Carlos Pinkusfeld Bastos*
Não há consenso de que o mundo viva uma grave crise econômica. Afinal, os EUA crescem moderadamente, e a China, ainda que em ritmo mais lento que em anos anteriores, se desenvolve a passos firmes, exercendo efeito positivo sobre outros países do Sudeste Asiático e África. Por outro lado, Europa e Japão continuam, na melhor das hipóteses, estagnados.
Entretanto, se o quadro econômico é passível de discussão, não paira dúvida quanto à crise de representação política na maioria dos países. Especialmente no caso da Europa, que se debate num mar de desemprego, assombrada pelo fantasma da impotência política. Anos após o início de uma crise autoinfligida, a receita para superá-la, aparentemente, em nada mudou: consolidação fiscal, ou seja, restringir a expansão do gasto público.
Mesmo nos EUA, cuja recuperação só gerou, seis anos depois, uma volta a níveis de desemprego de 2008 (os quais por sua vez estavam muito abaixo dos registrados em 2007), a virtual estagnação de salários é um dos elementos da manutenção da tendência à regressividade na distribuição de renda que já antecedia a 2008.
A intervenção pública maciça pós-crise, dominantemente relacionada à sustentação de crédito, fez com que alguns mais açodados entendessem esse fenômeno como a volta do “keynesianismo”. Não só não o era em termos “técnicos”, afinal envolveu mais sustentação do preço de ativos que gasto fiscal, como, em pouco tempo, já se iniciava um processo de consolidação fiscal que persiste até hoje.
A era neoliberal está marcada por redução sensível da taxa de crescimento econômico e elevação da taxa de desemprego que são acompanhadas por redução de proporção igual ou até maior da capacidade política de se criarem consensos que se anteponham às políticas fiscais, monetárias e de regulação da ordem do capitalismo que geram tal resultado. Afinal, os gestores, e no caso Europeu, os criadores da institucionalidade econômica que tornou realidade as medidas regressivas pós-2008, foram os próprios partidos social-democratas. Nos EUA, a pífia recuperação pós-crise dá-se sob a égide do partido Democrata, que por sua vez empreendeu a maioria das reformas liberalizantes do sistema financeiro durante os governos Carter e Clinton.
É certo que a conjuntura política pós-Guerra Fria tem papel crucial para explicar essa virada dos partidos progressistas e o enfraquecimento dos movimentos operários, mas a derrota no campo das ideias não deve ser menosprezada. Também é verdade que a vitória política conservadora reforçou o espaço acadêmico e social das leituras ortodoxas e conservadoras, mas os erros da própria abordagem crítica e progressista colaboraram para tal dominação.
A origem da retomada conservadora nos países centrais pode ser identificada com a exasperação da contestação à ordem capitalista no final dos anos 1960, cuja exteriorização macroeconômica foi a aceleração inflacionária; e que, num quadro mais amplo, acarretou também uma forte turbulência sociopolítica.
A aceleração inflacionária nestes países decorreu inicialmente da pressão salarial que em boa medida refletia o próprio sucesso da Golden Age. Nesse período, podem-se conciliar alto crescimento, baixo desemprego, elevação do salário real, em linha com os ganhos (expressivos) de produtividade, e criação de um estado do bem-estar. Parecia que o capitalismo tinha superado seu caráter intrinsecamente conflitivo.
Entretanto, como lembra o texto clássico de Kalecki, Aspectos Políticos do Pleno Emprego, escrito na década de 1940, tal situação terminou por estimular o acirramento das demandas laborais e a pressão por elevação dos salários nominais. A uma trajetória de inflação ascendente soma-se uma pressão de custos de commodities, e, em pouco tempo, de câmbio, com a suspensão da conversibilidade do dólar e posterior flutuação das moedas. Finalmente, o golpe de misericórdia: o primeiro choque do petróleo.
A persistência da inflação acabou transformando-se em elemento central para enfraquecimento do movimento social progressista na década de 1970. Esta década foi, assim, um momento crucial de transição entre os anos progressistas da Golden Age e a reação neoliberal. Especificamente no campo da disputa das ideias, a narrativa conservadora mostrou-se bem mais convincente que as respostas progressistas de então.
A ideia chave da ortodoxia foi reforçar a existência de um equilíbrio natural de pleno emprego da economia, ou alguma taxa de desemprego abaixo da qual as intenções de aquecer a economia só causariam inflação maior. Ao fim e ao cabo, taxas de desemprego mais baixas, distintas da trajetória natural da economia, expressa em taxas naturais de juros e de desemprego, estas últimas dada por fricções no mercado de trabalho (valores de equilíbrio entre oferta e demanda de “pleno emprego”), só seriam alcançadas pela insistência equivocada da política do governo, sejam monetárias ou fiscais, em levar a economia para fora de tal equilíbrio. Daí decorreria a inflação com suas consequências daninhas ao bem-estar e mesmo ao crescimento de longo prazo, através da distorção dos sinais dos mercados.
A leitura progressista alternativa a este ataque interpretativo conservador pode ser dividida em duas, ambas débeis.
Pelo lado da escola keynesiana tradicional, que deu sustentação teórica ao pacto da Golden Age, a adoção de um marco teórico imperfeccionista, ou seja, a não ruptura radical com os fundamentos marginalistas da teoria econômica, praticamente forçou a aceitação do retorno de uma teoria que utilizava tais princípios para explicar logicamente a crise do período. Em termos do combate à inflação, a versão aceleracionista da Curva de Phillips de Friedman passou a ser adotada no modelo canônico keynesiano. A nova ordem seria o governo evitar gastos em excesso do produto de pleno emprego ou políticas monetárias incompatíveis com os juros de equilíbrio, ambos motivados por razões políticas inconfessáveis ou “populistas”.
Quanto à explicação do desemprego, o foco passou para as rigidezes, nominal e real, existentes na economia, impostas pelo capitalismo regulado da Golden Age, e não à falta de demanda efetiva. Agora, os novos keynesianos, seguindo logicamente um programa de pesquisa mais de entendimento e explicitação de tais rigidezes, concluíam que o papel do governo deveria ser o de desregular a estrutura de organização do trabalho e da produção, para se alcançar o equilíbrio de pleno emprego e não “gastar mais”.
Por outro lado, a reação teórica, ou de interpretação dos fatos econômicos, de correntes mais radicais, também não foram bem-sucedidas, em grande parte devido a suas limitações intrínsecas. Apontava-se para um suposto esgotamento da organização “fordista” da produção com reflexos macroeconômicos na produtividade agregada. Associado a este esgotamento, argumentava-se que o avanço do Estado na economia, que permitiu a gestação do Welfare State, estaria condenado por contradições decorrentes da sua incapacidade de financiamento sustentável. Ambas as explicações apontam para uma visão de crise do sistema capitalista e não de crise dentro do sistema capitalista.
Em outras palavras, percebia-se uma crise na capacidade de reprodução do sistema, e não uma crise transitória que resultava de suas contradições distributivas, ou da luta de classes pelas parcelas do excedente social.
Este embate nos países centrais que marcou a transição da hegemonia do keynesianismo/Welfare State para o neoliberalismo, tem sua contrapartida abaixo do Equador com a crítica ao desenvolvimentismo. A rigor, a crítica convencional/ortodoxa desde sempre se centrou nas distorções causadas pela intervenção que o desenvolvimentismo trazia ao sistema de preços. Este, em razão de tais distorções causadas pela ação estatal, não mais refletiria a escassez relativa dos fatores de produção.
Mas mesmo no campo progressista, a revisão crítica do desenvolvimentismo já havia começado desde o início da década de 1960, tanto pela excessiva fé no trickle down, ou seja, a capacidade de o desenvolvimento das forças produtivas trazerem efetivos ganhos às populações de forma geral, como na própria capacidade de a industrialização sustentar-se dentro dos parâmetros usuais de emulação de tal processo nos países centrais.
