‘O Brasil, como sociedade e Estado, não tem optado pelo SUS’

Por Viviane Tavares/ Escola Politécnica (EPSJV/Fiocruz)

Em julho de 2013, a presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Ana Maria Costa, em entrevista à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), tentava entender as demandas das ruas e analisar as respostas dadas pela presidente Dilma Roussef naquela ocasião. Passado um ano, Ana Maria analisa o que foi realizado daquele tempo para cá e aponta um novo rumo para a saúde pública: “O Cebes vem discutindo que não podemos mais adiar esse gravíssimo problema que diz respeito à formação e possibilidade de fixação no interior, por meio de carreiras de verdade, de profissionais com vínculo e compromisso permanente com o setor público”.

Nas jornadas de junho uma das principais pautas era a saúde. Como o Cebes enxerga as transformações deste setor de lá para cá? As reivindicações foram atendidas?

Medir um impacto de uma revelação de insatisfação popular ou de demandas populares é muito pouco. As respostas que a população pedia e que traz nas pesquisas de opinião, nas várias formas de aferição, vem desde sempre. Estamos vivendo um momento bastante importante em relação ao projeto de saúde que o país irá adotar. Mas, nesse momento de inflexão em que a população pede por saúde, a resposta do governo ainda não deu conta de convencer sobre uma consolidação do projeto do sistema único universal gratuito, de qualidade, que nós escrevemos na nossa Constituição.

O Brasil, como sociedade e Estado, não tem optado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na verdade, quando criamos o SUS, lá na Constituição, apostávamos que a sociedade adotaria como um direito seu e como dever do Estado. Ocorre que esse não pertencimento que a população foi incorporando em relação ao SUS, essa ideia de que o SUS é um sistema para pobre e ruim, e a busca pelos seguros privados, essa presença forte pelo capital na saúde no país, vem desmontando este projeto. Hoje agravado ainda pelo fenômeno da financeirização, a exploração da saúde como um mercado. Isso vem acontecendo porque há uma fé na sociedade que esse é o melhor caminho. Isso tem uma origem dupla. A população não acredita nisso à toa, mas porque o SUS nunca demonstrou uma qualidade que desse segurança para a população. E essa ausência de garantia faz crescer esse valor da sociedade de que o privado é o bom, é o seguro. Essa inflexão nós não superamos. Ao contrário, isso se mostra claramente no crescimento do setor privado nesses últimos anos, na presença forte do capital da saúde no processo decisório nacional. É por isso que eu chamo atenção que não se trata desse governo, mas de todos que sofrem essa pressão do capital privado na saúde, na indústria, no capital financeiro.

Quando em julho se pediu ao governo brasileiro a saúde, ele esboçou umas respostas que passaram longe de ser uma reestruturação de fato do campo da saúde no Brasil. Ele buscou alternativa para um problema que é, de fato, um problema crônico do SUS e é uma das razões importantes, não a única, da fragilidade do SUS, da dificuldade de acesso ao Sistema Único de Saúde. E que toca num desafio para esse país continental que é a interiorização da saúde por meio do Programa Mais Médicos.

O Programa Mais Médicos avançou, ampliando até o seu projeto inicial. Como o Cebes avalia o que está implantado até agora?

Este programa, com os chamados intercambistas, trouxe mais de 10 mil médicos e permitiu hoje um real acesso das pessoas a profissionais de saúde e, mais particularmente, a médicos, porque os outros profissionais de saúde ficam de fora desse programa. Isso ocasionou uma mudança de cenário que não pode ser avaliada acriticamente, porque essa presença do médico, apesar da importância simbólica do profissional, tem uma grande limitação, porque ele foi sozinho ao interior. Ele não levou equipe, como enfermeira, ou outros profissionais de saúde, que compõe a base de um cuidado de saúde. E isso é uma tendência que os próximos candidatos deverão atentar e não construir alternativas similares, mas resolver de forma definitiva a questão dos recursos humanos na saúde, pensando não só na disponibilidade desses profissionais nos rincões do Brasil, mas também cuidando de uma formação adequada.

O programa foi importante porque toca na questão da formação médica, cria novas diretrizes curriculares que atualiza o modelo de médico que o Brasil precisa, além de criar 10 mil novas vagas de medicina que, sem dúvida, são extremamente importantes e estratégicas para o futuro do Brasil.

Entretanto, nós temos uma grande preocupação. Dessas vagas, mais de 60% estão sendo assumidas pelo setor privado da educação. Isso é grave porque as universidades públicas não assumiram a responsabilidade pública de ampliação de número de vagas, além da mudança do currículo dos profissionais médicos. Isso mostra que não é uma coisa setorial. É uma mudança muito mais complexa. O Mais Médicos assume uma pedra no sapato do SUS e lançou um incômodo que é irreversível a médio e longo prazo no país. O Cebes vem discutindo que não podemos mais adiar esse gravíssimo problema que diz respeito à formação e possibilidade de fixação no interior, por meio de carreiras de verdade, de profissionais com vínculo e compromisso permanente com o setor público.

Em seu discurso naquela ocasião, a Dilma apontava para o perdão da dívida dos hospitais filantrópicos em troca de atendimento dos usuários do SUS. Como você avalia essa e outras propostas de flexibilização para o setor privado? Isso tem avançado?

Exatamente porque eles são vistos como setor produtivo. E também é o setor que mais dividendos oferece para o PIB setorial. Não podemos esquecer que o nosso PIB setorial representa 9% do PIB nacional, e, desses, 60% são de origem privada. Diz respeito ao que as famílias pagam para ter serviços de saúde com planos, remédios, serviços diretos. Só 40% dizem respeito ao gasto público. Temos uma presença do capital muito grande. É uma contradição em um país em que na Constituição a saúde é um direito universal.

Por isso esse setor tem grande importância no apoio às campanhas dos candidatos, no lobby interno dentro do Congresso Nacional e do próprio Executivo. Nós não podemos mais pensar que esse setor não é complementar, como diz a Constituição. Hoje nós podemos até dizer que quem é complementar é o SUS. Porque quem tem a supremacia, que direciona uma regulação frouxa, que contrata e elege elementos do campo desses setores como pessoas do mercado para dirigir ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar], que deveria fazer a regulação, são eles. No lugar de se instituir uma regulação pró-SUS, ou pró-população ou de acordo como prevê a Constituição, nós temos uma primazia dos interesses do mercado.

Nós tivemos inclusive uma luta muito grande dentro do Conselho Nacional de Saúde e do Cebes, para junto com o Idec e a Abrasco colocar demandas ao governo para a saída do Elano Figueiredo, que era um indivíduo claramente ligado a planos de saúde e que tinha sido elevado a condição de diretor da ANS. Agora, de novo, tivemos uma nova interpelação do José Carlos de Souza Abrahão, que tem se manifestado contra a cobrança do ressarcimento que tem sido pífia em relação ao que o SUS tem direito e que se neutraliza no setor privado e reverte em lucro líquido.

Um boletim da ANS recente mostrou que mais de 11 milhões de internações de portadores de planos privados de saúde são realizadas no SUS. Isso daria um grande ressarcimento ao governo. É uma cegueira, uma omissão muito grande da regulação do setor privado. Além disso, têm as isenções fiscais, todos os perdões de dívidas são tramados sorrateiramente no Congresso Nacional com parlamentares que receberam grande volume em suas campanhas pagas por esses planos. Isso mostra nosso sistema político está falido.

Podemos dizer que essa era uma mensagem das ruas também?

Acho que quando nosso povo foi às ruas a grande mensagem foi a falta de fé, a falta de crença. De fato, os espaços da democracia estão corroídos pelos interesses do capital e o que está posto é a necessidade urgente de uma reforma política que tenha como base um financiamento público. Que o povo tenha outra liberdade de escolher seus candidatos pela proposta e projeto e não pela forma que ele é vendido como um produto consumível. Essa mudança é muito importante para a saúde porque ela virá oferecer outra chance até de politização da sociedade, de ter uma revolução política acerca da saúde. E que envolva também um maior controle dos meios de comunicação, que influenciam esse inconsciente pela preferência à saúde privada com as novelas, as notícias. Essa forma de pensar saúde tem ganhado a hegemonia que de alguma forma toca a população, porque ela tem uma fantasia de que é esse o lugar da tecnologia, do alto custo e de que onde rola poder e dinheiro é onde vai resolver o seu problema. E o que vemos são planos de saúde a valores baixos que não oferecem nada.

Além disso, precisamos discutir com a categoria a forma que eles reagiram em relação ao Mais Médicos e o quanto devemos ou não atrelar o empresariado e as corporações ao interesse público.

E como você avalia hoje o plano pautado por este governo de foco na construção e ampliação das UPAs, hospitais e redes segmentadas, redes de atendimento como a Cegonha? Qual seria o modelo ideal?

Essas redes trazem uma contradição no seu próprio conceito, porque uma rede tem que criar mecanismos de interação para que o conjunto dos problemas da população seja resolvido. Agora que o governo escolheu esse caminho das redes temáticas, das redes específicas. Talvez a escolha desse caminho seja muito mais por conta de um aprisionamento de uma cultura no campo da saúde, de fragmentação perversa que acontece desde sempre na saúde pública, por meios dos antigos programas de saúde. E o que ocorre com isso é também na fragmentação dos recursos públicos, das especialidades, do processo de trabalho. A fragmentação é altamente complicada porque ela fortalece uma tendência que sabemos que não dá certo, porque as demandas são inteiras, não são fragmentadas.

Apesar de terem conseguido, neste último governo, avançar no chamado decreto das relações entre estados e municípios, esse processo poderia ter pavimentado uma nova lógica e ótica de reconstruir o modelo de saúde e isso não aconteceu. Seja por falta de força decisória, ou mesmo de ausência de projeto e proposta técnica. Mas isso não aconteceu também porque o SUS não resolveu a questão do subfinanciamento. Dentro desse contexto dá para fazer coisas ousadas e pensar em uma radicalidade de mudança de modelo, dar mais complexidade, mais concretude, mais integralidade, mais resolutividade. Precisamos pensar em instalações, em carreiras, para dar conta ao que a Constituição prometeu ao povo brasileiro. Mas precisamos saber também qual é o nosso projeto, porque não adianta aumentar o investimento para continuar apostando em projetos que já vimos que não dão certo. Precisamos de uma radicalização do SUS, para que o SUS seja o que está na Constituição.

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