Fabrício Augusto de Oliveira*
A presidente Dilma Rousseff andou ensaiando, no dia 24 de agosto, um mea-culpa e, aparentemente descendo do pedestal em que se colocou desde que o seu padrinho, o ex-presidente Lula, a lançou como sua sucessora, admitiu ter errado na avaliação da situação econômica durante a campanha eleitoral do ano passado e demorado a perceber a gravidade da crise. De acordo com a Folha de São Paulo, do dia 25, a presidente afirmou que “as dificuldades só ficaram mais claras entre os meses de novembro e dezembro, depois de sua reeleição”. E estupefata: “não sabíamos que a arrecadação cairia tanto com o ajuste”.
Este ensaio de reconhecimento de erros, esperado e cobrado por não poucos críticos do governo, visando reconquistar alguma confiança da população, parou, no entanto, por aí. No dia seguinte, em entrevistas concedidas a algumas rádios do país, a presidente retomou a pose de economista luminar e afirmou que o governo já previa essas dificuldades diante do esgotamento do ciclo espetacular das commodities que, por alguns bons anos, garantiu a festa das economias emergentes. Recuou, assim, em seu ensaio de humildade, característica de criaturas que se consideram demiurgas, dotadas de poder divino.
De qualquer maneira, não deve ter sido fácil para ela admitir a incapacidade de não ter conseguido enxergar os estragos que a sua política econômica estava – e continua – provocando nos pilares centrais da economia, mesmo com todos os indicadores apontando nessa direção, em termos de inflação, da atividade produtiva, das contas públicas, contas externas etc. Afinal, desde sua entrada no governo, ostentava, em seu currículo Lattes, o título de mestre e doutora em economia pela Unicamp, o que obrigou essa instituição, em 2009, a publicar nos jornais do país que estes títulos não foram encontrados em seus registros. Embora alguns professores tenham confirmado que a viram frequentando os bancos da escola, sendo isso verdade o mais certo é que tenha cabulado as aulas de teoria econômica e de economia política.
Se de fato a “doutora” Dilma tivesse concluído o curso de doutorado naquela instituição provavelmente entenderia um pouco mais da lógica do Capital e também do papel que o Estado desempenha no processo de reprodução do sistema capitalista a longo prazo, exercendo as funções de acumulação e legitimação.
Irmãos siameses, Capital e Estado funcionam, apesar da ortodoxia, de forma complementar, com o segundo procurando amenizar a irracionalidade do primeiro na sua sede sem limites por lucros e ignorando as gritantes desigualdades e a miséria que a sua lógica acarreta para a maior parte da população. Cabe, assim, ao Estado, desfrutando de uma “relativa autonomia”, transferir parte dos frutos do progresso e da prosperidade para os setores menos favorecidos, impedindo que as tensões sociais se acumulem a ponto de conduzir o sistema para o colapso.
Essa relativa autonomia não lhe garante, contudo, poderes absolutos no reino do Capital e, embora historicamente determinadas de acordo com o nível de desenvolvimento de cada país, o que torna uma ou outra mais ou menos predominante em cada etapa de sua história, acentuados desequilíbrios nessas funções podem acirrar os conflitos entre o Capital e o Trabalho, colocando em risco a reprodução do sistema.
Como um pêndulo que se move nas duas direções, o Estado não pode ignorar, dessa forma, no capitalismo, as necessidades tanto do Capital como do Trabalho. Mas sempre com algum equilíbrio para manter, ainda que de forma precária, a coesão entre estes dois polos.
Teria entendido, como consequência, que políticas redistributivas sustentáveis comandadas pelo Estado exigem, de um lado, contar com o crescimento econômico para repartir os frutos adicionais que serão colhidos, e, de outro, criar mecanismos de transferências de renda e da riqueza dos mais ricos para os menos favorecidos ou mais pobres, não somente sobre a riqueza já existente, mas também sobre a que está sendo criada, a la Robin Hood.
Se o crescimento não acontece não há novos frutos a distribuir e as iniciativas neste sentido costumam ser feitas prejudicando as regras do Capital e despertando, inevitavelmente, sua reação a essas políticas. De outro lado, se os ricos não são chamados para contribuir com essas políticas, por meio da cobrança de impostos sobre as bases tributárias da renda e da riqueza, resta ao Estado arcar integralmente com estes custos, o que, obviamente, tende rapidamente a esbarrar em limites incontornáveis, por não ser este criador, mas apenas intermediário da distribuição da riqueza gerada pelo setor privado.
Beneficiado pelo crescimento espetacular da economia mundial de 2003-2008, o governo Lula, apesar de ter mantido os ricos imunes a estes custos, em virtude de sua política de conciliação, conseguiu, com os frutos do crescimento mais “fácil” registrado no Brasil, considerando que nenhuma reforma importante realizou para torná-lo consistente, fazer avançar algumas políticas redistributivas, as quais, se apoiadas na mesma equação, terminariam esbarrando, em algum momento, nos limites e regras estabelecidas para que o Capital continuasse em condições de cumprir sua sina.
No caso do governo Dilma, que não pôde mais contar com este crescimento “de graça”, dado a crise em que o capitalismo ingressou a partir de 2008, mas, seguindo o caminho trilhado por Lula, o de não se dispor a realizar reformas importantes para a sua retomada em bases sustentáveis e evitar, ao mesmo tempo, jogar o ônus dessa política para os mais ricos, com a cobrança de impostos sobre as maiores rendas e a riqueza financeira, obrigou o Estado a arcar com os custos dessas políticas, conduzindo-o a crescentes desequilíbrios fiscais e financeiros que terminaram abalando as variáveis centrais da economia.
Ou seja, pretendendo dar continuidade às políticas redistributivas, mas sem criar condições consistentes para mantê-las, ao desconsiderar as reformas necessárias para este objetivo e livrar de seu ônus as grandes rendas e a riqueza, desequilibrou as condições de operação do sistema, tendo de se render à ortodoxia e ao ajuste esquizofrênico que se encontra em curso no país. E que deve mantê-lo, por um bom tempo, divorciado do crescimento e vendo perderem-se, gradualmente, os ganhos que foram obtidos com as políticas implementadas. Um custo muito elevado para a sociedade, que poderia ter sido evitado se presente nas aulas que abordam essas questões.
* – 1 Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, colaborador do Brasil Debate e autor, entre outros, do livro “Política Econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”.