Nem sempre foi assim!

Frederico Mazzucchelli

O tema que irei abordar emerge de uma observação de Tony Judt, um grande historiador inglês recentemente falecido. Em um de seus últimos livros (“Ill Fares the Land”, “O Mal Ronda a Terra”, na tradução em língua portuguesa) – escrito em condições extremamente difíceis, em face da precariedade de seu estado de saúde – Judt revela seu desalento em relação ao mundo em que vivemos. Ao externar sua decepção quanto à busca obsessiva pela riqueza material, que mobiliza as novas gerações, Judt se pergunta: “Por onde devemos começar? Talvez seja preciso começar lembrando a nós mesmos e aos nossos filhos de que nem sempre foi assim”.
O esforço que hoje farei será o de tentar esclarecer que, de fato, nem sempre foi tudo assim…
Em minha juventude, por exemplo, as coisas se colocavam de outra forma. Além da preocupação em relação a uma boa formação intelectual, havia uma atenção permanente quanto às condições gerais da sociedade. O sucesso profissional de cada um de nós não era entendido com indiferença em relação à situação dos outros. O que nos foi transmitido supunha que o aprimoramento de nossas habilidades particulares deveria se traduzir não apenas em conquistas individuais, mas, também, em benefícios sociais. Foi essa educação que foi transmitida a mim, ao professor Claudio Salm, aqui presente, e a todos nós da nossa geração. Havia, nos jovens de meu tempo, a consciência de que não éramos seres isolados e em competição frenética no mundo, mas sim elos de uma cadeia social. Já hoje, o que se percebe, é uma exacerbação do individualismo: via de regra, as pessoas pensam apenas em seu próprio êxito, cultivam hedonisticamente o corpo, almejam o status de celebridade e se comprazem com uma visão acrítica do mundo. Bombardeadas e entorpecidas pelas mesmices e vulgaridades dos meios de comunicação, submetidas aos percalços do mercado de trabalho, e angustiadas pelas dificuldades de acesso a uma condição digna de vida, as pessoas são arrastadas pela correnteza da concorrência. O sucesso material – sem dúvida, uma conquista – passa a ser a medida de todas as coisas. Isto exprime a mesquinhez dos tempos atuais. O espírito público se esvaiu, e foi essa triste constatação que absorveu as reflexões de Judt, já no ocaso de sua vida.
Nem sempre foi assim! Uma boa forma de se entender a marcha dos acontecimentos é através dos romances. Um bom romance é aquele que te ilumina em relação aos distintos momentos da humanidade. Recentemente li um livro de Ken Follett, chamado “Fall of Giants” (“Queda de Gigantes”, na tradução em língua portuguesa). Trata-se do primeiro volume de uma trilogia sobre o século XX. E esse primeiro volume abrange o período que se estende do final do século XIX até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. É o momento em que se assiste ao ocaso da ordem liberal burguesa.
Outro grande livro é o de Scott Fitzgerald, intitulado “The Great Gatsby” (“O Grande Gatsby”, na tradução em língua portuguesa). Existe, inclusive, uma versão para o cinema deste livro, em um filme estrelado por Mia Farrow e Robert Redford. Aí são descritas, de modo exemplar, as condições de vida nos EUA nos anos 1920, em particular as aspirações e valores dos grupos situados no topo da pirâmide social. Existe, ademais, um romance interessante – também sobre os EUA – de Philip Roth, um autor que escreve muito sobre os EUA, chamado “Complô contra a América”, onde é retratada a perspectiva isolacionista de segmentos importantes da sociedade norte-americana, em face da escalada da guerra na Europa, em 1940. Procurarei fazer a exposição mais ou menos inspirado nos temas que estão por trás desses romances.
A ordem liberal burguesa
Existe uma platitude, uma obviedade, que merece sempre ser relembrada: sempre somos herdeiros de algo. O desafio que se impõe é descobrir e entender nossas heranças. Pois bem, se voltarmos um pouco no tempo, veremos que a primeira grande estruturação que houve na vida moderna deu-se no século XIX, com a afirmação e a consolidação do capitalismo. Foi o período da chamada ordem liberal burguesa, comandada de maneira inquestionável pela Inglaterra, e que tinha no padrão-ouro e no livre-câmbio suas âncoras principais. Esse foi o período em que o Marx escreveu “O Capital”. “O Capital” (na verdade, seu primeiro volume) foi publicado em 1867, no auge da era vitoriana (1837-1901). A Inglaterra era então considerada “the workshop of the world”, a oficina do mundo. A partir da Revolução Industrial, a Inglaterra montou seu império, desenvolveu a sua marinha, e converteu a City no coração das finanças internacionais. Essa ordem liberal, comandada pela Inglaterra, é descrita de modo primoroso no livro “Processo de Industrialização – Do Capitalismo Originário ao Atrasado”, de autoria do meu fraternal amigo Carlos Alonso Barbosa de Oliveira.
Essa ordem comandada pela Inglaterra sacudiu o mundo. Marx, ao observar as façanhas materiais do capitalismo, não hesitou em apontar seu caráter revolucionário, em contraposição à mediocridade dos regimes anteriores de produção. Do ponto de vista social, o que se assistiu foi a crescente incorporação das massas ao processo produtivo, a ruptura das estruturas arcaicas e autárquicas de produção e de vida, e a formação de um mercado mundial. Isso, ao mesmo tempo, permitiu que, paralelamente à Inglaterra, outros países avançassem rumo à industrialização.
Os casos mais notórios – passada à Guerra de Secessão (1861-1865) e promovida a unificação dos Estados germânicos com Bismarck (1871) – foram os dos EUA e da Alemanha. A diferença é que estes países se industrializaram colhendo os frutos da Segunda Revolução Industrial – do aço, da química, da eletricidade, do motor a combustão. A partir de então, montaram complexos empresariais mais avançados, quer no âmbito tecnológico, financeiro, de escalas ou organização produtiva. A Inglaterra, gradativamente, foi perdendo espaço na arena da concorrência manufatureira internacional. Não que a Inglaterra fosse fraca; ao contrário, ela era forte, pela força da sua Marinha, pela excelência de sua moeda (que era a moeda internacional) e pela extensão de seu Império.
É neste ambiente que se situa o livro de Ken Follett. Ele aponta claramente para a pujança dos EUA e para as pretensões dos alemães (sobretudo da elite militar de extração prussiana), que reivindicavam o seu “justo espaço” no tabuleiro político europeu. É curioso que um dos grandes problemas do mundo no século XX foi, sempre, o do destino que deveria caber à Alemanha. Foi assim na Primeira Guerra Mundial, na Segunda Guerra Mundial e na própria Guerra Fria. Não há como negar: a Alemanha esteve, invariavelmente, no centro das grandes convulsões políticas do século XX. Ao mesmo tempo, tem-se a massacrante superioridade econômica dos EUA.