Assim como no centro, a crítica a uma inviabilidade do prosseguimento do processo de acumulação capitalista, agora em sua versão periférica, se radicaliza no final dos anos 1960. Este vaticínio pessimista não se confirmou, ao menos no Brasil. Porém, assim como nos países desenvolvidos, abate-se sobre as economias periféricas a mesma crise inflacionária que atingiu os países centrais nos anos 1970, e posteriormente, em alguns países, e especificamente no Brasil, a crise hiperinflacionária, agora acompanhada de estagnação, nos anos 1980. Também aqui na periferia, será sobre o desgaste causado pela crise inflacionária que se erigirá o consenso neoliberal.
Nem Brasil, nem América do Sul estavam sozinhos na crise da dívida que atingiu toda a periferia. Ela resultou de uma inédita elevação dos juros internacionais, cujas consequências foram drásticas: deterioração dos termos de troca, recessão mundial e estrangulamento financeiro. A quebra do México em 1982 fechou, de vez, o mercado financeiro internacional, jogando a América do Sul, e o Brasil em particular, em uma crise que, pelo menos no aspecto financeiro, foi pior que a dos anos 1930.
Entretanto, uma gravíssima crise de balanço de pagamentos, que marca, como afirma o texto clássico de Conceição Tavares, “a retomada da hegemonia americana”, passa a ter, especificamente no caso brasileiro, “novas” interpretações.
Inicialmente, nossas dificuldades em termos de crescimentos não seriam resultado desta crise e sim de um suposto “esgotamento do modelo de industrialização”. De alguma forma, como previram os neoclássicos desde o início dos anos 1960, finalmente as distorções no sistema de preços, fruto do intervencionismo estatal, cobravam seu preço em termos de baixo crescimento como resultado da alocação ineficiente dos fatores de produção.
Também, a alta/hiperinflação não estaria ligada a esta crise externa, como, aliás, todos os episódios de hiperinflação estiveram ligados, mas, sim, a um problema de excesso de demanda e/ou financiamento do setor público. É interessante notar que no início dos anos 1980 a leitura menos ortodoxa fornecida por autores brasileiros keynesianos “tradicionais” centrava-se no caráter inercial da alta inflação. Sem descontar a forte indexação existente então na economia brasileira, o fracasso de programas de desindexação neutra em vez de revelar o óbvio, ou seja, que a alta inflação tinha como fonte central a crise de financiamento externo e não simplesmente a indexação, começou a ser lido como uma questão de excesso de demanda.
Este diagnóstico que era descartado até mesmo a partir da estimação econométrica de Curvas de Phillips para o Brasil pelos próprios autores brasileiros keynesianos mais convencionais, com a virada pós-fracasso dos planos de estabilização, passa a ser o mais importante para explicar a inflação no período. O gasto, e especialmente o déficit público, passaram a ser os “suspeitos de sempre”, na verdade, os condenados de sempre, da crise inflacionária.
Para piorar, a essa virada da interpretação da inflação somou-se um argumento que propunha a existência de uma suposta “crise fiscal”. É verdade que parte da dívida externa sendo pública, haveria uma carga de juros a ser paga em dólar, mas a dificuldade de pagamentos em dólares decorreria da própria crise do financiamento externo. Entretanto, em moeda doméstica, quando se busca um indicador objetivo de dificuldades de financiamento doméstico, como, por exemplo, uma pressão sobre os juros domésticos da dívida pública, não se encontra episódio relevante para dar suporte à tese da “crise fiscal”. Estranhamente – apesar da falta de provas empíricas –, a “crise fiscal” ganhou status de verdade estabelecida dentro de um espectro muito amplo de interpretações para o mau desempenho da economia brasileira no período.
