Fabrício Augusto de Oliveira
Um dos maiores problemas existente para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, o Sars-Cov-2, foi o fato de os Estados se encontrarem com seus orçamentos depauperados, corroídos pelos esforços realizados primeiramente para salvar a economia da crise do subprime de 2007-2009 e, posteriormente, da crise da dívida soberana europeia, a partir de 2010, cujos efeitos ainda não foram totalmente vencidos até os dias atuais.
Relativamente sob controle até a emergência dessas crises, os Estados, principalmente nas economias desenvolvidas, tiveram de abrir os cofres para evitar que o mundo caminhasse para uma nova Grande Depressão, como a ocorrida na década de 1930, o que levou à explosão de seus níveis de endividamento, o qual, em não poucos casos, superou, em muito, os limites considerados aceitáveis e administráveis pela teoria econômica ortodoxa.
Mesmo não tendo conseguido retornar à situação fiscal existente antes dessas crises, apesar dos esforços realizados para o ajustamento de suas contas, considerando que o crescimento econômico se tornou, a partir dessa época, tanto errático como anêmico, derrubando a arrecadação, o Estado foi apontado, até mesmo pelos representantes dessa escola de pensamento, que condena suas ações, considerando-o a “encarnação do mal”, como o único agente em condições de adotar medidas para enfrentar a crise do coronavírus, salvando vidas e empresas da catástrofe anunciada com a epidemia.
Para isso, as restrições antes postas para sua atuação desapareceram por parte de seus mais renitentes opositores, passando a ser-lhe concedida licença para gastar mesmo que aumentando consideravelmente seu endividamento, ou, caso necessário, até mesmo emitindo moeda, algo impensável em condições de normalidade de funcionamento da economia.
Não se trata de nenhuma novidade na história do capitalismo. Na Grande Depressão da década de 1930, o sistema econômico só não colapsou devido justamente à intervenção do Estado, cujas ações permitiram retirar a economia do atoleiro em que se encontrava, as quais terminaram sendo organizadas teoricamente por John Maynard Keynes na sua obra prima de 1936, A teoria geral do juro, do emprego e da moeda, com a qual demonstrou a importância de seu papel para corrigir os defeitos congênitos do capitalismo.
A partir da década de 1970, quando os efeitos dessa crise haviam sido praticamente esquecidos e o capitalismo começava a ingressar numa nova etapa de desenvolvimento que exigia maior liberdade para o capital, o pensamento econômico neoliberal tratou de sepultar as ideias de Keynes e de fazer o Estado retornar à condição de um agente, cujas ações são prejudiciais para o funcionamento do sistema econômico, reduzindo sua eficiência, devendo, por essa razão, ter-se um rígido controle sobre o mesmo. Ao mesmo tempo, passou também a considerar os desequilíbrios de suas contas como nefastas para as expectativas dos agentes econômicos e para a estabilidade macroeconômica, à medida que poderiam despertar desconfiança nos mesmos sobre sua capacidade de solvência, levando-os a atuar para neutralizar seus efeitos e desencadeando, como consequência, quadros de instabilidade.
Apesar disso, as terapias recomendadas por Keynes sempre retornam, inclusive pelas mãos de seus adversários teóricos, sempre e quando o sistema se defronta com crises econômicas e com dificuldades para as quais os remédios ortodoxos não funcionam por que despidos de realismo sobre o seu funcionamento, que idealizam como perfeito, mas que se rege, na verdade, com muitos problemas e irracionalidade.
É o que novamente está se observando na crise atual do coronavírus, com a diferença, agora, de que o estopim da mesma não é o de uma crise econômica, mas de uma crise da saúde que pode provocar uma devastação econômica, reconhecendo-se que o único agente capaz de enfrentá-la é justamente o Estado, por meio do aumento de seus gastos, mesmo que, para isso, tenha de ampliar consideravelmente seus níveis de endividamento. E este aumento, pelo que tudo indica, não será pequeno.
As projeções feitas pelo FMI, baseadas nas medidas iniciais adotadas pelos governos para o combate à crise, indicam que a dívida pública no mundo deve crescer 13 pontos percentuais e corresponder a 96,4% do PIB mundial. As economias avançadas, mais afetadas pelo vírus, devem ver a relação dívida/PIB subir para 122,4%, enquanto a dos Estados Unidos, também seriamente contaminado, aumentar mais de 20 pontos percentuais, saltando de 109% para 131% do PIB em 2020. Números que representam mais que o dobro dos limites aceitáveis, em termos internacionais, para o endividamento dos governos.
Para as economias emergentes, que inclui a China, a previsão é de que a dívida cresça 10 pontos percentuais, saltando de 53,2% para 62%, enquanto na América Latina este avanço pode se dar com menor força, indo de 70,5% para 78% do PIB, mas estes países enfrentarão outros choques negativos, como o da fraca demanda externa e o baixo preço das commodities.
Para o Brasil, o Fundo estima que o país deve gastar, com as medidas aprovadas, até essa data, para dar respostas ao desafio da pandemia, 2,9% do PIB, com a expansão de programas de transferência de renda e alívio temporário de impostos. Um custo que parece baixo comparado aos pacotes fiscais do grupo de países do G-7, de 5,9%, do PIB e G-20, de 3,5%. Não se pode esquecer, contudo, ser limitado o espaço fiscal do país e a resistência da equipe econômica, filiada à mais fina flor da escola neoliberal que defende o Estado mínimo, ao aumento de gastos dessa natureza.
Como resultado da ampliação dos déficits que serão gerados com esse aumento de gastos, o FMI prevê, de acordo com sua metodologia de cálculo da dívida, que difere da empregada pelo banco central do Brasil, que a dívida deve saltar de 89,5%, em 2019, para 98,2%, em 2020, ou seja, um crescimento de 9 pontos percentuais no ano, devendo, no entanto, se estabilizar nesse patamar em 2021, quando deixarão de ser necessárias essas despesas extraordinárias.
Tudo indica que estes números podem aumentar para todos estes países, dependendo da duração da epidemia que continua desconhecida, exigindo medidas adicionais. Se isso ocorrer, e há vários sinais de que tais medidas serão inevitáveis, já que vários países sinalizam que postergarão o distanciamento social, não haverá ajuste fiscal capaz de trazer as contas dos Estados, em geral, para os níveis que ostentavam antes dessa crise, mesmo por que a recuperação econômica deverá ser lenta, prejudicando a arrecadação.
O futuro do capitalismo dependerá, assim, da forma como se enfrentará o desafio de dar conta do tamanho da dívida assumida pelo Estado nessa crise para salvar a população, além do próprio sistema econômico. Se predominar a proposta que vem sendo defendida pelo pensamento neoliberal de que, superada a crise, deve-se promover severos ajustes nas contas públicas, a recessão não deixará tão cedo o cenário, com uma parcela expressiva da população empobrecida, sem emprego e renda, podendo-se desencadear conflitos sociais incontornáveis. Mas se, por outro lado, prevalecer o bom senso, como ocorreu na crise da década de 30 do século passado e após a Segunda Guerra, de que parte dessa dívida, que nada mais é que a riqueza financeira privada, deve ser desvalorizada ou paga com a cobrança de um imposto extraordinário sobre os ricos do mundo, então restará a esperança de que o sistema possa ser reconstruído, com maior justiça e solidariedade.