Os EUA, entre a Guerra de Secessão e o início do século XX, promoveram – do ponto de vista material – o maior salto que a humanidade já conheceu. Foi o período da extraordinária expansão das ferrovias e do crescimento vigoroso das indústrias associadas à nova revolução industrial (siderurgia e petróleo, em particular) e, também, das grandes bandalheiras (os famosos robber barons foram protagonistas cruciais desta época). Mais ainda, no início do século XX, começaram a se montar – com o apoio do crédito – as bases do consumismo norte-americano.
Este é um período, portanto, de grandes transformações nos EUA e na Alemanha. Ao mesmo tempo, havia um equilíbrio aparente na ordem internacional. Equilíbrio que se manifestava na crença que a velha diplomacia europeia seria capaz de resolver os potenciais conflitos, e na convicção de que a Belle Époque do início do século XX estaria inaugurando uma era de progresso ininterrupto no mundo ocidental. Para muitos, que acreditavam na estabilidade da ordem internacional, a eclosão da Primeira Guerra foi um raio em céu azul …
Nuvens negras I (Primeira Guerra Mundial)
O equilíbrio, contudo, era apenas aparente. As transformações – sobretudo na Alemanha – haviam desencadeado ambições políticas de difícil manejo. O sistema de alianças montado (com a Inglaterra, a França e o Império Russo, de um lado, e o Império Germânico, o Império Austro-Húngaro, o decadente Império Otomano e a Itália, de outro) terminou engessando as opções políticas. Os raios de manobra da diplomacia foram se tornando cada vez mais estreitos. Em decorrência, os riscos de “contaminação”, decorrentes de conflitos secundários, se ampliaram consideravelmente (basta lembrar que a eclosão da Primeira Guerra decorreu de um ultimato do Império Austro Húngaro à Sérvia). A Primeira Guerra foi, rigorosamente falando, um conflito entre impérios (imperialista, se preferirem). As velhas potências imperiais da Inglaterra, França e Rússia foram incapazes de absorver, pacificamente, as pretensões – também imperiais – da Alemanha. Esta já era uma nação economicamente mais forte que a Inglaterra, a França ou a Rússia, e que almejava uma posição política no cenário europeu, compatível com sua grandeza material.
A Primeira Guerra Mundial foi uma experiência absolutamente trágica. Meu pai lutou a Primeira Guerra, e dele ouvi algumas coisas horríveis (os homens nas trincheiras, por exemplo, em busca de ratos para aplacar a fome…). Foi uma experiência dramática, que envolveu o conjunto da sociedade. Este foi um fato novo. A experiência mais recente havia sido a da Guerra Franco-Prussiana de 1871, quando a Alemanha derrotou a França. Esta última, contudo, foi uma guerra que não mobilizou toda a sociedade, e que teve um desfecho rápido. O mesmo se esperava quando eclodiu a Primeira Guerra: todos foram orgulhosos para os campos de batalha, com suas bandeiras, entoando cânticos (“It’s a long way to Tipperary / It’s a long way to go …”), na expectativa de que a guerra, que se iniciou em agosto de 1914, terminasse antes do Natal.
Sucede que a Primeira Guerra incorporou os avanços da tecnologia da Segunda Revolução Industrial, com todo seu potencial destrutivo. O conflito se arrastou de uma maneira dramática, matando e mutilando milhões de pessoas. Os combatentes permaneciam meses a fio nas trincheiras, e quando procuravam avançar eram massacrados por rajadas de metralhadoras, bombardeios ferozes e ataques de gás mostarda, que os obrigavam a recuar, deixando milhares de mortos nos campos inóspitos da “terra de ninguém”. Um romance que descreve esses horrores é “Nada de Novo no Front”, do escritor alemão Erich Maria Remarque. As marcas da guerra se projetaram nos sobreviventes: os gueules cassées (rostos partidos), na França, tornaram-se a imagem viva da tragédia da guerra moderna. Com suas faces desfiguradas, em decorrência dos ferimentos recebidos, os mutilados muitas vezes tinham que recorrer ao uso de máscaras e próteses para ocultar a extensão dos danos sofridos (as cirurgias plásticas de reconstituição facial eram, então, precárias). Hobsbawm menciona, na “Era dos Extremos”, que um quarto dos alunos de Oxford e Cambridge com menos de 25 anos, que foi para a guerra, terminou morrendo. No cômputo geral, a Primeira Guerra deixou mais de nove milhões de mortos. A humanidade jamais tinha assistido a tamanha devastação.
A revanche de Versailles
Pois bem! Finda a guerra, realizou-se, em Paris, a conferência que resultou no Tratado de Versailles (Keynes era, então, o representante do Tesouro britânico na conferência). Foi então que ocorreu um dos maiores disparates da história moderna: a tentativa de tutelar e subjugar a Alemanha. Os franceses, diga-se, foram os maiores responsáveis por tamanha asneira. Keynes, ao perceber o rumo dos acontecimentos, retirou-se indignado da conferência e escreveu um livro profético intitulado ‘As Consequências Econômicas da Paz’, denunciando os termos insensatos de Versailles. A Alemanha foi severamente punida. Mais que isto, ela foi humilhada: além das perdas territoriais e materiais, impôs-se ao país uma carga absurda de reparações, que deveriam ser pagas ao longo do tempo. Não bastando, os alemães foram coagidos e constrangidos a reconhecer sua culpa pela precipitação da guerra.
Quando os norte-americanos ingressaram no conflito (em abril de 1917), o pêndulo da guerra definitivamente se alterou contra os alemães. Em virtude do bloqueio naval, o país já vinha sendo progressivamente asfixiado, o que resultou em uma sucessão de greves e levantes contra as severas medidas de racionamento (sobretudo de alimentos) adotadas pela administração do Kaiser. O ambiente social tornou-se explosivo, o que precipitou a radicalização das forças políticas, tanto à esquerda quanto à direita. A exaustão e, na sequência, a derrota e a humilhação, foram o fermento das agitações que marcaram a vida da Alemanha entre 1917-1919.
De sua parte, a situação do Império Russo tornara-se crítica durante a guerra. A Alemanha impôs sérias perdas aos russos e forneceu apoio àqueles que se opunham à ordem czarista. Não é nenhum exagero dizer que a Revolução Russa é filha da Primeira Guerra. Na ausência da Primeira Guerra, dificilmente os nomes de Lênin ou Trotsky tornar-se-iam conhecidos do grande público. Stálin, simplesmente, não teria existido! A Primeira Guerra, ao impor uma carga enorme de sacrifícios aos russos – em meio ao despotismo e aos privilégios do regime imperial – precipitou a queda do czarismo em fevereiro de 1917, e a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro do mesmo ano. Os dois eventos contaram com o beneplácito dos alemães. Um dos pontos centrais da proposta bolchevique era o de por um fim à guerra. De fato, já no início de 1918, foi firmado o Tratado de Brest-Litovsk, por meio do qual o antigo Império Russo (já em mãos bolcheviques) estabelecia a paz com a Alemanha, em troca de inúmeras concessões territoriais (Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Ucrânia, Polônia, Bielorússia etc).
Os EUA, de início, não se envolveram com o conflito europeu. A força dos acontecimentos, contudo, terminou conduzindo-os à guerra. O sucessivo ataque dos submarinos alemães, entre 1915 e 1917, vitimou cidadãos norte-americanos e embarcações envolvidas no transporte de alimentos, matérias primas e munições para a Inglaterra, o que terminou forçando o Presidente Woodrow Wilson a declarar guerra à Alemanha, no início de 1917. O peso da participação norte-americana, como falei, foi decisivo para definir o curso das hostilidades. Destaque-se que o propósito de Wilson nunca foi o de estabelecer um rosário de punições às potências centrais. Em seu entendimento, o conflito mundial deveria ser entendido como a última guerra entre os homens (the war to end all wars), e seu maior empenho nas negociações de Versailles foi o de assegurar a criação da Liga das Nações, uma instância supranacional que deveria buscar a solução pacífica para os problemas entre os países. Suas propostas para a paz foram consubstanciadas nos famosos 14 Pontos, que evocavam o direito à autodeterminação dos povos, a liberdade de navegação nos mares, a redução dos armamentos e, inclusive, o fim das hostilidades à Rússia bolchevique. Wilson, na verdade, foi devorado pela sede de vingança dos franceses (que insistiram nas cláusulas punitivas de Versailles), e pelo isolacionismo tosco dos republicanos, que retomaram o controle do Congresso nas eleições parlamentares de 1918. O resultado é que os EUA não ratificaram o Tratado de Versailles e, para o desencanto de Wilson, não tomaram assento na Liga das Nações.
A era da incerteza
O fato é que, a saída da Primeira Guerra, inaugurou um período de incertezas e instabilidade. Esta foi uma trágica ironia: nove milhões de pessoas morreram em um conflito sangrento, que se arrastou por cinco anos intermináveis, para que se inaugurasse uma era de desencontros, suspeitas, desconfianças, retaliações e medo. Na Alemanha, já em janeiro de 1919, eclodiu o levante da Liga Spartacus, esmagado com a morte de Karl Liebknecht e de Rosa Luxemburgo. Outras rebeliões ocorreram, como o Putsch de Munique, em 1923, liderado por Hitler e Ludendorff. A violência pontilhou os anos iniciais da República de Weimar (1919-1933), com inúmeros assassinatos patrocinados pelos grupos de extrema direita . O pano de fundo das agitações políticas foi o inconformismo em relação aos termos do Tratado de Versailles, associado às terríveis dificuldades econômicas que assolaram o país até 1923 (com destaque para a hiperinflação, associada à queda da produção industrial e à ampliação do desemprego). Na Rússia, a tentativa de derrubar Lenin e o regime recém-instaurado resultou em uma cruenta guerra civil até 1921, com as forças do Exército Branco (em oposição ao Exército Vermelho dos bolcheviques, liderado por Trotsky) sendo apoiadas por tropas enviadas pela Inglaterra, França, Estados Unidos e mais uma série de países. O objetivo (frustrado) era o de esmagar o comunismo em seu berço… A saída da guerra assistiu, assim, à continuação da violência na Alemanha e na Rússia. Um péssimo começo!
Quando se constata que nem os EUA, nem a Alemanha, e nem a Rússia (URSS, ao final da guerra civil), participavam da recém-criada Liga das Nações, é possível perceber que os canais diplomáticos construídos na saída da guerra já nasceram obstruídos. Somente com uma boa dose de sorte, desprendimento e clarividência eles seriam desobstruídos. O quadro, contudo, era complexo. Os EUA – a maior economia do mundo – não pretendiam mais se imiscuir nos assuntos políticos europeus, e fecharam-se em si mesmos. Deram as costas para o Atlântico, e passaram a viver o transe comemorativo dos roaring twenties: o extraordinário crescimento da indústria automobilística, a expansão dos subúrbios, o aumento excepcional na produção do petróleo, do aço e da energia elétrica, o erguimento de arranha-céus, a difusão dos bens de consumo durável entre as famílias (facilitada pela ampliação do crédito e estimulada pelo avanço da propaganda), o uso generalizado do rádio, o frenesi do cinema falado, a revolução musical do jazz e a graça picante das flappers (com seus vestidos sensuais e suas longas piteiras) – faziam crer que o país se achava no limiar de uma prosperidade que se imaginava duradoura. É exatamente este ambiente que é retratado no romance de Scott Fitzgerald, a que antes fiz referência. Os EUA queriam apenas saborear o seu progresso e se abraçaram a uma perspectiva isolacionista e protecionista.
Do ponto de vista das relações financeiras internacionais, não é exagerado afirmar que as iniciativas de seus bancos de investimento – em particular, do J.P.Morgan – foram muito mais marcantes do que quaisquer ações porventura empreendidas pelo governo norte-americano. Ao longo da guerra, a Inglaterra e França tornaram-se devedoras dos EUA. As duas nações desejavam que as reparações que esperavam receber da Alemanha fossem descontadas de seus débitos com os EUA. O governo dos EUA – em sua perspectiva míope – sempre se recusou a discutir esta proposta. Na visão (tipicamente empresarial) dos governos republicanos dos anos 1920, as dívidas de guerra deveriam ser pagas, e não, compensadas ou anuladas. Coube ao sistema financeiro privado tomar a dianteira: a partir de 1924, a Europa (Alemanha, em particular) e o mundo foram inundados por uma avalanche de empréstimos. Tangidos pelo otimismo incontido, característico dos ciclos de crédito, os bancos norte-americanos – já envolvidos nas operações domésticas de financiamento ao consumo, aos projetos imobiliários e ao mercado de valores – se direcionaram ao exterior. Por um breve tempo, tudo parecia correr bem: os bancos emprestavam à Alemanha, que pagava as reparações à França e à Inglaterra, que pagavam suas dívidas de guerra aos EUA, que supunha que as coisas caminhavam normalmente. Quando a fonte secou (contração dos empréstimos norte-americanos em meados de 1928), o frágil equilíbrio se rompeu como um castelo de cartas ao vento. A verdade é que os EUA, ao longo dos anos 1920, ao consagrarem a euforia irrefletida da age of business, afastaram-se por completo das obrigações políticas mundiais que lhe cabiam, por força de sua massacrante supremacia econômica.
Se os EUA foram incapazes de exercer a liderança nas relações internacionais, a Inglaterra e a França, de sua parte, tutelaram a Liga das Nações. E o fizeram em consonância a seus objetivos imperiais. Mas, como viveram os homens ao largo deste período? Quais eram seus propósitos, suas ambições e suas expectativas?
Na Belle Époque viveram fascinados pelo progresso, na esperança que uma nova era de conquistas materiais havia sido inaugurada. O entusiasmo com a exposição de Paris, em 1900, quando foram apresentadas ao mundo importantes inovações (como a luz elétrica, por exemplo), suscitou em muitos a expectativa de que as transformações vigentes conduziriam a humanidade a um novo patamar de realizações. O advento da sociedade de massas não podia ocultar, entretanto, a dura realidade das desigualdades sociais. O desemprego e a exploração ainda não eram entendidos – a não ser na análise pioneira e contundente de Marx – como uma patologia social, como uma consequência funesta do funcionamento do capitalismo. Eram percebidos como uma decorrência do destino ou da falta de aptidão individual das pessoas para uma vida mais digna. Nem era possível ocultar a opressão sobre as mulheres e, menos ainda, sobre os homossexuais (lembrem-se que Oscar Wilde, por expressar suas preferências sexuais, foi condenado, em 1902, a dois anos de trabalhos forçados). Tão pouco era possível ocultar a realidade da dominação colonial, com povos inteiros submetidos aos desígnios “civilizatórios” das nações imperiais. Nem era possível ocultar a discriminação sobre os negros, mestiços e asiáticos. Datam desta época os estudos sobre a eugenia, com vistas à seleção e depuração racial. É certo que muitos se levantaram contra a rigidez e o cinismo da moral vitoriana. Muitos se organizaram contra as formas descaradas de exploração econômica. Muitas mulheres passaram a desafiar os cânones estabelecidos e passaram a reivindicar o direito ao voto (as cenas da sufragista Emily Davison lançando-se à morte sob as patas de um cavalo do rei George V, em 1913, são impactantes). Muitos povos passaram a sonhar com a emancipação. Ainda havia, contudo, um longo caminho a percorrer antes que as conquistas por uma sociedade mais justa e aberta se materializassem.
O choque entre os impérios, como já observei, levou à guerra. A humanidade passou a viver, então, sob o horror e o medo. Após a violência e a insensatez do conflito mundial, forjou-se a expectativa de que os homens e as nações, finalmente, reencontrariam o caminho da compreensão e da solidariedade. Falei anteriormente que era este o desejo de Woodrow Wilson e de Keynes. Desgraçadamente, não foi este o caminho escolhido. Os EUA entronizaram o love of money como o altar dos homens. Ao mesmo tempo em que se lançaram à busca frenética dos lucros, da especulação e do consumo, os norte-americanos assistiram, nos anos 1920, às ações truculentas da Ku Klux Klan, às perseguições contra os imigrantes (lembrem-se do famoso episódio Sacco & Vanzetti), à criminalização do álcool (Lei Seca) e às investidas arbitrárias contra todos que não se ajustassem ao figurino estúpido do american way of life. A Inglaterra pretendeu reinstaurar o status quo anterior à guerra, na presunção de que suas tradições, sua moeda e a grandeza de seu império (que alcançou sua extensão máxima após o conflito) seriam suficientes para trazer de volta seu passado glorioso. A França, prisioneira do ódio, imaginava que sua recuperação econômica pudesse se dar mediante o pagamento regular das reparações de guerra por parte da Alemanha. Em 1923, inclusive, os franceses invadiram a região do Ruhr, em retaliação ao não cumprimento das obrigações acordadas pelos alemães, nas discussões que se seguiram a Versailles. Na URSS, a morte de Lenin, no início de 1924, abriu espaço para a ascensão de Stalin. Em pouco tempo as lideranças de 1917 foram vitimadas, e o dirigente soviético – isolado da comunidade internacional – passou a administrar com mão de ferro a implantação do “socialismo em um só país”. Na Alemanha, no Japão e na Itália, ao mesmo tempo, cresciam os ressentimentos em relação à ordem mundial comandada pela Inglaterra e pela França.
O que se percebe, assim, é que a saída da Primeira Guerra inaugurou uma era de incertezas (a expressão é historiador inglês Richard Overy). Do medo e do horror da guerra, passou-se à prepotência dos vencedores e à indignação dos derrotados. A soberba dos fortes se contrapôs à frustração dos marginalizados. É certo que algumas conquistas tópicas foram alcançadas nos anos 1920: com os tratados de Locarno, que definiram as fronteiras ocidentais da Alemanha, criaram-se as condições para o ingresso do país na Liga das Nações em 1926. Os alemães, inclusive, graças ao afluxo dos capitais privados norte-americanos, viveram um breve período de estabilidade e crescimento entre 1924 e 1928. O envolvimento das mulheres no esforço de guerra, de sua parte, contribuiu para que se alterassem os termos de sua participação na sociedade. Nos EUA e na Inglaterra, o voto feminino foi definitivamente consagrado nos anos 1920 (em compensação, o direito de voto aos negros nos EUA somente seria assegurado em 1965). Pode-se até afirmar que houve um sopro de otimismo nos anos 1920, mas não há dúvida que as relações humanas e internacionais ainda se assentavam em terreno frágil. Afinal, o love of money, a pretensão imperial, o rancor e o isolamento não poderiam ser guias seguros para a condução dos homens.
Nuvens negras II (Grande Depressão e Segunda Guerra Mundial)
A Grande Depressão (1929-1933) se incumbiu de sepultar quaisquer esperanças. Pouco mais de dez anos após o final da Grande Guerra, milhões de trabalhadores nos EUA e na Europa foram lançados ao desemprego, em uma crise econômica nunca antes presenciada. Se a crise permitiu a eleição de Roosevelt nos EUA ela permitiu, também, a ascensão de Hitler ao poder. Hitler era um político desprezível de extrema-direita, que somente ascendeu ao poder graças aos efeitos devastadores da depressão sobre a Alemanha. Se a revolução russa, como falei, foi filha da Primeira Guerra, o nazismo foi o filho maldito da Grande Depressão. Enquanto Roosevelt, em meio ao permanente bombardeio da guerrilha conservadora, introduziu mudanças fundamentais destinadas a disciplinar o funcionamento do capitalismo norte-americano, Hitler submeteu a economia a seu comando direto, ao mesmo tempo em que desferiu golpes mortais aos sindicatos, iniciou a perseguição aos judeus e eliminou as alas do nacional-socialismo que ameaçavam seu comando despótico (Ernst Röhm, líder das temidas SAs, e mais uma centena de simpatizantes foram sumariamente executados no famoso episódio da Noite das Facas Longas, em 1934). Em sua Batalha Pelo Emprego, Hitler expandiu vigorosamente o gasto público, e em menos de três anos reduziu o desemprego a níveis insignificantes. Quando teve início a reconstrução das forças armadas, em 1936, a Alemanha – ao contrário dos EUA – não exibia mais as marcas da depressão.
Mas Hitler pretendia muito mais. Em seu afã de rever os termos vergonhosos de Versailles, Hitler ocupou militarmente a Renânia, promoveu a unificação com a Áustria, incorporou os Sudetos, avançou sobre Praga e, por fim, em aliança com Stálin, invadiu a Polônia. A Itália (comandada pelo patético Mussolini desde 1922) já havia invadido a miserável Etiópia em 1935, e o Japão se lançado sobre a China em 1937. Na URSS, a patologia insana de Stálin promoveu a vergonhosa onda de expurgos de 1937-1938, que resultou na prisão e na morte de milhares e milhares de dirigentes e funcionários soviéticos. É praticamente desnecessário lembrar que o medo novamente se incrustou nas almas. Na sequência da invasão da Polônia, a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha. Em meses o mundo iria se incendiar. Hitler ocupou o sudeste e o norte da Europa, invadiu a França, bombardeou a Inglaterra, e, após a invasão da URSS em junho de 1941, estendeu a mancha da ocupação nazista ao leste até as portas de Moscou. Quando os japoneses atacaram Pearl Harbor, em dezembro de 1941, os EUA declararam guerra ao Japão. Na mesma semana os norte-americanos (para o alívio de Churchill e Stalin) já se encontravam em guerra contra a Alemanha e a Itália. Durante três anos e meio, os Aliados e o Eixo se envolveram em uma sucessão de batalhas fatídicas, em que as mortes se contavam aos milhares, e até centenas de milhares. Apenas a aniquilação total do oponente poderia por um fim às hostilidades. Assim como ocorreu na Primeira Guerra, a entrada dos EUA no conflito foi decisiva para definir o rumo dos acontecimentos. Não é uma simplificação descabida afirmar que foram a tenaz resistência soviética (com mais de vinte milhões de mortos!) e o imenso poderio da fábrica de produção norte-americana os fatores cruciais para a derrota do nazismo. Após a dificílima vitória em Stalingrado (fevereiro de 1943), a URSS começou sua marcha implacável rumo a Berlim. Com o desembarque aliado na Normandia, em junho de 1944, a sorte da Alemanha foi selada. Sitiados ao leste e a oeste, e bombardeados impiedosamente pelos ares, os alemães foram sendo progressivamente asfixiados e destroçados. Em maio de 1945 se renderam. Em agosto do mesmo ano, o Japão capitulou.
Faço aqui um breve parêntese, para retornar à observação inicial de Judt de que “nem sempre foi assim”. É verdade! Como podem perceber, houve momentos, ao longo da trajetória do século XX, em que as coisas foram muito piores! Na verdade, momentos em que a humanidade viveu dramas muito mais penosos do que a atual busca obsessiva e irrefletida pela riqueza material. A Segunda Guerra Mundial foi um conflito ainda mais sangrento que a Grande Guerra de 1914-18. Basta recordar que ela deixou mais de 50 milhões de mortos! Não é necessário entrar em detalhes sobre os horrores dos bombardeios às cidades vitimando crianças e idosos, da matança organizada dos judeus, das sangrentas batalhas de Leningrado e Stalingrado, dos enforcamentos, execuções sumárias, perseguições, torturas, estupros e traições, das mortes nas ilhas do Pacífico ou das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. A Segunda Guerra foi, talvez, a experiência mais vergonhosa que a humanidade já conheceu. Suas marcas e feridas se projetaram no tempo e, ainda hoje, permanecem cravadas nos corações daqueles que viveram um pesadelo tão dramático e terrível.
A Guerra Fria e a Golden Age
A Grande Depressão e a Segunda Guerra, pela profundidade e extensão de sua violência, lançaram, contudo, um alerta aos homens. Não era mais possível repetir tamanho desatino. Não era mais concebível que homens e mulheres permanecessem indefesos frente aos ventos do mercado. Tão pouco era admissível que as relações internacionais se resolvessem pela força bruta das armas, sobretudo em face da existência dos artefatos nucleares (também em poder da URSS a partir de 1949). Com a derrota do nazismo e do militarismo japonês, o mundo foi dividido em duas grandes zonas de influência comandadas pelos EUA e pela URSS. A Guerra Fria, que daí resultou, foi antes um fator de estabilidade do que de instabilidade nas relações políticas mundiais. Havia o acordo tácito entre as duas grandes superpotências de que a violência seria exercida apenas no âmbito das respectivas zonas de influência. Foi a política dos “pastos demarcados”, para usar uma expressão de Guimarães Rosa. Os EUA patrocinaram intervenções e golpes militares em seus “domínios” (no Brasil, por exemplo), e a URSS promoveu invasões na Europa do Leste (Hungria e Tchecoslováquia). As tensões maiores ocorreram na Guerra da Coreia (1950-1953), quando soldados norte-americanos e chineses se enfrentaram nos campos de batalha, e, sobretudo, na crise dos mísseis de Cuba. Neste último caso, a possibilidade de a URSS instalar bases de lançamento de mísseis ao lado da costa norte-americana representava uma ameaça que comprometia o pacto tácito de não agressão entre as duas superpotências. Os EUA e a URSS, se quiserem, agiram como dois grandes coronéis do sertão: cada qual comandava suas terras a seu modo, e ambos evitavam o conflito entre suas tropas (o que, certamente, seria fatal para ambos).
O fato é que a Europa e o Japão passaram a gozar de uma estabilidade que há muito não conheciam. Resguardados sob o manto protetor dos EUA, lançaram-se às tarefas de reconstrução no pós-guerra e em pouco tempo – com o apoio explícito do Estado – modernizaram as respectivas estruturas industriais. Já na década de 1960 os oligopólios japoneses e europeus passaram a concorrer em pé de igualdade com as grandes corporações norte-americanas nos mercados mundiais.
O ponto a ser destacado para o propósito de nossa discussão é que se criaram as condições políticas e econômicas para o funcionamento ordenado e disciplinado do capitalismo. Havia controle sobre os fluxos internacionais de capital; havia o direcionamento do sistema de crédito para a acumulação produtiva; havia a participação efetiva do Estado na regulação das relações econômicas; havia um clima de colaboração entre empresários e sindicatos; havia compromissos inarredáveis com a ampliação e a consolidação do Welfare State e havia uma defesa comum – quer dos partidos mais à esquerda ou à direita – com a busca de níveis máximos de ocupação. Se quiserem um exemplo, na década de 1960 a taxa de desemprego na Alemanha e no Japão foi sempre inferior a 2%. Mas o mesmo ocorreu nos demais países. Cresceu a produtividade, cresceram os salários reais, cresceram os lucros, aumentou a oferta de empregos, melhoraram as condições de saúde, educação e trabalho, ampliaram-se os direitos dos cidadãos, a inflação permaneceu baixíssima e não houve qualquer desequilíbrio estrutural nas contas públicas (os gastos públicos cresciam, mas as receitas públicas também, por conta do crescimento econômico e do aumento da base de tributação). A Golden Age se estendeu, grosso modo, de 1947 a 1973.
Voltemos, então, a Tony Judt: nem sempre foi assim! Os jovens do pós-guerra foram educados e criados em um ambiente em que os nexos de solidariedade social eram muito mais sólidos. É claro que todos se preocupavam com suas vidas, mas não havia um mercado voraz a espreitá-los na saída dos cursos secundários ou universitários. O moinho satânico da concorrência (para usar a expressão de Polanyi) não os aguardava para mutilar seus sonhos e devorar seus espíritos. Todos sabiam que o talento e o esforço pessoal, de alguma forma, seriam recompensados. Não havia o desespero pela busca do emprego; eles existiam. Não havia angústia em relação ao futuro; as perspectivas eram promissoras. Não havia a insegurança quanto à saúde ou planos milimétricos para a velhice; havia a proteção do Welfare State. A geração do pós-guerra foi educada, assim, em um contexto de maior segurança. Isto permitiu que forjassem uma visão mais abrangente e crítica do mundo. Os jovens não eram meros átomos isolados expostos aos ventos da concorrência, mas sim seres dotados de vitalidade, com esperança em um futuro que imaginavam cada vez mais justo e livre. Eram seres essencialmente sociais e transformadores! Não poderia haver contraste maior com o desalento da Grande Depressão, com o horror da guerra ou com a mesquinhez alienante dos tempos atuais. Na letra de Anos Dourados (composta em parceria com Tom Jobim), Chico Buarque escreve que “na fotografia estamos felizes (…) mas quando me lembro são anos dourados”. Esta frase tem duplo sentido: desde uma perspectiva estritamente individual ela representa a singela lembrança nostálgica de um tempo encantador que se foi, e que não volta mais. Em uma perspectiva mais ampla, contudo, ela indica uma mudança radical nas condições de vida da própria sociedade. É esta mudança que quero assinalar, em consonância com as observações de Judt: as condições de vida pioraram nos últimos trinta ou quarenta anos, o que se refletiu no comportamento dos jovens.
O fim dos Anos Dourados
 
O fim dos Anos Dourados – ou a ruptura do chamado consenso keynesiano, se assim preferirem – decorreu de uma série de circunstâncias. Em primeiro lugar, é claro que, após duas décadas de crescimento e investimento contínuo, era previsível que houvesse uma redução da taxa de acumulação nos países capitalistas centrais. Os referidos países – com destaque para o Japão e a Alemanha, os pop stars da expansão da expansão capitalista do pós-guerra – haviam modernizado as respectivas matrizes industriais e expandido seus mercados internos, passando a competir com os EUA nos mercados mundiais. Após a vigorosa expansão – os batizados “milagres econômicos” da Alemanha, Japão, França, Itália etc. – deu-se lenta reversão do ritmo de investimento. Isto redundou no declínio do crescimento da produtividade. A possibilidade de proporcionar ganhos continuados para os salários reais viu-se, portanto, mais limitada. Não foi esta, contudo, a razão para o fim do ciclo virtuoso do pós-guerra. Inflexões no ritmo de crescimento dos ganhos – lucros ou salários – são fenômenos até certo ponto normais (porém nem sempre facilmente absorvíveis!), incapazes de produzir – por si sós – a radical mudança das condições econômicas. Entretanto, o esgotamento da onda de inovações e o estreitamento das oportunidades de investimento no pós-guerra formaram, ao se abrirem os anos 1970, o pano de fundo a partir do qual se processaram outras importantes transformações.
Especial destaque coube à erosão da confiança no dólar, a moeda internacional. A conversibilidade do dólar no ouro havia sido consagrada nos Acordos de Bretton Woods. De início, a Europa e o Japão sofreram as agruras da escassez de dólares (dollar shortage). A partir de meados dos anos 1950, o déficit do balanço de pagamentos dos EUA (decorrente da progressiva anemia de seu saldo comercial, dos gastos militares e do investimento direto no exterior) terminou produzindo a abundância de dólares por todo o mundo (dollar glut). A conversibilidade do dólar no ouro ficou sob suspeita: havia muitos dólares espalhados nos países e pouco ouro em Fort Knox. Os países da aliança ocidental passaram a se ressentir das facilidades com que os EUA financiavam o seu déficit do balanço de pagamentos (bastava que emitissem mais dólares!). Por disporem da moeda internacional, os EUA incorreram em sucessivos déficits que terminaram ameaçando a estabilidade monetária dos demais países. Isto, além do mais, assegurou às multinacionais norte-americanas um enorme raio de manobra na condução de suas operações no exterior: as empresas americanas aportavam à Europa carregadas de dólares e – como as taxas de câmbio eram fixas – lançavam-se à soberba aquisição dos ativos locais. O General De Gaulle denunciou o “privilégio exorbitante” dos EUA, e muitos passaram a alertar sobre os riscos do “desafio americano”. A França passou a converter seus saldos de dólares em ouro e a conversibilidade foi sendo progressivamente questionada. Ao mesmo tempo, eram cada vez maiores nos EUA as queixas em relação ao protecionismo dos europeus e, particularmente, dos japoneses. Os EUA haviam ajudado a recuperação da Europa e do Japão, aberto seu enorme mercado aos produtos estrangeiros e viam as portas fechadas para seus produtos e seus negócios no exterior. O que quero chamar a atenção é que começaram a se processar fraturas no interior da aliança ocidental. Nem os países estavam satisfeitos com a conduta “imperial” dos EUA, e nem este aprovava as práticas restritivas dos países ou os questionamentos “injustos e ingratos” à hegemonia norte-americana.
Em agosto de 1971 Nixon deu um tiro de grosso calibre nas convenções de Bretton Woods. Foi anunciado ao mundo o fim da conversibilidade da moeda norte-americana e imposta uma sobretaxa de 10% às importações norte-americanas. O objetivo foi se desvencilhar das pressões sobre o dólar e forçar os demais países a aceitar a desvalorização da moeda americana. Na estratégia de Nixon (e Connally, o inspirador das medidas), a depreciação do dólar resultaria no crescimento das exportações e, portanto, na expansão do emprego nos EUA. A desvalorização foi consagrada e os demais países perceberam que as relações com os EUA haviam se tornado mais complexas. Em março de 1973 foi definitivamente implantado o regime de taxas flutuantes de câmbio, e o dólar foi mais uma vez desvalorizado. A desvalorização do dólar teve uma consequência importante: a reação dos países produtores de petróleo. Com suas receitas denominadas na moeda americana, a receita dos referidos países sofreu uma redução real. Motivados pelo apoio explícito dos EUA a Israel na Guerra do Yon Kippur (outubro de 1973), os países árabes reagiram, o que resultou na quadruplicação dos preços do petróleo. A “era do petróleo barato” havia terminado. O “choque do petróleo” atingiu em cheio os EUA, a Europa e o Japão: a inflação disparou e no biênio 1974-1975 as economias entraram em forte recessão.
Duas questões centrais devem ser adicionadas: a Guerra do Vietnã (que custou a Johnson a possibilidade da reeleição e se prolongou na administração Nixon) foi um elemento catalisador que deu vazão a inúmeras insatisfações. Enlaçados com as reivindicações dos negros e das mulheres nos EUA, ou combinados com a mobilização dos jovens europeus na busca de condições mais democráticas e livres de ensino – e mesmo de vida! – os protestos contra a Guerra do Vietnã representaram um polo de aglutinação que serviu para evidenciar fissuras não desprezíveis no interior das sociedades ocidentais. Sobretudo no que se refere aos jovens, os protestos revelavam o inconformismo em relação aos padrões políticos, morais, familiares e sexuais então vigentes. O acordo de paz com o Vietnã foi firmado em janeiro de 1973, mas nem por isso a insatisfação em relação aos rumos da expansão capitalista foi revertida. Recordem que Nixon, entre tantas façanhas, se incumbiu de arquivar a agenda reformista inaugurada por Roosevelt, e seguida por Truman, Eisenhower, Kennedy e Johnson. Os pobres, os negros, as mulheres “libertárias”, os jovens “drogados” e a elite intelectual do Leste deveriam ceder espaço à Nova Maioria (conservadora) idealizada por Nixon. Isto ocorreu nos EUA, mas também, à sua maneira, ocorreu na Europa.
As turbulências econômicas dos anos 1970 – que não fizeram senão aumentar o contingente dos marginalizados e vitimados pela ordem econômica existente (com o desemprego e a inflação em alta) – explicitaram definitivamente o esgarçamento das normas de coesão social. Os sindicatos pretendiam evitar a erosão real dos salários, os empresários buscavam recompor as margens de lucro, os desempregados cresciam em proporção alarmante, a rede de proteção social se encontrava ameaçada e os jovens cada vez mais desconfiavam das promessas do capitalismo (lembrem que na Itália e na Alemanha eles enveredaram pelo desatino da luta armada!). Assim, às fraturas no interior da aliança ocidental, a que antes fiz referência, acrescentaram-se as fraturas no âmbito das próprias sociedades. Nem os países capitalistas estavam coesos – como na saída da guerra, na década de 1950 ou mesmo na primeira metade da década de 1960 – e nem o quadro social exibia a estabilidade outrora observada.
O outro ponto que desejo sublinhar é o arrefecimento da Guerra Fria. Esta havia sido um elemento unificador dos países capitalistas. Desde 1947 os EUA e a URSS haviam dividido o mundo em duas grandes áreas de influência. O bloqueio de Berlim por Stalin (1948-1949), a conquista do poder por Mao Tsé Tung (1949), a invasão da Hungria (1954), o lançamento do Sputnik (1957), a Revolução Cubana (1959), o voo pioneiro de Yuri Gagarin (1961), a construção do Muro de Berlim (1961) e a crise dos mísseis de Cuba (1962) foram eventos que assustaram o Ocidente. Por mais de duas décadas o espectro da “ameaça comunista” pairou sobre os países capitalistas, e induziu os EUA a patrocinarem uma sucessão de intervenções e golpes militares pelo mundo afora. Na perspectiva norte-americana, era fundamental que a Europa e o Japão exibissem capitalismos triunfantes de modo a neutralizar o “vírus” comunista. Foi por isso que reviram o projeto punitivo para a Alemanha e para o Japão, lançaram o Plano Marshall, apoiaram a integração europeia, abriram seus mercados, toleraram o protecionismo de seus parceiros, arcaram com os custos da defesa ocidental e estabeleceram alianças estratégicas nos organismos internacionais. Sob o manto protetor dos EUA, a Europa e o Japão alcançaram um desempenho extraordinário nas duas décadas que se seguiram à guerra.
Em fins dos anos 1960, contudo, as relações entre os EUA e a URSS entraram em fase de distensão. O acirramento dos ânimos tornara-se – politica e financeiramente – penoso para ambos os lados. Os coronéis do sertão, a que antes me referi, baixaram, então, o tom de suas ameaças. Os pastos já estavam demarcados e não havia razão para o estranhamento hostil. Afinal, eram os dois muito parecidos: a URSS assistiu impávida à escalada da Guerra do Vietnã (como assistiria, mais tarde, ao sangrento golpe militar no Chile, em 1973), assim como os EUA observaram apenas à distância a invasão da Tchecoslováquia (1968). Quando Nixon, em 1971, anunciou ao mundo as visitas à China e à URSS – dando início à détente – tornou-se claro que as relações internacionais haviam ingressado em uma nova fase. O que importa desacatar, para os fins de nosso argumento, é que a Guerra Fria deixou de ser um elemento unificador no âmbito dos países capitalistas. Se estes – como antes observei – já se encontravam divididos nas questões econômicas (moeda internacional, taxas de câmbio, protecionismo), a política mundial não representava mais o seu elo de união. Não havia mais o “inimigo comum” a ser combatido. Cada país deveria formular sua linha específica de atuação nas questões internacionais, a partir do pressuposto que o alinhamento automático aos EUA (e, portanto, a contraposição à URSS) deixara de ser o ponto de partida comum na definição das opções estratégicas.
O declínio endógeno da taxa de acumulação, o questionamento à centralidade do dólar, a insatisfação norte-americana em relação ao protecionismo de seus pares, os protestos quanto às normas de sociabilidade vigentes nos países capitalistas (família, hierarquias institucionais, vida sexual, canais de participação política, valores morais), a revolta dos negros nos EUA, as manifestações contra a Guerra do Vietnã, as desvalorizações do dólar, a restauração conservadora de Nixon, a quadruplicação dos preços do petróleo, a disparada da inflação, o mergulho na recessão, a escalada do desemprego e a aproximação entre os EUA e a URSS – a combinação desses fatores decretou o fim dos consensos estabelecidos no pós-guerra. Keynes faleceu em 1946, mas seus ideais permaneceram vivos por mais de duas décadas. Eles morreriam, também, nos anos 1970. Somente após a recente tragédia do neoliberalismo é que, com muito custo, ainda tentam renascer.
A vingança da economia (neoliberalismo)
As dificuldades dos anos 1970 determinaram a rearticulação das forças conservadoras. No pós-guerra – como lembram os professores João Manuel e Belluzzo – a economia permaneceu tutelada pela política. Quer pela defesa do pleno emprego, pela ampliação da proteção social (condições de trabalho, seguro-desemprego, sistema de aposentadorias, extensão das redes públicas de saúde e educação), pela disciplina do sistema de crédito, pela limitação aos fluxos internacionais de capital, pela ação anticíclica da política fiscal ou pela atuação vigilante do Estado, as sociedades procuraram (e, em grande medida, conseguiram!) conter o ímpeto desagregador das forças de mercado. A experiência traumática da Grande Depressão ainda não havia sido esquecida.
Com a estagflação dos anos 1970, as normas e consensos dos Anos Dourados se viram questionados: a economia passou a se vingar da política. Na percepção dos críticos, havia Estado demais, regulamentação demais, controles demais, sindicatos demais, proteção social demais, intervenção demais. Enfim, política demais! O diagnóstico liberal – de início, com Friedman à frente – ganhou terreno, ajustando-se perfeitamente ao interesse dos grandes negócios. Para as corporações era conveniente “flexibilizar” o mercado de trabalho; para os bancos era importante fugir às restrições que inibiam suas operações; para os ricos era ótimo reduzir a carga tributária. O suposto (sempre o mesmo!) era que se, ao se dar liberdade aos “de cima”, os “de baixo” sempre seriam beneficiados.
A desorganização econômica dos anos 1970 facilitou o triunfo da “ode aos mercados”. Os mercados seriam o locus insubstituível de harmonização dos interesses, o mecanismo mais eficiente de alocação dos recursos. O credo liberal é conhecido: se o Estado não se intrometer, a concorrência e o sistema de preços se incumbirão de produzir resultados “ótimos”. Limite-se, portanto, o poder dos sindicatos, de modo a restaurar a “liberdade” do mercado de trabalho; reduzam-se os gastos públicos (sobretudo nos “onerosos” sistemas de saúde, previdência e educação), para que, paralelamente, possam ser reduzidos os impostos; privatizem-se as empresas públicas, de modo a ampliar a oferta e a acessibilidade aos bens e serviços essenciais; desregulamente-se o sistema financeiro, de modo a melhorar a distribuição das “poupanças”; eliminem-se as restrições ao fluxo internacional de capitais, de modo a assegurar a todos o acesso facilitado à “poupança externa”.
Não pretendo me estender sobre os resultados do neoliberalismo, até porque eles são bastante conhecidos. Sua ascensão política deu-se com as eleições de Thatcher e Reagan. Seus resultados práticos foram medíocres. Em trinta anos (grosso modo, entre 1980 e 2010), o capitalismo se viu pontilhado por uma sucessão de crises e episódios de aguda instabilidade; as taxas de crescimento do produto foram sensivelmente mais reduzidas em comparação à Golden Age; a taxa de desemprego em muitos casos ultrapassou a casa dos dois dígitos (como na atual conjuntura); a insegurança passou a afetar a vida de milhões de pessoas por todo o mundo, em nítida contraposição à estabilidade social dos Anos Dourados; a distribuição da renda sofreu uma piora assustadora; a incerteza converteu-se em uma norma universal recorrente que afeta de modo negativo as decisões de investimento. A “alta finança”, como é do conhecimento geral, converteu-se na rainha dos novos tempos. Em nome da desregulamentação, o sistema financeiro internacional transformou o mundo em uma gigantesca Las Vegas. Quem assistiu ao documentário de Charles Ferguson, Inside Job, sabe bem a que estou me referindo. É claro que sempre, após o estouro das sucessivas “bolhas”, todos correm para o Estado. Mas, não havia “Estado demais”? Bem, havia “Estado demais” para os outros, e não para a oligarquia financeira. O triste é que, na ausência da intervenção estatal, as consequências seriam muito mais dramáticas para todos. Os desempregados seriam contados às centenas e centenas de milhões. E assim vamos!
O ponto que pretendo sublinhar, para uma última vez voltar a Judt, é que a restauração neoliberal dos anos 1980 trouxe consigo o corolário inevitável de que nada deve se opor ou se sobrepor à liberdade dos homens. É claro que não se trata dos “homens” em abstrato, mas sim das grandes corporações e dos grandes bancos. Mas os homens e as mulheres existem, e o preceito que lhes foi recomendado é que apenas a vitória na arena da concorrência permite a seleção dos “fortes”. Reinstaurou-se uma visão darwinista da sociedade. Todos regressaram à América dos anos 1920! Reviveu-se a dicotomia estúpida winners vs. losers e proclamou-se a rematada imbecilidade de que the winner takes it all. A exacerbação do individualismo e a mercantilização de todas as relações produziu os neo-idiotas contemporâneos. Aí reside a decepção de Judt!
Não é possível desconsiderar o papel da mídia na fabricação dos ogros modernos. A vulgarização do conteúdo divulgado – reality shows, programas de auditório, MMA etc. – contribui de maneira óbvia para o entorpecimento dos espíritos. Mas não se trata apenas da brutalização do “baixo clero”, potencializado pela retroalimentação permanente das redes sociais na internet. O “alto clero” também é submetido a um permanente bombardeio. Um bombardeio mais sutil e insinuoso. É o bombardeio supostamente sofisticado e bem comportado das generalidades vazias, dos preconceitos dissimulados, das mentiras mal forjadas, dos argumentos mancos e da ideologia disfarçada (igualmente cacarejados nas redes sociais). Quem assiste aos noticiários das grandes emissoras de televisão ou lê as revistas de maior circulação semanal sabe bem a que estou me referindo! O alto clero não percebe (ou, talvez, não queira perceber!) que ele também, assim como o baixo clero, é submetido a um permanente processo de cooptação. Uma cooptação “ilustrada”, por parte daqueles que comandam as decisões cruciais no que se refere à criação e à reprodução da riqueza.
Tão pouco as Universidades estão imunes a este processo. Em um livro recente – The Return of the Master (O Regresso do Mestre na edição em língua portuguesa) – Robert Skidelsy, o grande biógrafo de Keynes, chama a atenção para o virtual monopólio exercido pelas universidades de Chicago, Harvard e MIT no domínio das disciplinas econômicas . Monopólio direcionado para divulgação de modelos que proporcionaram a base “científica” de sustentação da excelência dos princípios liberais. Fecha-se assim o cerco: os detentores da riqueza, em contubérnio com a mídia e as grandes universidades, formulam as estratégias de defesa de seus interesses particulares, apresentando seus argumentos como verdades universais para o aturdido público espectador. Se quiserem um exemplo simples, imaginem uma entrevista de um professor de Chicago, na Fox News, discorrendo de modo elegante sobre a excelência dos “mercados eficientes”, antes – é claro – da hecatombe financeira de 2008. O professor insistirá – com a anuência perplexa do entrevistador – na empolada tese de que “o preço dos ativos não está correlacionado”, e que, portanto, os episódios de especulação financeira nunca podem levar à crise. Sendo consultor de um importante banco de investimentos, nosso professor se retirará da entrevista apressado e satisfeito.
Vista desde uma perspectiva mais ampla, a era do neoliberalismo representou um inegável retrocesso histórico. Ao relançar os homens às engrenagens impiedosas da concorrência, a onda neoliberal reinstaurou a guerra de todos contra todos. Todos se lançaram à busca frenética do sucesso, o que produziu uma legião de “perdedores”. Os “fracassos” passaram a ser individualizados, levando à decepção e à desilusão. Espremidos pela voragem da competição, os que não tiveram acesso a condições dignas de educação e saúde na infância e na adolescência, ou aqueles mais tímidos, mais recatados, mais sonhadores, mais dispersivos, e até mesmo mais íntegros, foram deslocados para as franjas do sistema de êxitos.
Assim as coisas ainda hoje permanecem. Mas não existe nenhuma razão inevitável para que as coisas sejam assim. Os Anos Dourados mostraram ao mundo que a disciplina do capitalismo é essencial para a difusão do bem estar social. Por mais que Keynes desprezasse Marx (na verdade, como observou Joan Robinson, Keynes nunca entendeu Marx!), há uma convergência notória entre suas visões sobre o funcionamento do capitalismo, e até mesmo sobre a sociedade que ambos sonharam. Nela, o grilhão da necessidade não aprisionaria mais aos homens. O imenso potencial produtivo e tecnológico desenvolvido no último século permite que se imagine um futuro em que as carências mais gritantes sejam minoradas, ou até mesmo suprimidas. Um futuro em que o acesso universal à educação e à saúde, a proteção na velhice e a garantia de empregos permita que os homens vivam sem sobressaltos. Para que isto se torne possível, é essencial regulamentar as finanças e orientar os investimentos, o que somente será possível através da ação racional da mão visível do Estado. Os homens não nasceram para se enfrentar como cães no terreno sórdido da concorrência desimpedida. Como lembra Gilles Dostaler em sua magnífica interpretação de Keynes (Keynes et ses Combats; Keynes and his Battles, na versão em língua inglesa), os homens foram enviados à Terra para usufruir a beleza, o conhecimento, a amizade e o amor. É esse o espírito que deveria nortear nossas ações.

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