Assim, a construção da hegemonia neoliberal no Brasil seguiu a linha geral do desgaste inflacionário como nos países desenvolvidos, mas com peculiaridades. A alta inflação daqui foi decorrência direta, na década de 1980 da crise externa, não de pressões salariais e do primeiro choque do petróleo. O suposto papel do setor público, ou mais precisamente, do déficit público, estabelece-se tardiamente e associa-se a uma crise fiscal sem comprovação empírica. Também, enquanto nos países desenvolvidos o Welfare State seria o principal culpado por excessos de gasto e engessamento no mercado de trabalho, aqui o intervencionismo desenvolvimentista é que distorceria a alocação ótima do mercado.
Até aqui, mostramos, mesmo com distinções, uma convergência da interação entre fenômenos econômicos e formação de um consenso conservador neoliberal em países desenvolvidos e em países em desenvolvimento nos anos 1980. Há, todavia, no século XXI uma bifurcação política importante.
Nos países em desenvolvimento, a incapacidade para gerar maior crescimento, e o aguçamento das disparidades naturais no capitalismo menos regulado, resultaram numa reação que, em conjunto com mudanças favoráveis nas condições externas, iniciaram um novo ciclo de governos marcados por políticas públicas com caráter redistributivista.
Entretanto, se é verdade que essa novidade sul-americana contrapôs-se na prática ao discurso então hegemônico, por outro não foi capaz de criar novos consensos tanto para políticas macroeconômicas como para estratégias de desenvolvimento que dessem sustentação a opções políticas redistributivistas e inclusivas.
Logo, esta “bifurcação” do século XXI é até certo ponto parcial. A dinâmica política permitiu que partidos progressistas, no vácuo da insatisfação social com o neoliberalismo, conseguissem impor uma agenda social e redistributivista. Mas isto ocorre sem que se tivesse erigido um arcabouço teórico e programático de sustentação para tal movida. Historicamente, nem seria grande novidade: o fim da era liberal nos anos 1930 também gerou experimentações sociais e de política econômica que precederam uma formulação teórica consistente.
Entretanto, aos poucos foram-se formando os consensos teóricos e de gestão econômica que viriam a ser dominantes no mundo desenvolvido, keynesianismo/Welfare State; e subdesenvolvido, desenvolvimentismo. A dúvida é: estaria ocorrendo o mesmo processo agora, ao menos em certos países da periferia?
No presente momento histórico, a dupla tarefa de releitura teórica consistente dos fatos passados, bem como da formulação de propostas claras, sofre, além das dificuldades teóricas inerentes a tal tarefa, a desvantagem da própria “bifurcação” entre norte e sul, a não permitir que ocorra a sinergia intelectual e política que decorreria de um movimento conjunto do mundo desenvolvido e subdesenvolvido.
Mesmo na América Latina, a velocidade das experimentações menos ortodoxas de política econômica variaram de país para país, sendo o Brasil, entre os que tentaram tais experimentações, aquele onde, a despeito da existência de um pensamento acadêmico heterodoxo mais sistemático e representativo, menos se avançou.
Entretanto, quaisquer que tenham sido os graus de maior ou menor radicalidade destas mudanças, a dura realidade é que os anos mais favoráveis da primeira década do século já são passado. O ciclo de elevação dos preços e de forte demanda de commodities, característico da primeira década do século XXI, já se reverteu, reduzindo, em diferentes graus dependendo do país, a janela de oportunidade de expansão doméstica sem encontrar grandes problemas pelo lado da restrição externa. Agora o relógio corre veloz, e a reflexão progressista vê-se forçada, premida pela dinâmica política, a pensar alternativas que permitam, num quadro menos favorável, a continuação das experiências progressistas, tão raras num continente historicamente conservador e com elites extremamente ciosas de seus privilégios.
Quem sabe o relógio quebrado Europeu não seja forçado a voltar a andar, empurrado pelos resultados sociais desastrosos que decorrem de sua prolongada depressão, e, assim, como na primeira metade do século passado, nos auxiliem a encontrar os consensos de reflexão que deem sustentação a uma ação política progressista? Seria uma lástima deixar fechar-se a importante janela de oportunidade que a história nos deu no início deste século.
* – Carlos Pinkusfeld Bastos é economista, professor e pesquisador do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ)