com o apoio da UE. É dificil ser contra uma estratégia que visa reduzir a pobreza extrema em 50%, a mortalidade materna em 1/3, a mortalidade infantil, etc. Mas o último relatório sobre as MDM , cujo prazo de validade é 2015, revela que o projeto tem feito água e aponta o reiterado descompromisso dos países desenvolvidos que até hoje – salvo raras exceções, os países nórdicos, as usual – não honram a contribuição de 0,7% de seu PIB para um fundo de apoio permanente ao combate à pobreza .
Cenário III
Mas houve um upgrade nessa proposta, propiciado pela crise de 2008. No âmbito do framework do Social Risk Management (também formulado para uma crise, mas à época, mais amena), os programas de transferência de renda focalizados eram vistos de forma ad hoc, visando a disseminação de relações monetárias para expandir mercados através de um piso de sobrevivência, o que o pensamento conservador sempre reconheceu como necessário (Barr, 2004). Até porque é relativamente barato prover tais mínimos de sobrevivência. Very cheap, indeed! Não é preciso fazer reformas fiscais, elevar IR, nada…. qualquer sobrinha no orçamento dá conta e tem grande visibilidade. Basta recordar que na América Latina onde estes programas se espraiaram em praticamente todos os países, salvo raríssimas exceções (Nicarágua, por exemplo), a despesa com eles não ultrapassa 0,6% do PIB nacional. Ademais, ao repassar aos indivíduos e famílias parcos recursos monetários, o Estado se descompromete de outras obrigações, que onerariam muito mais os cofres públicos e o fariam verdadeiramente se substituir ao mercado.
Essa “janela de oportunidade” vem no bojo da crise, cujos impactos dramáticos nos orçamentos públicos das economias desenvolvidas ameaçam de imediato os sistemas de proteção social vigentes – que perdem efetividade para contrabalançar tamanha perda de bem-estar em tão grande escala.
Está em jogo nesta fase pós-crise de 2008 uma nova onda de reformas onde há um consenso geral sobre a garantia de mínimos sociais e parâmetros mínimos, entendidos como básicos (mantém-se a indefinição do que se trata como básico – fica a critério de cada país), pois custa barato, resolve falhas de mercado, e a capacidade fiscal do Estado não é “comprometida”, nem muito menos a lógica de internacionalização dos mercados e de comodificação de todas as dimensões da vida, exceto no caso dos que são economicamente e socialmente incapazes. Basta ver como hoje as grandes seguradoras internacionais varrem o planeta vendendo planos de saúde para todos os bolsos (ainda que não para todos os riscos, muito pelo contrário), sem que, em paralelo, aumentem os mecanismos de regulação e controle. A saúde é um setor que se internacionaliza rapidamente notadamente no mundo em desenvolvimento.
Esse novo framework, agora adequado não apenas aos pobres do mundo em desenvolvimento, mas a todos em todos os países, denomina-se Social Protection Floor – Piso de Proteção Social. Em poucas palavras, esse novo modelo de proteção social, que se pretende universal (para todos um mínimo e para quem puder, o necessário), tem por objetivo estabelecer um piso de proteção no âmbito dos sistemas existentes e, a partir de um conjunto de provisões, prevenir ou aliviar a pobreza, a vulnerabilidade e a exclusão social (ILO, 2012). Os mecanismos para tal são conhecidos, porém agora integrados em um sistema estruturado e delimitado de mínimos bem definidos e circunstritos, não mais ad hoc. Através de um pilar público, pretende-se combater a pobreza assegurando transferências monetárias para crianças pobres, famílias pobres, idosos e portadores de deficiência, e agora também para ativos pobres incapazes de viver exclusivamente dos rendimentos de seu trabalho. Essa é a novidade inquietante! Os working poor aumentam dessde os anos 80, mas agora são um contingente nada desprezível, que segue crescendo. Em paralelo, deve ser assegurado acesso a serviços básicos de saúde, incluindo cuidados na gravidez.
A política social agora passa a ter papel residual operando essencialmente na margem, junto aos “marginais”. Inclusive os que trabalham 40 horas ou mais por semana e nao logram ganhar para viver de seu próprio esforco porque a precarização do emprego e das condições de trabalho lhe roubam esse direito. Estima-se que na Alemanha da alta produtividade industrial, da inovação e da austeridade fiscal, onde não há salário mínimo nacional, senão negociado em cada setor, 12% dos trabalhadores regulares recebem complementação de renda compensatória do Estado porque seus salários não são suficientes para os manter e às suas famílias acima do patamar da pobreza. E nesse país, onde a taxa de fecundidade é alarmantemente baixa (1,36), a menor da Europa e em queda constante, esse aumento da pobreza não acontece em razão do tamanho do denominador no cálculo da renda per capita.
Mas de que política social estamos falando e como ela se articula à política econômica nesse novo regime de acumulação?
Três aspectos se destacam nessa reconfiguracao da política social:
a) a generalização das condicionalidades, como chave de acesso a um benefício, tornando ilegítimo o direito derivado de contigências ou necessidades;
b) a recriação de status diferenciados, o que questiona o princípio da cidadania;
c) o retorno ao padrão do mínimo ou básico, que torna sem efeito valores universais assentados na provisão de igual qualidade em igual quantidade para todos, sem definição a priori dos limites de tal provisão, de seus custos, de sua cobertura.
Retomando ponto por ponto:
a)A multiplicação das condicionalidades nada mais é que uma maneira de impor as novas regras da precarização e da comodificação do mundo do trabalho. Em países como a UK, Holanda, USA e muitos outros – e a prática se dissemina -, um adulto em idade ativa deve hoje comprovar um número mínimo de horas de trabalho remunerado por semana para reivindicar o direito à assistência pública. A finalidade do workfare não é civilizatória, nem da preservação dos valores morais do trabalho como quer fazer crer o pensamento conservador, senão a violência que torna compulsório aceitar qualquer emprego, ainda que indigno, mal remunerado e precário – aceitar, portanto, um novo padrão laboral desfavorável aos trabalhadores – em troca do direito à sobrevivência. Indiretamente, o Estado passa a subsidiar os efeitos trágicos da desregulamentação do mercado de trabalho na vida da classe trabalhadora e favorece a acumulação, barateando o processo;
b)O acesso ao básico é prerrogativa de quem é pobre, vulnerável, excluído, ou qualquer outra categorização que se queira adotar. Claramente, institui-se um padrão dual, onde o público tem por obrigação oferecer cobertura àqueles que não alcançam o mercado. Em lugar da coesão social, promove-se a discriminação, em nome dos direitos humanos. O piso é para quem não tem status de cidadão. Tem status de assistido. A cidadania passa a ser regida pela capacidade de consumo autônoma, e não por uma lógica assentada em direitos;
c)Ao se estabelecer um básico ou mínimo indefinido, fere-se o princípio da universalidade, pois cada status se faz acompanhar de um conjunto de benefícios específicos. É a volta a um padrão de atendimento estratificado em função do status. É o retorno ao passado. Em lugar da inserção ocupacional que distinguia merecedores de não merecedores, agora a clivagem é ainda mais dramática, ter ou não ter renda. É a cidadania agora regulada não pela via da institucionalidade das relações de produção, mas diretamente por valores de mercado.
Nega-se assim um século de construção de um sistema universal de proteção social para retornar ao Estado cuidador dos pobres. O piso mínimo nas aposentadorias será para os não-contribuintes, ou que não lograram pagar regularmente suas obrigações, não se qualificando, na velhice, para a obtenção de uma aposentadoria em valor adequado. Lá onde exitem hoje as aposentadorias básicas, sabemos que elas mantêm na pobreza bom número dos idosos, caso da UK, onde esse piso público foi desviado de sua função precípua e corresponde hoje em média a 17% do rendimento médio do mercado de trabalho. Essa é a porta aberta à privatização, implícita na provisão de tudo aquilo que supera o básico. Esse modelo altera a relação entre mercado e sociedade, dando prevalência àquele na cobertura de um grande número de aspectos ligados à reprodução da vida e dos seres humanos, na contramão do que foi instituído e testado com sucesso no âmbito dos Estados do bem-estar e que consistiu em desmercantilizar bens e serviços. Garantir o básico não opera em prol de um processo emancipatório. Em meio a uma crise como essa de 2008, um eventual básico pré-crise se mantém ou é relativizado em função da conjuntura? O que se passa na Espanha, Grécia, Portugal e alhures sugere que o báscio deve encolher em função da conjuntura.
O Brasil
Mostra-se fundado afirmar que a institucionalidade da nossa Seguridade Social, inscrita na Constituição de 88, foi fator determinante para preservar uma trajetória mais promissora, igualitária e verdadeiramente comprometida com o bem-estar dos brasileiros que o modelo ora na berlinda, defendido e promovido de forma integrada por mais de 3 dezenas de agências multilaterais, notadamente o sistema ONU, associado ao FMI e ao Banco Mundial.
Entretanto, as tensões evidentes na disputa pela mudança/permanência desse sistema de proteção social evidenciam que tal institucionalidade não é forte o suficiente para verdadeiramente estabelecer a relação de interatividade e indissociabilidade entre política social e política econômica que demanda um sistema de proteção social para atingir com êxito seus propósitos. Propósitos esses não apenas de redução dos riscos e dos efeitos das incertezas, mas também de estímulo ao desenvolvimento econômico de forma sustentável. Como lindamente formula Boyer (2012), o modelo de bem-estar dos países escandinavos é a prova de que Beveridge e Schumpeter podem andar juntos! Incentivos ao desenvolvimento econômico não passam pela restrição e pela insegurança socioeconômica dos indivíduos, à mercê de um Estado residualista – o Enabling State liberal concebido já ao final dos anos 80 por Gilbert and Gilbert (1989) -, que impõe a comodificação de todas as esferas da vida, notadamente a da reprodução social, soi disant em favor do ímpeto à capacidade criativa e à adaptação permanente à crise, e a seus efeitos desestabilizadores.
A política social no Brasil segue sendo um braço externo da política macroeconômica, pois uma e outra não operam sinergicamente e de forma reflexiva. Não há coordenação entre ambas, coordenação entendida aqui como um processo onde a tomada de decisão sobre expectativas, estratégias e possibilidades se faz no reforço mútuo dos atores, interesses, organizações e instituições envolvidos e na direção de metas e objetivos definidos em comum acordo. Escapa a essa assertiva o salário mínimo. Esse sim tem sido o fator excepcional, o elo que soma na pavimentação de uma dinâmica de crescimento ancorada na ampliação da demanda através da elevação da renda, provocando queda da desigualdade, recuo dos níveis de pobreza e melhoria das condições de vida. O salário mínimo, mecanismo poderoso de regulação do piso de remuneração do trabalho, promove equidade horizontal, através de um padrão básico. Suas virtudes nesse sentido são incontestáveis – caso do piso das aposentadorias e pensões, vinculados a ele na regra constitucional. Mas, graças à recuperação do seu poder de compra real, em razão da nova fórmula de atualização de seu valor a cada ano, ele também proporcionou redistribuição.
Afora o salário mínimo, a política econômica se faz considerando e servindo-se da institucionalidade da política social – que se impõe quase como uma rigidez -, porém subordinando-a às suas premissas e lógicas de curto prazo, em lugar de servir-se dela, interagir com ela para forjar uma nova dinâmica de desenvolvimento de longo prazo. Inútil recordar aqui os bilhões de Reais desviados não apenas do orçamento da Seguridade Social como da área social no seu conjunto desde a criação da regra draconiana da DRU, ou de suas siglas pretéritas. Ou apontar a desoneração tributária de que se valem os latifundiários modernos do grande agro nacional para compensar um câmbio desfavorável, por força da apreciação do Real (e depois quem não honra suas obrigações são os pequenos produtores familiares que mais plantam para si que para o mercado!). Ou ainda destacar que a busca da maior competitividade das nossas indústrias exportadoras nacionais, com capacidade de inovação quase nula, se faz ao preço de mais desoneração para o capital, enquanto os trabalhadores seguem pagando a seguridade social. Ou finalmente reconhecer que a política social na fase recente de retomada do crescimento limitou-se ao “quase tudo” das transferências de renda (Lavinas, 2007), em detrimento do gasto com bens e serviços (desmercantilizados) como educação, saúde, saneamento, infraestrutura social, moradia. Estes, no mesmo período, registraram progressão em ritmo e magnitude muito inferior (maior expansão foi registrada pela rubrica “assistência social”, cujo gasto aumenta 2,5 vezes entre 2001 e 2009). As consequências desta funcionalidade promercado da política social saltam aos olhos ao se mirar os indicadores de desempenho escolar das nossas crianças, ao circular nas nossas cidades favelizadas e degradadas, nas filas do SUS e nas mortes injustificadas, perdas de dias de trabalho por falta de atendimento médico adequado, embora disponível. A tabela 1 confirma tal evolução. Somente ao final da década, com a ampliação do PAC, observa-se uma retomada do gasto social indireto, com impactos universalizantes na garantia de acesso. A estrutura do gasto social brasileiro se dá predominantemente na forma de transferências de renda monetárias contributivas e não-contributivas e isso não previne ou reduz risco, mas atua na lógica da mercantilização do risco (Fraser, 2012), credo do framework da gestão social do risco.
Tabela 1
Não por acaso, os porta vozes das políticas de combate à pobreza que levam ao paroxismo a mercantilização da vida destacam o extraordinário sucesso do Bolsa Família, para além de seus impactos efetivos e reais na redução da pobreza e da desigualdade. Essa sobrevalorização fictícia do Programa Bolsa Família reflete a lógica de subordinação da política social, e, paradoxalmente, agrada bastante ao governo.
Como já foi amplamente divulgado, houve uma real melhora na ocupação, o que se reflete na queda do índice de Gini dos rendimentos do trabalho, recuando de 0,566 em 2001 para 0,501 em 2011 (IBGE, 2012). Destaque-se que o recente Panorama Social da América Latina 2011 da CEPAL reconhece que a pobreza e a desigualdade recuaram acentuadamente na região na primeira década deste milênio por força da retomada do crescimento com aumento do emprego. Logo, o Brasil, nesse sentido não foi exceção.
Mas qual foi tal dinâmica entre nós? A tabela 2 vem não apenas revelá-la, mas também apoiar nossa argumentação. A partir da construção da renda renda domiciliar per capita, a PNAD autoriza uma decomposição da mesma, segundo as três fontes de rendimentos que a compõem, a saber i) rendimentos do trabalho remunerado, ii) rendimentos oriundos do recebimento de aposentadorias e pensões e iii) rendimentos provenientes de outras fontes que, no caso das pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, indicam muito provavelmente que se trata dos benefícios assistenciais recebidos no âmbito dos programas condicionados de transferência de renda. Trata-se, portanto, de verificar, considerando-se apenas os rendimentos do trabalho, – antes das transferências fiscais -, como evolui o percentual de pobres na população brasileira nessa década de retomada do crescimento. Em seguida, é replicado o mesmo exercício, somando-se os rendimentos oriundos de transferências fiscais, sejam elas contributivas ou compensatórias. Isso permite estimar qual a contribuição real de cada tipo de renda à redução do número de pobres.
A tabela 2 indica que entre 2001 e 2011 o percentual de pobres (renda familiar per capita abaixo de R$ 140,00 mensais em 2011) recua de quase metade da população (47,9%) para 26,3%. Ora se, adicionarmos aos rendimentos do trabalho as transferências fiscais ditas previdenciárias (na sua grande maioria, contributivas), vemos que em 2011 elas conseguem reduzir a pobreza em 12% percentuais (14,8%, contra 26,3% em 2001), mais eficazes, portanto, que em 2001, quando contribuiram para um declínio da pobreza em 10%. Tal efeito ampliado reflete os ganhos derivados da vinculação do piso previdenciário ao salário mínimo. No outro extremo, constatamos que houve também uma ampliação do efeito das transferências compensatórias, uma vez que em 2011 elas retiram da pobreza mais 4% da população, contra 2,7% em 2001.
O que nos interessa, entretanto, é destacar magnitudes radicalmente distintas na contribuição de cada tipo de rendimento à diminuição da pobreza. Sem dúvida, o grande aporte à redução dos níveis de pobreza e indigência vem do mercado de trabalho, com novas oportunidades (mais de 12 milhoes de empregos formais criados no período, sem contar os informais, que cresceram em ritmo mais suave) e um piso salarial nacional em franca recuperação. Essa dinâmica se repete no caso da indigência, pelas mesmas razões já apontadas (efeito conjugado mercado de trabalho, aposentadorias, salário mínimo).
Tabela 2: Evolução da proporção de pobres e indigentes no Brasil 2001-2011
(percentuais segundo origem do rendimento –PNAD, renda domiciliar per capita)
Pela ótica da desigualdade, os dados são igualmente eloquentes. Se considerarmos a parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres na distribuição, vemos que ela aumenta de 2,39% em 2001 para 3,25% em 2011 . Um crescimento a uma taxa expressiva, mas ainda assim em um contexto estruturalmente indiferenciado do anterior, marcado por agudas e constrangedoras assimetrias no controle da renda nacional. No caso, dos 50% mais pobres, a variação é de 12,78% para 16,34% respectivamente. Observam-se ganhos evidentes também com esse grupo. Porém, ao cotejarmos o percentual da renda apropriada pelos 50% mais pobres da populacão em 2011 com aquele que cabe ao 1% mais rico – já que estamos em tempos de expressão dos 99% -, constata-se que este grupo ultra-seleto segue abocanhando em 2011 ainda 11,75% da renda nacional, contra 13,99% em 2001. Pode-se afirmar, portanto, que, apesar de uma inflexão de tendência, as grandezas não variavam significativamente no interior da desigualdade no Brasil. Isso porque, para além da dinâmica do mercado de trabalho – logo das rendas de mercado – o papel da política social mantém-se muito aquém do que a institucionalidade do nosso sistema de proteção social permitiria, não fossem as práticas recorrentes de desconstitucionalização do mesmo. Em outras palavras – e essa é uma boa nova – o crescimento econômico – o mercado, essencialmente – tem colaborado mais que a política social propriamente dita para reduzir a pobreza, a indigência e a desigualdade. As transferências monetárias focalizadas do governo não impactaram de forma decisiva sobre a desigualdade.
Por que isso acontece? Para entender, é necessário olhar o lado do gasto público, já parcialmente abordado acima, e também o da política fiscal (IR, desoneração de determinados tributos que incidem sobre o consumo geral, etc), que são os mecanismos mais efetivos de redistribuição se desenhados a esse fim.
Justamente, no Brasil, pelo lado do gasto, o dispêndio com políticas de provisão universal de serviços que equiparam oportunidades e status é proporcionalmente bem menor ao da despesa com transferências monetárias (majoritariamente contributivas). Não temos políticas universais de transferência de renda por exemplo (exceção feita das aposentadorias rurais em número bem menor que as urbanas). Segundo o próprio FMI, “non-means-tested transfers (including public pensions and universal child benefits) account for the bulk of the redistribution on the expenditure side, especially in the Nordic economies, Austria, Belgium, Poland, and Hungary (Immervoll and others, 2005; Paulus and others, 2009). On the tax side, income taxes achieve the greatest amount of redistribution—in fact, in most economies, the redistribution achieved through income taxes is even higher than for means-tested transfers” (Bastagli et alii, 2012).
Ora, não dispomos no Brasil de um escopo amplo de transferências universais, nem tampouco temos uma política fiscal redistributiva. Tello (2012) coleta um conjunto de dados sobre a redução do Gini para o ano de 2006 a partir da combinação de políticas de transferência que integram mecanismos universais e política fiscal progressiva. Ele demonstra, à página 279 de seu livro sobre o México, que, enquanto no Reino Unido o Gini recua de 0,53 (renda de mercado, sem incidência dos impostos nem recebimento de transferências fiscais) para 0,35 (post-tax-and-post-transfers); na Dinamarca, de 0,49 para 0,29; e na Europa dos 15 de 0,46 para 0,31; na América Latina, tal efeito é marginal, ou seja o Gini pouco se move, passando de 0,52 para 0,50 na media regional. No Chile, essa variação é de 0,47 para 0,46, e no México, de 0,47 para 0,46.
Os Gini para a PNAD 2011, tomando-se em separado cada dimensão dos rendimentos que compoem a renda domiciliar per capita, são os seguintes:
a)Rendimentos exclusivamente do trabalho: Gini 2011 0,601, contra 0,638 em 2010.
b)Rendimentos do trabalho somados aos rendimentos de aposentadorias e pensoes: Gini 2011 0,543, contra 0,595 em 2001.
c)Rendimentos que somam mercado + aposentadorias e pensoes + outras fontes de renda, donde transferências compensatórias que alcançam até o 4 décimo da distribuição: Gini 2011 0,594 contra 0,529 em 2001.
Uma comparação simples com os dados compilados para a UE e alguns países europeus traduzem graus de eficácia bem distintos. Ora, se ainda por cima trabalhássemos com a renda disponível (renda de mercado – impostos e taxas + transferências fiscais), certamente os resultados seriam menos favoráveis.
Em outras palavras, não só a política social na sua integralidade serve menos do que poderia – dada sua institucionalidade forte – ao crescimento, como a primazia do efeito se dá notadamente pelo mercado – rendimentos do trabalho – e pela expansão da mercantilização das relações sociais, inclusive no processo de inclusão dos mais pobres e destituídos ao mercado, mais como consumidores e menos como cidadãos.
Nossos déficits de universalismo nos impedem de promover a sinergia entre política social e política econômica, tendo como objetivo a redistribuição e a redução para níveis verdadeiramente aceitáveis do nosso grau de desigualdade (inferior a 0,40). O caminho a percorrer é ainda longo. Quanto à pobreza e à indigência, a manutenção de patamares tão baixos para sua estimação (linhas respectivas de R$ 140 e R$ 70) explica em boa parte o sucesso do programa. Linhas de pobreza e de indigência que nem deflacionadas são ao final de cinco anos dizem muito de como a política social é manipulada pela política econômica e fonte de diferenciação social – novamente quem tem a vida regulada pelo salário mínimo progride, quem tem estatuto de pobre que agradeça pois os parâmetros para eles são outros. Nem nisso são iguais!
Por que não adotar uma linha de pobreza relativa? Por que manter parâmetros de pobreza absoluta tão baixos e inadequados ao nosso nível de desenvolvimento? Por que a sobrefocalização é a estratégia do Brasil Carinhoso, que, numa contestação frontal ao SUS, agora provê remédios de prevenção da asma apenas para os pequenos beneficiários do Bolsa Família? E creches, são eles os prioritários para uma vaga, porque miseráveis? Creches só para miseráveis, alguma chance de isso dar certo em um país desigual como esse? Sem avaliação, pode-se inferir desde já qual será a qualidade do serviços, ora nas mãos das prefeituras que mais uma vez montarão projetos e no ano seguinte afirmarão ter cobertura de 100% da demanda! E os indicadores nacionais vão de novo subir em termos de cobertura, sem revelar a diferença abissal entre o serviço provido aos miseráveis numa comparação com aquele de que se beneficiam os que podem pagar e depois deduzir despesas com educação de seu IR. O que se passa com as crianças que não estão na pobreza extrema, nem têm pais que lhes podem assegurar uma creche remunerada de qualidade? Esses, os filhos de algumas dezenas de milhões de brasileiros que suam para fechar as contas do mês e vivem numa situação de grande vulnerabilidade, serão certamente responsabilizados por contestarem as estatísticas e não fazerem mais esforços para se juntar aos do andar de cima.
Nossos déficits de universalização se reproduzem através da prática da sobrefocalização que se amplia, com a adoção de mínimos minimalistas, e que se justifica pelo soi disant esforço de se ser mais efetivo em identificar os verdadeiramente necessitados. Essa é a lógica liberal, resiliente na estratégia do governo de perseguir o crescimento econômico e promover o desenvolvimento dando as costas à universalidade. Essa nova fase de crescimento e progresso, a ser celebrada e mantida, não abalou todavia os verdadeiros alicerces da reprodução das desigualdades entre nós. Digamos que nos despimos de uma certa “indecência”, bastante incômoda e anacrônica. Passada a fase de recuperação, e de retorno do crescimento, é agora que se joga o que de fato seremos.
*Lena Lavinas é Professora do Instituto de Economia da UFRJ e Visiting Fellow at desiguAldades.net (Frei Universitat Berlin)
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