Silvio Caccia Bava | Le Monde Diplomatique
Quando a presidente Dilma, diante das manifestações de junho de 2013, propôs um plebiscito a favor de uma Constituinte independente para a promoção da reforma política, ela captou a enorme insatisfação da sociedade com a política e suas instituições, reconhecendo a força dessas manifestações e seu impulso transformador. O Congresso, a Justiça, a mídia e as forças políticas conservadoras, no entanto, bloquearam essa possibilidade. Perante as demandas por mudanças profundas na política, nos partidos, nos governos, nada foi feito. Tudo está como antes. A rejeição à política e aos políticos, portanto, continua. E desde então se intensificam a repressão e a criminalização dos movimentos sociais como única resposta a essa insatisfação social crescente.
A primeira questão a tratar é essa rejeição à política e aos políticos. Ela impacta fortemente estas eleições. Os votos que Marina acumulou no primeiro momento de sua candidatura presidencial foram os nulos e brancos, na esteira das manifestações de junho de 2013. Na esperança de que estejam investindo em algo novo, que pode mudar as coisas, esses críticos da política reveem sua posição e aderem a essa terceira via. Isso demonstra que, mesmo entre estes, não se trata de ir contra a democracia, muito pelo contrário, mas de ir contra essa democracia capturada pelo poder econômico.
No segundo mandato de FHC, novas leis permitiram o financiamento de campanhas eleitorais por empresas; desde então, o peso da influência do poder econômico vem crescendo. Nas últimas eleições, 230 deputados eleitos, de um total de 513, foram financiados por apenas 5% das empresas que custearam alguma campanha. Isso configura uma bancada em defesa do interesse das grandes empresas.
Na realidade, explicita-se com mais clareza um conflito entre o interesse público e o interesse das grandes empresas, que estão sempre em busca do maior lucro possível. A disputa refere-se ao controle e ao papel do Estado, ao uso dos recursos e das políticas públicas em favor de um ou de outro desses projetos. E as eleições estão no centro dessa disputa.
A segunda questão que merece destaque é o discurso do desastre. Não vale a pena repetir toda a ladainha da inflação, do desastre na balança de pagamentos, da necessidade de elevar os juros etc. O que chama a atenção é a contradição entre esse discurso fatalista e os resultados das maiores empresas que operam no Brasil. O lucro líquido das 362 empresas com ações negociadas nas bolsas de valores cresceu 47,58% no segundo trimestre de 2014 se comparado com o mesmo período do ano anterior. O Banco Itaú fica pouco atrás, com um lucro líquido do último trimestre 36% maior que o do ano anterior.1
A combinação no imaginário das pessoas do desgaste da política com um cenário de ameaças de crise econômica atemoriza e desencanta muita gente. E leva também a um alto índice de rejeição da candidata presidente, ainda que a avaliação de seu governo esteja em alta.
Nesse cenário de “não queremos mais do mesmo” é que as coisas se confundem. Para os que criticam a política e os políticos e não querem mais PT ou PSDB, Marina aparece como alternativa. Sua extraordinária biografia a coloca como algo novo na política. É popular. É negra. Seu estilo difere do dos demais políticos. É uma opção sedutora. Marina teve 20 milhões de votos na última eleição e está com grandes chances agora de ir para o segundo turno, no qual as atuais pesquisas lhe dão a vitória. Ainda que tudo possa mudar, é um belo cacife.
A figura do candidato ou candidata a presidente é emblemática de um projeto político que quer ser governo. O encanto de Marina não oculta sua fragilidade política. Que forças políticas a sustentam ? Se ela vencer, esse condomínio conflituoso entre Rede e PSB será governo? Que base parlamentar vai apoiá-la? Por que Marina passa a defender um dos maiores axiomas da doutrina neoliberal, que é a autonomia do Banco Central? Por que declara agora que não é contra os transgênicos? As indicações de sua equipe e alguns pronunciamentos pessoais desenham um governo igual ao proposto pelo PSDB no que é essencial. E é possivelmente desse partido que ela buscará quadros para governar.
Assim, voltamos à estaca zero: “não queremos mais do mesmo” mantém-se como expressão da insatisfação com o sistema político como um todo, envolvendo partidos, parlamentos e governos.
Diante da pressão social, por vezes surda, por vezes tomando as ruas, mas sempre crescente, o sistema político precisa mudar. Ele precisa acolher os demandantes, reconhecer-lhes ser um direito sua reivindicação, democratizar e descentralizar a gestão, criar novas institucionalidades para a participação cidadã na governança local, mas não o faz. Mesmo na questão do pacto federativo, de como redistribuir de forma mais descentralizada as competências e os recursos públicos, não se mexe substancialmente. Esses impasses, além da falta de perspectivas, vão fazendo crescer o número de pessoas que desacreditam nas instituições democráticas tais como elas são, e ressaltam a falta de uma bandeira política para canalizar essa energia. É o avanço da democratização da democracia que pode oferecer novas vias para o desenvolvimento.
A expressão política atual dessa demanda pela democratização da sociedade, dos governos e do sistema político é a reforma política, a mãe de todas as reformas. Feita por uma Constituinte específica, com autonomia, eleita unicamente para isso. O candidato ou candidata que abraçar essa causa terá meu voto.
Silvio Caccia Bava é Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil