Pedro Rossi* | Jornal do Brasil
O livro de Thomas Piketty sobre a concentração de renda e riqueza já dispensa apresentações. As inúmeras resenhas, elogios e críticas que circulam na internet esmiúçam as virtudes e defeitos da obra. Este artigo não pretende se somar a essas, mas, sim, apontar uma lacuna importante na discussão. Trata-se do papel das finanças no capitalismo contemporâneo e das formas de gestão da riqueza social, que podem ser discutidas por meio do conceito, também ausente no livro, de capital fictício.
Capital, em Marx, é um relação social (e não apenas um fator de produção ou uma soma de ativos). Em uma análise lógica, Marx desenvolve categorias e formas sociais que se desdobram em formas mais complexas, como o capital a juros e o capital fictício. Esse desdobramento das formas universaliza o modo de produção capitalista e difunde a sede de acumulação de riqueza abstrata. Nesse contexto, o capitalismo não é um sistema cujo objetivo é satisfazer necessidades de consumo, mas um modo de produção cuja a finalidade é a acumulação da riqueza em dinheiro e outras formas financeiras.
O conceito de capital fictício é pouco e, por vezes, mal tratado na literatura, mas pode ser simplificadamente definido como “direitos contratuais sobre um fluxo de renda futuro”. Para ser mais preciso, pode-se definir o capital fictício com base em três propriedades; (1) é um ativo que está associado a uma renda futura, portanto seu valor depende da capitalização de recebimentos futuros trazidos a valor presente por uma taxa de juros; (2) é um ativo transferível, portanto depende da existência de um mercado secundário onde ele pode expressar o seu valor; (3) ele não existe como capital efetivo, ou é duplicado. Esta última propriedade, um tanto fantasmagórica, destaca a natureza financeira do capital, que não existe como capital real.
Por exemplo, a dívida pública não tem nenhuma relação com o dinheiro inicialmente captado pelo Estado. Ela é uma representação fictícia de um capital que não existe mais, mas que dá direito a uma participação sobre as receitas do Estado. Da mesma forma, a emissão primária de uma ação pode financiar a compra de uma máquina, mas o valor da ação convive com o valor máquina e tende a se diferenciar dele. Emitir ações ou títulos cria valor fictício no sistema econômico e a compra e venda desses títulos é a negociação dos direitos sobre os fluxos de renda que serão produzidos no futuro. É, portanto, um mecanismo de distribuição de renda e riqueza, por excelência.
Para Michael Hudson, os fluxos de renda futuros são como uma presa econômica destinada a ser caçada pelo sistema financeiro. Ou seja, o sistema financeiro vê toda e qualquer fonte de renda como possibilidade de constituir capital fictício, e busca formar mercados para transacionar esses direitos sobre a renda futura. Nos países centrais, em especial nos Estados Unidos, o processo de securitização se difundiu por várias esferas da vida social. As dívidas dos estudantes universitários (student loans), por exemplo, foram securitizadas, assim como as hipotecas e dívidas de cartão de crédito, que são empacotadas e revendidas em mercados secundários. Esse processo, assim como o mercado de crédito, submete parte da renda futura dos estudantes e das famílias às transferências ao mercado financeiro.
Contudo, diferentemente do crédito, cujo valor é pré-fixado por contratos bilaterais, o capital fictício constitui uma massa de riqueza cujo valor está sendo constantemente avaliado e reavaliado pelos mercados financeiros. Sua precificação obedece a critérios financeiros de avaliação e depende do arbítrio, das expectativas, das convenções e das taxas de juros. A forma como essa massa de direitos financeiros é avaliada afeta não apenas a distribuição da renda e da riqueza financeira, mas também a economia real que se submete aos períodos de expansão e de crise impulsionados pelo movimento do capital fictício.
Não se trata de um descolamento entre a riqueza financeira e a riqueza real, mas de mudanças na avaliação da capacidade futura de geração de renda que provocam bruscas ampliações e interrupções da produção de riqueza no presente. Isso é uma parte importante do que alguns chamam de financeirizacão, capitalismo com dominância financeira ou “finance-led capitalism”.
O gráfico abaixo, com dados do Banco Central Americano, contextualiza esta discussão em termos históricos. A riqueza financeira era colada com o movimento do PIB nas décadas seguintes ao pós-guerra, mas passa a crescer em ritmo mais acelerado após 1980. Esse movimento coincide com o argumento central do livro de Piketty, que aponta uma aceleração da concentração de renda e riqueza nos países centrais a partir da década de 1980. Seria apenas uma coincidência?
Pedro Rossi é Professor/pesquisador do Instituto de Economia da Unicamp e membro da Plataforma Política Social